Capítulo 3

Bianca Santoro,

A porta de casa bateu atrás de mim com um estrondo. O som ecoou pelas paredes sujas e cheias de manchas, o tipo de coisa que ninguém mais notava, exceto eu. Aquele lugar me sufocava. Cada centímetro, cada cheiro, cada lembrança. Meu corpo estava molhado pela chuva, mas a dor que eu sentia não vinha disso. Minha cabeça estava a mil desde o encontro com aquele homem estranho na rua, mas eu mal tinha tempo para processar aquilo. Porque logo que entrei, senti o peso da presença dela.

Minha tia estava no meio da sala, com uma garrafa de cerveja na mão, olhando para mim com aqueles olhos vidrados de ódio misturado com o álcool. Ela sabia. Não sei como, mas sabia. E quando ela sabia de algo, o inferno logo começava.

— Você acha que eu sou burra, fedelha? — sua voz saiu num rosnado, arrastando as palavras como quem já tinha bebido demais. — Você acha que eu não sei o que você fez hoje?

Ela deu um passo à frente, seu corpo cambaleando um pouco. Não respondi. Sabia o que vinha a seguir. Sempre sabia. Apenas abaixei a cabeça, tentando passar despercebida, como se isso fosse possível.

— Olha pra mim, garota! — ela gritou, a garrafa quase escapando da mão dela enquanto balançava. — Você acha que eu não sei que você roubou? Que pegou dinheiro de novo?!

Claro que ela sabia. A vizinhança inteira sabia dos meus passos, como se todos fossem meus guardiões. Alguém provavelmente viu quando eu corri pelas ruas depois de ter escapado daquele dono da loja. Os boatos corriam rápido, e mais rápido ainda chegavam à minha tia.

— Você é uma inútil. — ela avançou, e antes que eu pudesse reagir, senti o tapa. Forte e seco, o som ecoou na sala. Meu rosto ardeu, mas a dor física era nada comparada ao que vinha depois. — Eu te dou um teto, te dou comida, e é assim que você me paga? Roubando? Traficando? Fazendo merda por aí?

Eu não disse nada. O gosto metálico do sangue tocou meus lábios, mas eu engoli. Engolir era o que eu fazia de melhor. Engolir tudo. Ela nunca parava no primeiro tapa, mas o que vinha depois era sempre pior do que os golpes.

— Você não vale nada! — ela continuou, agora mais próxima, quase cuspindo as palavras na minha cara. — E nunca valeu. Você sabe disso, não sabe? Sabe o porquê de estar aqui comigo, nessa merda de vida? Porque seus pais não te quiseram. Porque você matou seu irmão. Assassinaaaa.

Essas palavras. As que eu odiava ouvir. As que me faziam encolher. Aquelas palavras que ela usava como facas, cortando fundo, indo direto na ferida.

— Você deixou aquele garoto morrer! — ela gritou de novo, cada palavra como um chicote. — Você é uma assassina. E é por isso que seus pais te jogaram aqui. Porque você não merece nada além disso. Nada além de mim e dessa vida lixo que tem.

— Eu não tenho culpa, não foi minha culpa. — chorei.

— Cala a boca — vociferou ela, levantando a mão para me bater novamente.

Eu queria correr, mas meus pés estavam presos ao chão. Aquelas memórias sempre voltavam nesses momentos. Eu me via ali, com sete anos, no quintal de casa. Eu me via distraída, cuidando de meu irmão mais novo. E então o som da água. O pânico. Ele tinha caído na piscina. E eu... eu demorei para reagir. Quando percebi, era tarde demais. Ele estava afundando, e eu não soube o que fazer.

Depois disso, tudo desmoronou. Meus pais nunca mais me olharam da mesma forma. Eles me culparam. Fizeram de mim o monstro responsável pela morte de seu filho mais novo. E, no final, me deixaram. Jogaram-me nas mãos da minha tia, como quem se livra de um peso. E, desde então, minha vida tinha sido isso. Um inferno diário, relembrada constantemente de que eu era a culpada. De que eu era indesejada.

— Vai, sobe pro teu quarto antes que eu te faça subir na porrada, sua vadia — ela gritou por último, virando-se para a garrafa como se a discussão já tivesse acabado.

Sem falar nada, subi as escadas com os olhos ardendo, tentando segurar as lágrimas. Quando entrei no quarto, bati a porta com força, jogando a bolsa nas costas da cama com tanta raiva que senti meu coração acelerar. Tudo o que eu fazia era errado. Tudo.

Aquele quarto era o único lugar onde eu podia ser eu mesma, e mesmo ali, as paredes pareciam sufocar. O teto tinha manchas de umidade, o chão rangia quando eu caminhava. Havia pilhas de roupas espalhadas, cadernos velhos e livros que eu nunca lia. Aquilo não era um lar. Era uma prisão.

Me sentei na beira da cama, com as mãos tremendo. O peso do passado sempre me esmagava. A culpa. O erro de ter deixado meu irmão morrer. A dor de ter sido abandonada pelos meus próprios pais. Eu nunca disse a eles como me sentia, porque sabia que eles não queriam ouvir. Na verdade, eles não queriam me ver. Eles sumiram da minha vida, e o único contato que eu tinha com eles era nas palavras de ódio que minha tia jogava na minha cara todos os dias.

— Assassina. — murmurava para mim mesma, repetindo o que ela sempre dizia.

Era isso que eu era, não era? Uma assassina. Eu deixei meu irmão morrer. Eu o abandonei quando ele mais precisava de mim. E agora, anos depois, eu continuava tentando sobreviver, mas para quê? Não importava o quanto eu corresse, o quanto eu tentasse fugir, a culpa estava sempre comigo, como uma sombra que não ia embora.

Eu me sentei no chão, abraçando meus joelhos, e finalmente deixei as lágrimas caírem. Eu chorava sozinha, porque ninguém mais se importava. Nem comigo, nem com o que eu sentia. Eu me sentia perdida. Perdida em uma vida que eu nunca pedi. Perdida em um corpo que parecia carregar o peso do mundo inteiro e de uma passado que não me deixa viver em paz.

Às vezes, eu me perguntava por que eu nasci. Por que eu ainda estava aqui? Talvez minha tia estivesse certa. Talvez eu não valesse nada. Talvez... o mundo seria melhor sem mim.

Mas eu estava presa. Presa numa vida de caos, dor e arrependimento.

E eu não sabia como sair.

— Porquê? — solucei enquanto chorava mais ainda.

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