Aléssio Romano,
O carro deslizou silenciosamente até a frente da clínica. Era um trajeto que eu já conhecia de cor, como se meu corpo soubesse exatamente a hora de desligar a mente e entrar no modo automático. Não importava quantas reuniões eu tivesse, quantos negócios fossem fechados ou quantas vidas fossem tiradas ao meu redor, quando eu chegava ali, tudo parava. O peso do mundo do lado de fora ficava pequeno, insignificante. Ali, o mundo era só ela. Vito, meu soldado mais fiel, saiu do carro antes de mim, abrindo o guarda-chuva e caminhando até minha porta. Ele era eficiente, como sempre. Um homem de poucas palavras, mas de ações precisas. Abri a porta e, em segundos, o guarda-chuva estava sobre minha cabeça. A chuva ainda caía devagar, mas para mim, era como se fosse invisível. Meus olhos estavam fixos na porta da clínica, e minha mente estava no quarto dela. Entramos. O ambiente cheirava a álcool, o tipo de cheiro que grudava na pele e nos ossos. As enfermeiras me cumprimentaram com um leve aceno, todas já acostumadas com minha presença. Algumas delas tinham sorrisos amigáveis, outras mantinham a distância, mas não importava. Eu não estava ali por elas. — Boa noite, senhor Romano — disse uma delas, passando rapidamente pelo corredor. — Boa noite, respondi sem tirar os olhos do caminho. Segui em frente, subindo as escadas e atravessando os corredores que me levavam ao quarto 302. Esse número estava gravado na minha mente como uma marca que eu nunca poderia apagar. Era onde ela estava. Onde ela lutava, dia após dia. Quando cheguei à porta, respirei fundo. Sempre fazia isso. Não importava quantas vezes eu a visitasse, sempre havia aquele segundo de pausa antes de entrar. Como se eu precisasse reunir forças para enfrentar o que me esperava lá dentro. Ela era tão pequena, tão frágil. E eu, com todo meu poder e influência, era impotente. Abri a porta lentamente e entrei. Lia estava deitada na cama, rodeada por travesseiros e cobertores coloridos que eu tinha comprado para ela, na esperança de que fizessem aquele lugar parecer menos frio. Ela tinha a pele pálida, os olhos fundos e o cabelo, que um dia foi cheio de vida, agora estava ralo. A leucemia estava consumindo cada parte dela. E eu não podia fazer nada, a não ser estar ali. — Oi, pequena — minha voz saiu suave, quase um sussurro. Os olhos dela se abriram lentamente, e um pequeno sorriso surgiu em seus lábios. — Tio Aléssio — ela murmurou, a voz fraca, mas cheia de carinho. Caminhei até a cama, sentando-me na cadeira ao lado. Peguei a pequena mão dela nas minhas. Estava gelada, como sempre. Eu esfreguei levemente seus dedos, tentando aquecê-los, como se isso fosse ajudar de alguma forma. — Como você está hoje? — perguntei, mesmo sabendo a resposta. — Cansada... mas bem. — Ela tentou sorrir de novo, mas o esforço era visível. — A mamãe veio me ver hoje. Assenti. Minha irmã tentava estar presente o máximo que podia, mas eu sabia que ela evitava passar muito tempo aqui. Era difícil para ela. Era difícil para todos nós. — Trouxe uma coisa para você — disse, puxando o livro da sacola que estava comigo. — Lembra que você pediu esse? Os olhos dela brilharam, mesmo que por um momento. Aquele brilho de expectativa que as crianças têm quando recebem algo que desejam. Ela tentou se sentar, mas sua força não foi suficiente, então eu a ajudei a se ajeitar nos travesseiros. — Obrigada, tio — ela disse, pegando o livro com as mãos frágeis. — Você sabe que eu sempre cumpro minhas promessas, não é? — sorri, tentando aliviar o peso do momento. Ela riu baixinho, um som que para mim era o mais precioso do mundo. Eu faria qualquer coisa para ouvir essa risada mais vezes. — Vai ler pra mim? — Lia pediu, ajeitando o livro no colo. — Claro que vou. — Peguei o livro de volta e comecei a folhear as páginas. A história era simples, infantil, sobre aventuras e princesas em reinos distantes. Um mundo de fantasia que Lia adorava. Ela ouvia com atenção, os olhos fixos em mim, embora eu soubesse que em algum momento ela começaria a se cansar. E foi o que aconteceu. Metade da história e já dava para ver seus olhos ficando pesados. — Você pode parar por aqui, tio — ela disse, piscando devagar. — Termina outro dia. — Você tem certeza? — perguntei, fechando o livro. — Posso continuar, se quiser. Ela balançou a cabeça, um gesto suave. — Amanhã... — murmurou. — Estou cansada. Eu sabia que talvez amanhã ela não estivesse com forças nem para ouvir. Mas não insistiria. A última coisa que eu queria era forçar alguma coisa a ela. Eu me inclinei e beijei sua testa, sentindo o cheiro suave dos cremes que as