Clara
O vinho descia quente pela minha garganta, e com ele, cada lembrança dolorosa parecia vir à tona. Como o beijo em que Jason me deu quando eu tinha 16 anos. Meu primeiro e inesquecível beijos, depois daquele dias, aquilo só se repetiu mais duas vezes e até então, são só lembranças. Estava sentada no chão da floricultura, após tomar um banho quente, na parte onde minha madrinha reconstruiu, — para que eu pudesse passar o dia com ela sem ter que ir para — casa cercada pelas rosas que tanto amava e que, naquele momento, não eram capazes de me trazer conforto algum. Minhas pernas estavam esticadas, e a garrafa de vinho descansava entre elas. A barra do meu vestido subiu, revelando cicatrizes que eu nunca quis que ninguém visse. Marcas que carregavam mais dor do que qualquer palavra que eu fosse capaz de dizer em voz alta. Naquele dia eu estava sozinha, como sempre estive. Desde então, tudo parece uma monótona rotina tediosa, que se prolonga dia pós dia. Hoje deveria ser um dia de celebração. Vinte e três anos. Mas eu estava sozinha, novamente. Mesmo assim, pedi pizza e vinho, achando que isso seria o suficiente para anestesiar a dor. Mas não era, porque ainda não vendem a cura para dores na alma. Nunca era dor física. Jason tinha voltado, e, por mais que eu tentasse negar, isso mexia comigo. Ele ainda era o dono dos meus pensamentos e de tudo que a mim pertence. A pessoa por quem eu me apaixonei e que nunca retribuiu nada além de arrogância e desprezo. E agora ele estava de volta, frio como uma nevasca, como se nada entre nós tivesse existido. Aliás, qual nós? Fechei os olhos, deixando as lágrimas escorrerem silenciosamente. A pizza já havia chegado, e a garrafa de vinho estava quase vazia novamente. Só restava a solidão, a mesma que sempre me abraçou em momentos como este. Em momentos que estou sozinha, triste e com vontade de sumir sem aviso. Mas penso em Helena, ela não suportaria me perder, não depois de tudo que vivenciou e eu não quero causar nenhum mal a mulher que me acolheu como minha mãe me acolheria em todos os momentos. Jason A chuva caía pesada lá fora enquanto eu dirigia em silêncio. Minha mãe insistira para que eu viesse atrás de Clara. “Está tarde, Jason. Ela não deve voltar sozinha.” Eu sabia que ela não gostava das minhas amigas, e que elas eram parte da razão pela qual Clara preferia estar longe. Mas não era apenas isso. Clara sempre foi diferente. Sempre foi… Clara. E eu nunca soube como lidar com isso. Quanto as minhas colegas, fingem ser amigas da minha mãe, enquanto a mesma tenta fugir dos assuntos sempre que tem uma oportunidade. Parei em uma cafeteria que por sorte ainda estava aberta e comprei um chá de maçã, o preferido dela. Um cupcake com uma vela de 23 anos. Quando parei em frente à floricultura, uma parte de mim queria ir embora. Eu era péssimo em lidar com sentimentos. Mas outra parte sabia que não podia deixá-la sozinha. Não hoje. Levei o cupcake comigo, um gesto que parecia estúpido, mas era tudo que eu tinha. Uma vela de 23 anos espetada no topo – pequena e solitária, assim como Clara devia estar se sentindo. Empurrei a porta de vidro com cuidado e entrei, o cheiro doce das flores inundando meus sentidos. E então a vi. Ela estava sentada no chão, os olhos vermelhos e o rosto molhado de lágrimas. A garrafa de vinho entre suas pernas denunciava o quanto estava embriagada. Mas foi o que vi em suas coxas que me fez congelar: cicatrizes. Longas e profundas, marcas que não cicatrizam com facilidade. O motivo responsável por aquilo é o que agora vai me atormentar. Algo dentro de mim se partiu naquele momento, mas minha expressão permaneceu inabalável. — Clara. – Tentei não reparar demais, mas tudo nela me atrai. Ela ergueu a cabeça devagar, piscando como se estivesse tentando entender se eu era real ou fruto da sua mente turva. — Jason? O que você está fazendo aqui? A voz dela saiu arrastada, como se o álcool tivesse embotado seus pensamentos. Abaixei-me ao seu lado, deixando o cupcake sobre uma mesa próxima. — Não podia deixar você passar o aniversário sozinha. Eu sei que sou um idiota, mas as vezes queria me redimir com você. Podemos ser amigos e deixar toda aquelas brigas para trás. – Eu queria