Bianca Santoro,
A porta de casa bateu atrás de mim com um estrondo. O som ecoou pelas paredes sujas e cheias de manchas, o tipo de coisa que ninguém mais notava, exceto eu. Aquele lugar me sufocava. Cada centímetro, cada cheiro, cada lembrança. Meu corpo estava molhado pela chuva, mas a dor que eu sentia não vinha disso. Minha cabeça estava a mil desde o encontro com aquele homem estranho na rua, mas eu mal tinha tempo para processar aquilo. Porque logo que entrei, senti o peso da presença dela. Minha tia estava no meio da sala, com uma garrafa de cerveja na mão, olhando para mim com aqueles olhos vidrados de ódio misturado com o álcool. Ela sabia. Não sei como, mas sabia. E quando ela sabia de algo, o inferno logo começava. — Você acha que eu sou burra, fedelha? — sua voz saiu num rosnado, arrastando as palavras como quem já tinha bebido demais. — Você acha que eu não sei o que você fez hoje? Ela deu um passo à frente, seu corpo cambaleando um pouco. Não respondi. Sabia o que vinha a seguir. Sempre sabia. Apenas abaixei a cabeça, tentando passar despercebida, como se isso fosse possível. — Olha pra mim, garota! — ela gritou, a garrafa quase escapando da mão dela enquanto balançava. — Você acha que eu não sei que você roubou? Que pegou dinheiro de novo?! Claro que ela sabia. A vizinhança inteira sabia dos meus passos, como se todos fossem meus guardiões. Alguém provavelmente viu quando eu corri pelas ruas depois de ter escapado daquele dono da loja. Os boatos corriam rápido, e mais rápido ainda chegavam à minha tia. — Você é uma inútil. — ela avançou, e antes que eu pudesse reagir, senti o tapa. Forte e seco, o som ecoou na sala. Meu rosto ardeu, mas a dor física era nada comparada ao que vinha depois. — Eu te dou um teto, te dou comida, e é assim que você me paga? Roubando? Traficando? Fazendo merda por aí? Eu não disse nada. O gosto metálico do sangue tocou meus lábios, mas eu engoli. Engolir era o que eu fazia de melhor. Engolir tudo. Ela nunca parava no primeiro tapa, mas o que vinha depois era sempre pior do que os golpes. — Você não vale nada! — ela continuou, agora mais próxima, quase cuspindo as palavras na minha cara. — E nunca valeu. Você sabe disso, não sabe? Sabe o porquê de estar aqui comigo, nessa merda de vida? Porque seus pais não te quiseram. Porque você matou seu irmão. Assassinaaaa. Essas palavras. As que eu odiava ouvir. As que me faziam encolher. Aquelas palavras que ela usava como facas, cortando fundo, indo direto na ferida. — Você deixou aquele garoto morrer! — ela gritou de novo, cada palavra como um chicote. — Você é uma assassina. E é por isso que seus pais te jogaram aqui. Porque você não merece nada além disso. Nada além de mim e dessa vida lixo que tem. — Eu não tenho culpa, não foi minha culpa. — chorei. — Cala a boca — vociferou ela, levantando a mão para me bater novamente. Eu queria correr, mas meus pés estavam presos ao chão. Aquelas memórias sempre voltavam nesses momentos. Eu me via ali, com sete anos, no quintal de casa. Eu me via distraída, cuidando de meu irmão mais novo. E então o som da água. O pânico. Ele tinha caído na piscina. E eu... eu demorei para reagir. Quando percebi, era tarde demais. Ele estava afundando, e eu não soube o que fazer. Depois disso, tudo desmoronou. Meus pais nunca mais me olharam da mesma forma. Eles me culparam. Fizeram de mim o monstro responsável pela morte de seu filho mais novo. E, no final, me deixaram. Jogaram-me nas mãos da minha tia, como quem se livra de um peso. E, desde então, minha vida tinha sido isso. Um inferno diário, relembrada constantemente de que eu era a culpada. De que eu era indesejada. — Vai, sobe pro teu quarto antes que eu te faça subir na porrada, sua vadia — ela gritou por último, virando-se para a garrafa como se a discussão já tivesse acabado. Sem falar nada, subi as escadas com os olhos ardendo, tentando segurar as lágrimas. Quando entrei no quarto, bati a porta com força, jogando a bolsa nas costas da cama com tanta raiva que senti meu coração acelerar. Tudo o que eu fazia era errado. Tudo. Aquele quarto era o único lugar onde eu podia ser eu mesma, e mesmo ali, as paredes pareciam sufocar. O teto tinha manchas de umidade, o chão rangia quando eu caminhava. Havia pilhas de roupas espalhadas, cadernos velhos e livros que eu nunca lia. Aquilo não era um lar. Era uma prisão. Me sentei na beira da cama, com as mãos tremendo. O peso do passado sempre me esmagava. A culpa. O erro de ter deixado meu irmão morrer. A dor de ter sido abandonada pelos meus próprios pais. Eu nunca disse a eles como me sentia, porque sabia que eles não queriam