enfermeiras passavam nela. Era um cheiro que me fazia lembrar de fragilidade, mas também de amor. Um amor que eu nunca deixaria de sentir por ela. Fiquei ali sentado, segurando a mão dela até que o sono a levasse de vez. Seu peito subia e descia devagar, cada respiração uma vitória. Cada segundo, um presente. Quando finalmente saí do quarto, fechei a porta com cuidado, sem fazer barulho. As luzes da clínica eram suaves, e o silêncio era quase opressor. Vito estava me esperando no corredor, ainda segurando o guarda-chuva em mãos, como se o tempo não tivesse passado desde que entramos. — Tudo certo, senhor Romano? — ele perguntou, a voz baixa. — Sim, Vito. — Assenti, olhando para o fim do corredor. — Tudo certo por hoje. Enquanto saíamos da clínica, o peso da minha vida lá fora começou a se arrastar de volta para mim. Eu era Alessio Romano, um homem que controlava tudo ao seu redor, menos o que realmente importava. Ali, no quarto 302, o poder que eu tinha significava absolutamente nada. O guarda-chuva se abriu sobre mim de novo, e a chuva fria voltou a cair. Mas, no fundo, eu sabia que a tempestade estava dentro de mim. — Vamos para casa, preciso descansar — avisei. Vito abriu a porta do carro, entrei e seguimos para minha mansão.Bianca Santoro,O dia amanheceu, mas para mim parecia que a noite ainda se arrastava. Eu estava deitada na cama do mesmo jeito que me joguei nela na noite anterior, sem me mover, sem fechar os olhos nem por um segundo. A escuridão já tinha se esvaído pela janela, mas o vazio dentro de mim continuava. Fitei o teto por horas, tentando encontrar respostas, tentando entender por que eu continuava nesse ciclo de dor e culpa. O rosto do meu irmão, o tapa da minha tia, tudo se misturava na minha cabeça, uma tortura silenciosa que eu não conseguia afastar.Meu corpo estava pesado, como se eu estivesse presa naquele colchão velho e afundado. Eu sabia que deveria me levantar, fazer algo, qualquer coisa. Mas a verdade é que, por mais que o mundo lá fora estivesse vivo, eu não me sentia parte dele. Eu era um fantasma em minha própria vida.De repente, ouvi batidas fortes na porta.— Anda, levanta dessa cama! — a voz da minha tia soou áspera, cheia de desprezo. — Aqui não é a casa da mãe Joana! Va
Aléssio Romano, Acordei cedo, como de costume. O sol mal tinha nascido e, mesmo assim, minha mente já estava cheia de compromissos e responsabilidades. Havia uma reunião importante pela manhã, algo que não podia ser adiado. Além disso, uma viagem estava marcada para a noite, um encontro essencial com outros membros do meu círculo de negócios. Tudo precisava seguir conforme o plano. Não havia espaço para erros. Levantei, caminhei até o banheiro e liguei o chuveiro. A água quente caía sobre meus ombros, relaxando os músculos que pareciam estar sempre tensos. Esse era o único momento do dia em que eu podia me desligar do caos que me cercava, mesmo que fosse por alguns minutos. Após o banho, me vesti com cuidado. Meu terno estava impecável, o tecido ajustado perfeitamente ao corpo. Coloquei a gravata preta, o toque final de uma rotina que eu conhecia bem demais. Olhei no espelho rapidamente, mas sem interesse. O reflexo que vi era o mesmo de sempre: controle absoluto. Pelo menos, era o
Aléssio Romano,A discussão entre mim e Bianca foi curta, mas intensa. Suas respostas afiadas, sua raiva evidente, e a maneira como ela me encarava, como se quisesse me afastar e desafiar ao mesmo tempo, me deixavam inquieto. Ela era diferente de qualquer outra pessoa que eu já tinha conhecido. E havia algo nela que me incomodava de uma maneira que eu não conseguia definir. Mas, antes que eu pudesse continuar tentando entender o que estava acontecendo entre nós, a enfermeira entrou no quarto.Ela caminhou até o soro pendurado ao lado da cama de Bianca e verificou os medicamentos com a eficiência de quem já fez isso milhares de vezes. Bianca permaneceu em silêncio, e eu me afastei um pouco, permitindo que a enfermeira fizesse o trabalho dela.Foi nesse momento que meu celular vibrou no bolso do meu terno. Atendi com um movimento rápido, levando o telefone ao ouvido. Era Vito.— Senhor Romano, Don Rick está esperando. Ele ligou perguntando quando você vai chegar para a reunião — a voz d