muito mais que amizade, mas não a posso fazer isso com ela. Não posso trair ela mais uma vez. Ela soltou uma risada amarga, e o som me atingiu como um soco. — Como se você se importasse. — Clara pegou a garrafa e tomou mais um gole, sem me olhar. — Você nunca se importou, Jason. Nunca. Quantas vezes você quis ser meu amigo? Acho que todas as vezes que tentei ser legal com você, você me zoava de alguma forma. Lembra das vezes que me humilhou na frente daquelas suas amigas, para se sentir melhor que eu? As mesmas que estão esperando você agora. — Não é verdade — falei, a voz baixa, mas firme. — Eu nunca te humilhei na frente de alguém. Você que sempre foi sensível demais. Mas agora eu quero mudar as coisas. Não somos mais aqueles dois adolescentes. Somos adultos agora, Clara. Somos quase irmãos, precisamos nos acertar. — Então por que agora? — Ela virou-se para mim, e seus olhos estavam cheios de dor e ressentimento. — Por que justo hoje? Porque sua mãe mandou? Pois saiba que não vou. Eu não sou sensível, só acho que qualquer pessoa choraria ao ouvir que é uma órfã inútil, bipolar e rejeitada por todos. Elas riam disso, Jason. E para de fingir que se importa comigo. Houve um momento de silêncio pesado entre nós. Queria dizer algo, mas tudo parecia insuficiente. Pois ela tem razão em tudo que está dizendo agora. Mas, eu era adolescente, assim como ela também era. Agia por ciúmes e por medo dela se interessar por alguém. — Eu me importo — repeti, sabendo o quão fraca essa frase soava. — Me importo com você. Por isso estou aqui. Clara riu de novo, um som quebrado que não combinava com ela. — Você nunca ligou para mim. Nem quando morávamos juntos, nem quando suas amigas faziam da minha vida um inferno. Você sempre foi frio, distante. E agora volta como se nada tivesse mudado? Acha mesmo que eu vou acreditar que você mudou? — Talvez porque nada tenha mudado — rebati, cruzando os braços. Minha voz saiu mais dura do que eu pretendia. — Os anos na Marinha me fizeram repensar toda minha vida, credite. Ela arregalou os olhos, e por um instante, parecia que eu havia atravessado uma barreira que não deveria. — Você ainda é a mesma garota — continuei, com frieza. — A mesma que acha que todo mundo vai deixá-la sozinha. — Mas eu voltei. — E você ainda é o mesmo idiota arrogante que acha que pode pisar nas pessoas. — Os olhos dela ardiam de raiva. — Eu te amei, Jason. Eu te amei mais do que qualquer coisa. E sabe o que eu ganhei com isso? Nada. As palavras dela me atingiram com força, mas eu não deixei transparecer. Estava treinado para isso. Confesso que estou surpreso com tudo que acabei de ouvir, não imaginei que ela me amasse dessa forma. Com tanta intensidade. — Você acha que foi fácil para mim? — murmurei, apertando a mandíbula. — Acha que eu não senti nada esses anos longe de você? — Sim, eu acho — ela sussurrou. — Porque você nunca deixou transparecer. Olhei para Clara por um longo momento, tentando encontrar as palavras certas. Mas como eu poderia explicar algo que nem eu entendia completamente? Como dizer que, mesmo distante, ela sempre esteve presente? Que foi o pensamento nela que me manteve firme em alguns dos momentos mais difíceis da minha vida? — Eu não sou bom com isso, Clara — admiti por fim. — Mas eu voltei. Não vou te deixar sozinha outra vez. Ela balançou a cabeça, as lágrimas voltando a escorrer por seu rosto. — Não quero ouvir suas desculpas. Por favor. — Não são desculpas. São fatos. Clara desviou o olhar, como se não pudesse mais suportar a minha presença. — Por que você está aqui, Jason? — A voz dela era apenas um sussurro. Eu me inclinei para mais perto, ignorando a distância que ela tentava colocar entre nós. — Porque, mesmo que você não acredite, eu me importo. Sempre me importei. — Vai embora. — Ela tentou se afastar, mas eu a segurei pelo braço, firme mas sem machucar. — Não. Não vou te deixar assim. Não vou te deixar sozinha novamente. Ela me encarou, seus olhos brilhando de dor e raiva. — Você não tem esse direito. — Eu tenho todo o direito — respondi, a voz fria como aço. — Porque, goste você ou não, eu estou aqui. E não vou a lugar nenhum. Por um momento, tudo que pude ouvir foi o som da chuva lá fora e o ritmo