ouvir. Na verdade, eles não queriam me ver. Eles sumiram da minha vida, e o único contato que eu tinha com eles era nas palavras de ódio que minha tia jogava na minha cara todos os dias. — Assassina. — murmurava para mim mesma, repetindo o que ela sempre dizia. Era isso que eu era, não era? Uma assassina. Eu deixei meu irmão morrer. Eu o abandonei quando ele mais precisava de mim. E agora, anos depois, eu continuava tentando sobreviver, mas para quê? Não importava o quanto eu corresse, o quanto eu tentasse fugir, a culpa estava sempre comigo, como uma sombra que não ia embora. Eu me sentei no chão, abraçando meus joelhos, e finalmente deixei as lágrimas caírem. Eu chorava sozinha, porque ninguém mais se importava. Nem comigo, nem com o que eu sentia. Eu me sentia perdida. Perdida em uma vida que eu nunca pedi. Perdida em um corpo que parecia carregar o peso do mundo inteiro e de uma passado que não me deixa viver em paz. Às vezes, eu me perguntava por que eu nasci. Por que eu ainda estava aqui? Talvez minha tia estivesse certa. Talvez eu não valesse nada. Talvez... o mundo seria melhor sem mim. Mas eu estava presa. Presa numa vida de caos, dor e arrependimento. E eu não sabia como sair. — Porquê? — solucei enquanto chorava mais ainda.Aléssio Romano,O carro deslizou silenciosamente até a frente da clínica. Era um trajeto que eu já conhecia de cor, como se meu corpo soubesse exatamente a hora de desligar a mente e entrar no modo automático. Não importava quantas reuniões eu tivesse, quantos negócios fossem fechados ou quantas vidas fossem tiradas ao meu redor, quando eu chegava ali, tudo parava. O peso do mundo do lado de fora ficava pequeno, insignificante. Ali, o mundo era só ela.Vito, meu soldado mais fiel, saiu do carro antes de mim, abrindo o guarda-chuva e caminhando até minha porta. Ele era eficiente, como sempre. Um homem de poucas palavras, mas de ações precisas. Abri a porta e, em segundos, o guarda-chuva estava sobre minha cabeça. A chuva ainda caía devagar, mas para mim, era como se fosse invisível. Meus olhos estavam fixos na porta da clínica, e minha mente estava no quarto dela.Entramos. O ambiente cheirava a álcool, o tipo de cheiro que grudava na pele e nos ossos. As enfermeiras me cumprimentaram
Bianca Santoro,O dia amanheceu, mas para mim parecia que a noite ainda se arrastava. Eu estava deitada na cama do mesmo jeito que me joguei nela na noite anterior, sem me mover, sem fechar os olhos nem por um segundo. A escuridão já tinha se esvaído pela janela, mas o vazio dentro de mim continuava. Fitei o teto por horas, tentando encontrar respostas, tentando entender por que eu continuava nesse ciclo de dor e culpa. O rosto do meu irmão, o tapa da minha tia, tudo se misturava na minha cabeça, uma tortura silenciosa que eu não conseguia afastar.Meu corpo estava pesado, como se eu estivesse presa naquele colchão velho e afundado. Eu sabia que deveria me levantar, fazer algo, qualquer coisa. Mas a verdade é que, por mais que o mundo lá fora estivesse vivo, eu não me sentia parte dele. Eu era um fantasma em minha própria vida.De repente, ouvi batidas fortes na porta.— Anda, levanta dessa cama! — a voz da minha tia soou áspera, cheia de desprezo. — Aqui não é a casa da mãe Joana! Va
Aléssio Romano, Acordei cedo, como de costume. O sol mal tinha nascido e, mesmo assim, minha mente já estava cheia de compromissos e responsabilidades. Havia uma reunião importante pela manhã, algo que não podia ser adiado. Além disso, uma viagem estava marcada para a noite, um encontro essencial com outros membros do meu círculo de negócios. Tudo precisava seguir conforme o plano. Não havia espaço para erros. Levantei, caminhei até o banheiro e liguei o chuveiro. A água quente caía sobre meus ombros, relaxando os músculos que pareciam estar sempre tensos. Esse era o único momento do dia em que eu podia me desligar do caos que me cercava, mesmo que fosse por alguns minutos. Após o banho, me vesti com cuidado. Meu terno estava impecável, o tecido ajustado perfeitamente ao corpo. Coloquei a gravata preta, o toque final de uma rotina que eu conhecia bem demais. Olhei no espelho rapidamente, mas sem interesse. O reflexo que vi era o mesmo de sempre: controle absoluto. Pelo menos, era o