Bianca Santoro, — O que aquele homem pensa que sou? — murmurei, sentindo o desconforto do soro preso à minha veia. — Não vou ficar aqui, só porque ele quer. A sala branca e fria do hospital me fazia sentir ainda mais sufocada. Eu odiava hospitais, e o fato de estar ali, sob o olhar daquele homem misterioso, me deixava ainda mais agitada. Não era apenas a dor física que me incomodava, era o peso de estar constantemente sob o controle de situações que pareciam fugir do meu alcance. Eu não queria a ajuda dele, muito menos precisava de sua piedade. Não precisava de ninguém.Com um movimento brusco, arranquei a agulha do soro do meu braço. O pequeno ponto de sangue apareceu na pele, mas eu não me importei. Era uma dor insignificante comparada ao que eu já havia suportado. Respirei fundo e balancei a cabeça. Precisava sair dali, e rápido. O que quer que estivesse acontecendo, eu não queria fazer parte disso. Aquela cama de hospital me fazia lembrar da fragilidade da vida. E fragilidade er
Aléssio Romano,A sala de reuniões estava silenciosa, exceto pelo som do ar-condicionado zumbindo no canto. Ao redor da mesa de mármore polida, homens de terno esperavam para que o Don Rick finalmente continuasse a tratar do assunto dos carregamentos, suas expressões sérias. Já fazia a mais ou menos 1 hora de reunião. Don Rick estava sentado na ponta da mesa. Ele era um dos mais antigos aliados da família, mas também era o mais cauteloso. Sabia como medir cada palavra e gesto, o que o tornava um aliado perigoso, mas essencial.— Os últimos carregamentos chegaram, mas houve um problema com a alfândega no porto. — A voz de Don Rick soava como um trovão suave, mas com peso de comando. — Precisamos ter certeza de que os "contatos" estão fazendo o que foi combinado. Se não, vamos perder uma boa quantia.— Já esperava por isso. — Minha voz era calma, mas firme. — Eu tinha algumas suspeitas de que alguém estava tentando desviar a atenção da alfândega, talvez nos testar. Já mandei uma equip
Aléssio Romano,Assim que cheguei à mansão, o peso do dia começou a se fazer sentir sobre meus ombros. A reunião com Rick, o desenrolar dos problemas com os carregamentos, e, é claro, Bianca. Tudo parecia estar se acumulando em um ritmo que eu não podia controlar, e isso era algo que me incomodava profundamente. Eu sempre controlei todas as variáveis da minha vida, mas, ultimamente, sentia que as coisas estavam fugindo de minhas mãos. Eu prometi a minha sobrinha Lia, que iria na clínica quando saísse da reunião, mas com tudo que aconteceu, acabei não podendo ir. Caminhei direto para meu quarto, sem nem mesmo notar os olhares dos seguranças que estavam de plantão. Precisava de um tempo para mim. Assim que fechei a porta atrás de mim, o silêncio me envolveu, um silêncio que eu costumava apreciar, mas que hoje parecia mais pesado.Tirei minha roupa lentamente, desfazendo o nó da gravata, desabotoando o paletó e jogando-o sobre a cadeira ao lado da cama. Cada peça de roupa que removia er
Aléssio Romano,As últimas três semanas passaram em um ritmo lento, quase arrastado. Viajei, tratei de negócios importantes, participei de festas e jantares de interesse. Negociei contratos significativos e mantive minha presença no mundo dos negócios como de costume. Minha rotina seguia inabalável, com a exceção de um detalhe: nada de Bianca. Nenhum sinal, nenhuma palavra. Ela parecia ter desaparecido completamente. Meu pai sempre dizia que a pressa é inimiga da perfeição, e talvez ele estivesse certo. Algum momento, ela iria precisar de mim. Isso era inevitável. No final, todos precisam de algo. Bianca não seria diferente.Enquanto aguardava esse momento, segui com meus compromissos, concentrando-me nos acordos em andamento. O controle sempre foi a base de tudo para mim. Eu me assegurava de que cada movimento fosse calculado e eficiente. Por trás dos jantares de negócios e das festas de aparências, sempre havia uma nova negociação, uma nova aliança a ser formada. Cada passo no mundo
Bianca Santoro,Essas semanas se arrastaram como se o tempo estivesse preso, me sufocando a cada segundo que passava. Minha vida não mudou muito desde a última vez que vi aquele homem arrogante. Continuei fugindo dos canalhas a quem eu ainda devia uma boa parte do dinheiro. Sempre que achava que tinha escapado deles, apareciam em alguma esquina, prontos para me lembrar de que minha dívida estava longe de ser paga.Hoje não era diferente. Estava vestida de preto, com uma toca que cobria meu cabelo e uma máscara no rosto. Sentada em um banco em frente a uma loja de roupas, observava o movimento da rua. Minha mente estava focada em um plano. Nas últimas três semanas, estive arquitetando como conseguir o dinheiro para pagar aqueles desgraçados de uma vez por todas. Não era fácil, mas eu precisava arriscar. Precisava agir.O barulho das pessoas andando pela rua e o som dos carros ao fundo ajudavam a disfarçar minha ansiedade. Meu alvo era simples: a loja à minha frente. O caixa dela estava