acelerado da nossa respiração. Ela estava quebrada, e eu também, mas de formas diferentes. Então, algo dentro dela pareceu ceder. Clara se soltou, permitindo-se desmoronar pela primeira vez em muito tempo. Segurei-a firme, deixando-a chorar no meu peito. A abracei firme, permitindo que ela colocasse para fora, toda sua dor. Enquanto a chuva continuava a cair lá fora, soube que, pela primeira vez, estava onde deveria estar. E dessa vez, eu não iria a lugar algum.JasonQuando ela me soltou, senti que estávamos mais próximos que nunca. A verdade é que, sempre pertencemos um ao outro de alguma forma. — Feliz aniversário, Clara. — Minha voz saiu baixa, quase um sussurro, enquanto eu segurava o cupcake na frente dela. A vela acesa tremulava com o ar úmido da chuva que vinha de fora, iluminando por um instante o rosto cansado e os olhos marejados dela. Me vi perdido naquele olhar, como se estivesse olhando para Clara de anos atrás, quando chegou sozinha e desolada pelo luto. Clara piscou, confusa e ainda meio fora de si, mas suas mãos trêmulas tocaram o pequeno bolinho. Por um segundo, ela pareceu frágil, como se estivesse tentando se agarrar a qualquer migalha de carinho.— Sopra a vela — murmurei. — Você merece pelo menos isso. É seu aniversário. — Obrigada, Jason. Por tudo. Ela fechou os olhos e soprou, e o mundo pareceu parar. Era um momento pequeno, mas por algum motivo, pesado e cheio de significado. Eu não tinha ideia de como remediar o
ClaraQuando sair da floricultura, parei em um bar familiar e tomei algumas cervejas, já que eu volto sozinha. Tenho uma dor absurda na alma e sinto como se tivesse um buraco enorme nela, mas, quando Jason está por perto, eu me sinto... protegida. Quando cheguei em casa, minha madrinha havia saído com suas amigas e Jason estava sozinho em casa. Subi para meu quarto e me despi, quando de repetente, ele invadiu o quarto sem aviso.Jason estava perto, mais perto do que eu jamais imaginaria que estaria novamente. A chuva lá fora continuava caindo em um ritmo suave, enquanto dentro do quarto, o silêncio entre nós era denso e carregado de tensão. Eu não sabia se deveria me afastar ou simplesmente ceder. As memórias daquele primeiro beijo, quando eu tinha 17 anos, ressurgiram como uma maré que engoliu qualquer lógica que eu ainda tentava manter.— Jason... — sussurrei, a voz vacilando.Ele não disse nada. Seus olhos cinzentos me encaravam intensamente, como se estivesse lutando com algo den
ClaraA floricultura era o único lugar onde eu conseguia respirar. O cheiro de rosas, lírios e jasmim me envolvia como uma manta de conforto, afastando a sensação sufocante que Jason havia deixado para trás. Eu precisava de espaço, precisava fugir das memórias daquele beijo e da revelação devastadora sobre Amélia.Alex me mandou uma mensagem no caminho para o trabalho: decidir trabalhar até às 23:00. Alex: "E então? Que tal jantar hoje à noite? Só nós dois." E só então, quase às 19:00 foi que eu vi sua mensagem, que ele enviou mais cedo. A tentação de aceitar surgiu imediatamente. Eu sabia que ele estava tentando ser gentil e que sua companhia poderia me ajudar a esquecer, ao menos por algumas horas, o desastre que minha vida havia se tornado.Clara: "Ok. Às nove?"Ele respondeu com um emoji sorridente e um simples “Combinado”, e foi isso.Passei restante do tempo que falava cercada pelas flores, mas a paz que tanto buscava parecia fora de alcance. O beijo de Jason ainda queimava me
JasonA casa estava envolta em silêncio. Minha mãe dormia profundamente, e as luzes estavam apagadas. Mas eu não conseguia descansar. O jantar com Alex mexeu comigo de um jeito que eu não queria admitir. Cada minuto em que Clara esteve longe parecia uma afronta, uma confirmação de que ela estava escapando de mim, novamente e agora eu já não posso fazer mais nada. Quando ouvi o som suave da porta se fechando, soube que era ela. Levantei da cama sem pensar, guiado por um impulso que eu não entendia bem. Eu precisava vê-la. Precisava entender por que, mesmo depois de tudo, ela ainda conseguia me deixar assim: inquieto, confuso e com raiva ao mesmo tempo. Porém, a necessidade de senti-la novamente é mais forte que eu. Abri a porta do quarto dela sem bater, como sempre fazia. O direito de invadir o espaço dela havia se tornado um hábito difícil de largar. Mas, dessa vez, o que vi me tirou o fôlego.Clara estava sentada na cama, uma mala aberta ao lado. Que porra é está acontecendo? — O