Aléssio Romano,A discussão entre mim e Bianca foi curta, mas intensa. Suas respostas afiadas, sua raiva evidente, e a maneira como ela me encarava, como se quisesse me afastar e desafiar ao mesmo tempo, me deixavam inquieto. Ela era diferente de qualquer outra pessoa que eu já tinha conhecido. E havia algo nela que me incomodava de uma maneira que eu não conseguia definir. Mas, antes que eu pudesse continuar tentando entender o que estava acontecendo entre nós, a enfermeira entrou no quarto.Ela caminhou até o soro pendurado ao lado da cama de Bianca e verificou os medicamentos com a eficiência de quem já fez isso milhares de vezes. Bianca permaneceu em silêncio, e eu me afastei um pouco, permitindo que a enfermeira fizesse o trabalho dela.Foi nesse momento que meu celular vibrou no bolso do meu terno. Atendi com um movimento rápido, levando o telefone ao ouvido. Era Vito.— Senhor Romano, Don Rick está esperando. Ele ligou perguntando quando você vai chegar para a reunião — a voz d
Bianca Santoro, — O que aquele homem pensa que sou? — murmurei, sentindo o desconforto do soro preso à minha veia. — Não vou ficar aqui, só porque ele quer. A sala branca e fria do hospital me fazia sentir ainda mais sufocada. Eu odiava hospitais, e o fato de estar ali, sob o olhar daquele homem misterioso, me deixava ainda mais agitada. Não era apenas a dor física que me incomodava, era o peso de estar constantemente sob o controle de situações que pareciam fugir do meu alcance. Eu não queria a ajuda dele, muito menos precisava de sua piedade. Não precisava de ninguém.Com um movimento brusco, arranquei a agulha do soro do meu braço. O pequeno ponto de sangue apareceu na pele, mas eu não me importei. Era uma dor insignificante comparada ao que eu já havia suportado. Respirei fundo e balancei a cabeça. Precisava sair dali, e rápido. O que quer que estivesse acontecendo, eu não queria fazer parte disso. Aquela cama de hospital me fazia lembrar da fragilidade da vida. E fragilidade er
Aléssio Romano,A sala de reuniões estava silenciosa, exceto pelo som do ar-condicionado zumbindo no canto. Ao redor da mesa de mármore polida, homens de terno esperavam para que o Don Rick finalmente continuasse a tratar do assunto dos carregamentos, suas expressões sérias. Já fazia a mais ou menos 1 hora de reunião. Don Rick estava sentado na ponta da mesa. Ele era um dos mais antigos aliados da família, mas também era o mais cauteloso. Sabia como medir cada palavra e gesto, o que o tornava um aliado perigoso, mas essencial.— Os últimos carregamentos chegaram, mas houve um problema com a alfândega no porto. — A voz de Don Rick soava como um trovão suave, mas com peso de comando. — Precisamos ter certeza de que os "contatos" estão fazendo o que foi combinado. Se não, vamos perder uma boa quantia.— Já esperava por isso. — Minha voz era calma, mas firme. — Eu tinha algumas suspeitas de que alguém estava tentando desviar a atenção da alfândega, talvez nos testar. Já mandei uma equip
Aléssio Romano,Assim que cheguei à mansão, o peso do dia começou a se fazer sentir sobre meus ombros. A reunião com Rick, o desenrolar dos problemas com os carregamentos, e, é claro, Bianca. Tudo parecia estar se acumulando em um ritmo que eu não podia controlar, e isso era algo que me incomodava profundamente. Eu sempre controlei todas as variáveis da minha vida, mas, ultimamente, sentia que as coisas estavam fugindo de minhas mãos. Eu prometi a minha sobrinha Lia, que iria na clínica quando saísse da reunião, mas com tudo que aconteceu, acabei não podendo ir. Caminhei direto para meu quarto, sem nem mesmo notar os olhares dos seguranças que estavam de plantão. Precisava de um tempo para mim. Assim que fechei a porta atrás de mim, o silêncio me envolveu, um silêncio que eu costumava apreciar, mas que hoje parecia mais pesado.Tirei minha roupa lentamente, desfazendo o nó da gravata, desabotoando o paletó e jogando-o sobre a cadeira ao lado da cama. Cada peça de roupa que removia er
Aléssio Romano,As últimas três semanas passaram em um ritmo lento, quase arrastado. Viajei, tratei de negócios importantes, participei de festas e jantares de interesse. Negociei contratos significativos e mantive minha presença no mundo dos negócios como de costume. Minha rotina seguia inabalável, com a exceção de um detalhe: nada de Bianca. Nenhum sinal, nenhuma palavra. Ela parecia ter desaparecido completamente. Meu pai sempre dizia que a pressa é inimiga da perfeição, e talvez ele estivesse certo. Algum momento, ela iria precisar de mim. Isso era inevitável. No final, todos precisam de algo. Bianca não seria diferente.Enquanto aguardava esse momento, segui com meus compromissos, concentrando-me nos acordos em andamento. O controle sempre foi a base de tudo para mim. Eu me assegurava de que cada movimento fosse calculado e eficiente. Por trás dos jantares de negócios e das festas de aparências, sempre havia uma nova negociação, uma nova aliança a ser formada. Cada passo no mundo