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Capítulo 3 - As Rosas e as Cicatrizes

Clara

O vinho descia quente pela minha garganta, e com ele, cada lembrança dolorosa parecia vir à tona. Como o beijo em que Jason me deu quando eu tinha 16 anos. Meu primeiro e inesquecível beijos, depois daquele dias, aquilo só se repetiu mais duas vezes e até então, são só lembranças.

Estava sentada no chão da floricultura, após tomar um banho quente, na parte onde minha madrinha reconstruiu, — para que eu pudesse passar o dia com ela sem ter que ir para — casa cercada pelas rosas que tanto amava e que, naquele momento, não eram capazes de me trazer conforto algum. Minhas pernas estavam esticadas, e a garrafa de vinho descansava entre elas. A barra do meu vestido subiu, revelando cicatrizes que eu nunca quis que ninguém visse. Marcas que carregavam mais dor do que qualquer palavra que eu fosse capaz de dizer em voz alta. Naquele dia eu estava sozinha, como sempre estive. Desde então, tudo parece uma monótona rotina tediosa, que se prolonga dia pós dia.

Hoje deveria ser um dia de celebração. Vinte e três anos. Mas eu estava sozinha, novamente. Mesmo assim, pedi pizza e vinho, achando que isso seria o suficiente para anestesiar a dor. Mas não era, porque ainda não vendem a cura para dores na alma. Nunca era dor física. Jason tinha voltado, e, por mais que eu tentasse negar, isso mexia comigo. Ele ainda era o dono dos meus pensamentos e de tudo que a mim pertence. A pessoa por quem eu me apaixonei e que nunca retribuiu nada além de arrogância e desprezo. E agora ele estava de volta, frio como uma nevasca, como se nada entre nós tivesse existido. Aliás, qual nós?

Fechei os olhos, deixando as lágrimas escorrerem silenciosamente. A pizza já havia chegado, e a garrafa de vinho estava quase vazia novamente. Só restava a solidão, a mesma que sempre me abraçou em momentos como este. Em momentos que estou sozinha, triste e com vontade de sumir sem aviso. Mas penso em Helena, ela não suportaria me perder, não depois de tudo que vivenciou e eu não quero causar nenhum mal a mulher que me acolheu como minha mãe me acolheria em todos os momentos.

Jason

A chuva caía pesada lá fora enquanto eu dirigia em silêncio. Minha mãe insistira para que eu viesse atrás de Clara. “Está tarde, Jason. Ela não deve voltar sozinha.” Eu sabia que ela não gostava das minhas amigas, e que elas eram parte da razão pela qual Clara preferia estar longe. Mas não era apenas isso. Clara sempre foi diferente. Sempre foi… Clara. E eu nunca soube como lidar com isso. Quanto as minhas colegas, fingem ser amigas da minha mãe, enquanto a mesma tenta fugir dos assuntos sempre que tem uma oportunidade.

Parei em uma cafeteria que por sorte ainda estava aberta e comprei um chá de maçã, o preferido dela. Um cupcake com uma vela de 23 anos.

Quando parei em frente à floricultura, uma parte de mim queria ir embora. Eu era péssimo em lidar com sentimentos. Mas outra parte sabia que não podia deixá-la sozinha. Não hoje. Levei o cupcake comigo, um gesto que parecia estúpido, mas era tudo que eu tinha. Uma vela de 23 anos espetada no topo – pequena e solitária, assim como Clara devia estar se sentindo.

Empurrei a porta de vidro com cuidado e entrei, o cheiro doce das flores inundando meus sentidos. E então a vi.

Ela estava sentada no chão, os olhos vermelhos e o rosto molhado de lágrimas. A garrafa de vinho entre suas pernas denunciava o quanto estava embriagada. Mas foi o que vi em suas coxas que me fez congelar: cicatrizes. Longas e profundas, marcas que não cicatrizam com facilidade. O motivo responsável por aquilo é o que agora vai me atormentar. Algo dentro de mim se partiu naquele momento, mas minha expressão permaneceu inabalável.

— Clara. – Tentei não reparar demais, mas tudo nela me atrai.

Ela ergueu a cabeça devagar, piscando como se estivesse tentando entender se eu era real ou fruto da sua mente turva.

— Jason? O que você está fazendo aqui?

A voz dela saiu arrastada, como se o álcool tivesse embotado seus pensamentos. Abaixei-me ao seu lado, deixando o cupcake sobre uma mesa próxima.

— Não podia deixar você passar o aniversário sozinha. Eu sei que sou um idiota, mas as vezes queria me redimir com você. Podemos ser amigos e deixar toda aquelas brigas para trás. – Eu queria muito mais que amizade, mas não a posso fazer isso com ela. Não posso trair ela mais uma vez.

Ela soltou uma risada amarga, e o som me atingiu como um soco.