Clara Não conseguir dormir, os pensamentos sempre se voltam para Jason e acabam me quebrando ainda mais. Quando sair do quarto, minha madrinha já havia colocado a mesa para o café da manhã. Por um momento, senti meu peito doer por saber que essa será a última vez que estaremos nos sentando juntos para um café da manhã. — Bom dia, madrinha. — Lhe dei um beijo no rosto e um abraço em seguida. Não era surpresa alguma, mas de alguma forma diferente, Jason mexeu ainda um pouco mais comigo hoje. Ele estava descendo as escadas vestido com um roupão. Por um momento, imaginei que Amélia fosse descer também, mas nada disso aconteceu e por um instante, nosso olhares se cruzaram. — Sentem-se, ou estão esperando que eu também o façam sentar? — Como sempre, ela é receptiva demais em tudo que faz e isso, de certa forma, faz eu me sentir como se eu fosse uma ingrata. Nos sentamos e o clima não era o mesmo. Havia uma nuvem de sobrecarga ali, entre mim e Jason, como se alguma coisa nos impedisse
Alguns dias depois... Jason Amélia estava deitada na minha cama, mexendo no celular e rindo sozinha de alguma mensagem que havia recebido. Eu, encostado na porta do quarto, não conseguia tirar Clara da cabeça. A cena dela saindo com Alex no bingo havia acendido uma raiva que eu mal conseguia controlar. Não sei até quando irei com seguir controlar tudo isso, alguma hora vou acabar explodindo. — Jason? — Amélia chamou, sem tirar os olhos da tela. — Preciso voltar para Nova York amanhã. Tenho um projeto importante na faculdade e não posso faltar. Já tirei mais dias do que eu deveria para vir te ver. — Não precisava fazer isso por mim. — Ela me olhou de relance, mas voltou a olhar para gela do celular novamente. — Jason... não precisa ser assim, quando eu estiver formada em direito, vamos ter mais tempo para nós dois. Mas estarei fazendo o que puder para que nosso casamento seja perfeito. Eu assenti, como se isso importasse. — Tudo bem. Vou resolver as coisas do casamento daqui
JasonO aroma familiar de lavanda e terra molhada da floricultura encheu meus pulmões assim que abri a porta. Fazia cinco anos que eu não pisava aqui. A casa estava quase idêntica ao que eu lembrava – acolhedora, cheia de flores por todos os lados. Mas o ar, aquele que me envolvia agora, era mais denso. Parecia que estava voltando no tempo, parece até... com o dia que Clara chegou para morar conosco. Minha mãe estava ao telefone no balcão da loja, sem perceber minha presença. Seus cachos loiros balançavam conforme ela gesticulava, provavelmente organizando mais uma das suas festas sociais. Minhas amigas de infância estavam ali, rindo, distraídas com alguma conversa animada. Ninguém sabia que eu voltaria hoje. Afinal, elas sempre vem visitar minha mãe, mas o que me intriga é: por quê? "Surpresa", pensei, deixando um sorriso discreto se formar nos lábios. Embora não fosse sincero. Antes que eu pudesse me anunciar, ouvi passos leves vindo do corredor. Quando me virei, meu olhar encont
JasonEu deveria estar em casa agora, ouvindo as risadas falsas das minhas antigas amigas e assistindo minha mãe se desdobrar para fazer o jantar perfeito. Era o mínimo que ela podia fazer depois de cinco anos sem saber se eu voltaria vivo. Mas, claro, havia um problema: Clara. Ela não tinha voltado para casa, e minha mãe insistiu para que eu fosse atrás dela no rinque. "Hoje é o aniversário dela, Jason", minha mãe disse com um suspiro pesado. "Só você e eu lembramos, e eu queria que ela estivesse aqui. Aquela menina já passou por muita coisa sozinha. Não merece passar seu aniversário na solidão mais uma vez". Mais uma vez? Então, quer dizer que os anos que eu passei longe, ela também passou sozinha? Era difícil dizer não para minha mãe, principalmente quando se tratava de Clara. Suspirei e peguei as chaves. As amigas dela nunca foram muitas, e as minhas — as que estavam em casa agora — eram justamente a razão de Clara preferir fugir em vez de comemorar. Eu sabia disso. Sempre soube