— Como se você se importasse. — Clara pegou a garrafa e tomou mais um gole, sem me olhar. — Você nunca se importou, Jason. Nunca. Quantas vezes você quis ser meu amigo? Acho que todas as vezes que tentei ser legal com você, você me zoava de alguma forma. Lembra das vezes que me humilhou na frente daquelas suas amigas, para se sentir melhor que eu? As mesmas que estão esperando você agora.

— Não é verdade — falei, a voz baixa, mas firme. — Eu nunca te humilhei na frente de alguém. Você que sempre foi sensível demais. Mas agora eu quero mudar as coisas. Não somos mais aqueles dois adolescentes. Somos adultos agora, Clara. Somos quase irmãos, precisamos nos acertar.

— Então por que agora? — Ela virou-se para mim, e seus olhos estavam cheios de dor e ressentimento. — Por que justo hoje? Porque sua mãe mandou? Pois saiba que não vou. Eu não sou sensível, só acho que qualquer pessoa choraria ao ouvir que é uma órfã inútil, bipolar e rejeitada por todos. Elas riam disso, Jason. E para de fingir que se importa comigo.

Houve um momento de silêncio pesado entre nós. Queria dizer algo, mas tudo parecia insuficiente. Pois ela tem razão em tudo que está dizendo agora. Mas, eu era adolescente, assim como ela também era. Agia por ciúmes e por medo dela se interessar por alguém.

— Eu me importo — repeti, sabendo o quão fraca essa frase soava. — Me importo com você. Por isso estou aqui.

Clara riu de novo, um som quebrado que não combinava com ela.

— Você nunca ligou para mim. Nem quando morávamos juntos, nem quando suas amigas faziam da minha vida um inferno. Você sempre foi frio, distante. E agora volta como se nada tivesse mudado? Acha mesmo que eu vou acreditar que você mudou?

— Talvez porque nada tenha mudado — rebati, cruzando os braços. Minha voz saiu mais dura do que eu pretendia. — Os anos na Marinha me fizeram repensar toda minha vida, credite.

Ela arregalou os olhos, e por um instante, parecia que eu havia atravessado uma barreira que não deveria.

— Você ainda é a mesma garota — continuei, com frieza. — A mesma que acha que todo mundo vai deixá-la sozinha. — Mas eu voltei.

— E você ainda é o mesmo idiota arrogante que acha que pode pisar nas pessoas. — Os olhos dela ardiam de raiva. — Eu te amei, Jason. Eu te amei mais do que qualquer coisa. E sabe o que eu ganhei com isso? Nada.

As palavras dela me atingiram com força, mas eu não deixei transparecer. Estava treinado para isso. Confesso que estou surpreso com tudo que acabei de ouvir, não imaginei que ela me amasse dessa forma. Com tanta intensidade.

— Você acha que foi fácil para mim? — murmurei, apertando a mandíbula. — Acha que eu não senti nada esses anos longe de você?

— Sim, eu acho — ela sussurrou. — Porque você nunca deixou transparecer.

Olhei para Clara por um longo momento, tentando encontrar as palavras certas. Mas como eu poderia explicar algo que nem eu entendia completamente? Como dizer que, mesmo distante, ela sempre esteve presente? Que foi o pensamento nela que me manteve firme em alguns dos momentos mais difíceis da minha vida?

— Eu não sou bom com isso, Clara — admiti por fim. — Mas eu voltei. Não vou te deixar sozinha outra vez.

Ela balançou a cabeça, as lágrimas voltando a escorrer por seu rosto.

— Não quero ouvir suas desculpas. Por favor.

— Não são desculpas. São fatos.

Clara desviou o olhar, como se não pudesse mais suportar a minha presença.

— Por que você está aqui, Jason? — A voz dela era apenas um sussurro.

Eu me inclinei para mais perto, ignorando a distância que ela tentava colocar entre nós.

— Porque, mesmo que você não acredite, eu me importo. Sempre me importei.

— Vai embora. — Ela tentou se afastar, mas eu a segurei pelo braço, firme mas sem machucar.

— Não. Não vou te deixar assim. Não vou te deixar sozinha novamente.

Ela me encarou, seus olhos brilhando de dor e raiva.

— Você não tem esse direito.

— Eu tenho todo o direito — respondi, a voz fria como aço. — Porque, goste você ou não, eu estou aqui. E não vou a lugar nenhum.

Por um momento, tudo que pude ouvir foi o som da chuva lá fora e o ritmo acelerado da nossa respiração. Ela estava quebrada, e eu também, mas de formas diferentes.

Então, algo dentro dela pareceu ceder. Clara se soltou, permitindo-se desmoronar pela primeira vez em muito tempo.

Segurei-a firme, deixando-a chorar no meu peito. A abracei firme, permitindo que ela colocasse para fora, toda sua dor.

Enquanto a chuva continuava a cair lá fora, soube que, pela primeira vez, estava onde deveria estar. E dessa vez, eu não iria a lugar algum.

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