-- Você diz que veio de uma ilha Iruka. Onde fica? – a jovem mais alta, de olhar mais severo e cabelos que iam até a cintura, começou. Era impressionante como ela conseguia ser intimidadora, até sua pérola amarela dava-lhe um ar de superioridade inata. Mikoto tentou não gaguejar de novo.
-- No sul. É a ilha mais ao sul que existe.
-- Isso que você carrega é uma pérola celestial. Só existem duas no mundo, e ambas estão aqui, então onde você conseguiu essa? – a voz da alta-sacerdotisa foi o bastante para Mikoto se encolher.
-- Eu não sei, ela apareceu perto de mim.
-- O quê?
-- Poderia nos contar o que a trouxe aqui? – a jovem mais baixa, de cabelos cortados na altura dos ombros, perguntou com mais gentileza. A mulher concordou.
-- Sim. Por que está aqui?
Mikoto não soube dizer o motivo porque ela mesma não sabia, e só agora que pensava nisso. Percebia o tamanho da loucura que fizera ao fugir de casa num navio para o continente, impulsionada por um sonho. Com certeza a achariam uma louca.
Vendo que ela não ia dar uma resposta satisfatória, a jovem mais alta suspirou e falou mais calmamente:
-- Ela está mais confusa do que nós. Vamos fazer uma pergunta de cada vez – ela se dirigiu a Mikoto – Como você não sabe de onde sua pérola veio?
-- Essa pedra foi encontrada na praia, trazida pelas ondas de uma tempestade. Me disseram que ela brilhou naquela vez também, mas eu não acreditava, porque nunca a vi brilhar. Até hoje.
Mikoto falou com toda a sinceridade que conseguia expressar, e ainda assim era encarada com desconfiança. Em resposta ela encolheu os ombros. Queria poder encolher o corpo inteiro, até desaparecer dali.
Foi a vez da alta-sacerdotisa falar:
-- Se nasceu em uma ilha tão distante, o que a trouxe aqui?
-- Eu tive um sonho – as palavras saíram quase inaudíveis.
-- Como?
-- Há alguns dias eu comecei a ter sonhos estranhos sobre lugares que eu não conheço, e coisas ruins acontecendo neles. Depois sonhei com essa cidade durante a cerimônia de nomeação. Ontem entrei de clandestina em um navio que parou no nosso porto, e que viria para cá – Mikoto tagarelou, era mais fácil que falasse tudo de uma vez.
As três se entreolharam intrigadas. A jovem de olhar mais gentil indagou:
-- E você era uma miko na sua ilha, não é?
-- Sim. Fui treinada pela alta-sacerdotisa, Megumi-sama, desde criança.
-- Sua mestra e seus pais aceitaram você vir sozinha e clandestina? – a mulher pôs a mão na cintura, incrédula.
-- Não tenho pais, fui criada por Megumi-sama, a alta-sacerdotisa de casa, e ela não aceitou nada. Eu fugi.
Agora as três a encaravam boquiabertas, mas Mikoto já esperava por essa reação. Depois que o choque inicial passou, elas não mais a olhavam com tanta desconfiança. A alta-sacerdotisa perguntou:
-- Como assim você não tem pais? Eles morreram quando você era pequena?
-- Não. Eu não nasci na ilha, fui encontrada numa canoa que encalhou na praia, na mesma noite em que a pedra apareceu na areia. Megumi-sama achou que era um sinal dos céus e me criou como aprendiz.
-- Você se refere a esse colar como uma pedra. Não está ciente do que é?
-- Eu achava que era isso mesmo. Megumi-sama dizia para que eu ficasse com ela porque devia ser importante, já que apareceu junto comigo. Nunca a chamou de pérola.
-- E com razão. Somente nosso clã sabe exatamente o que elas são. Por isso não entendo como pode existir outra no mundo e nós não termos conhecimento disso.
A mulher voltou-se para as duas meninas e elas começaram a cochichar, mas naquele ambiente vazio e quieto, Mikoto não precisou se esforçar para ouvir o que diziam.
-- Isso que ela falou é tudo muito estranho.
-- Não podemos negar que ela parece mesmo uma miko.
-- Poderia ser uma armadilha, um ardil para nos pegar desprevenidas.
-- Se o que ela diz é verdade, podemos verificar facilmente.
-- Até lá, talvez seja melhor que fique perto de nós, por garantia.
Mikoto torcia as mãos quando elas terminaram o debate e voltaram-se novamente para a jovem. A alta-sacerdotisa começou:
-- A pérola ter reagido à cerimônia em sua posse mostra que você tem o poder e as qualidades de uma verdadeira miko, mas como pode, se não pertence ao nosso clã? – era uma pergunta retórica, então ela prosseguiu sem esperar que alguém respondesse – Até tirarmos a limpo toda a sua história, acho que terá que ficar conosco.
-- E ir com a gente na missão amanhã – a mais baixa acrescentou com um estranho sorriso no rosto.
-- Como?! – Mikoto não conteve a exclamação.
-- A cerimônia na qual você tão teatralmente roubou os holofotes era a nossa preparação – a mais alta explicou – Depois de nossas pérolas serem abençoadas, nós vamos sair em uma missão, em nome do nosso clã.
-- Não, eu não posso ir com vocês. Tenho que voltar para casa, eu nem deveria estar aqui – Mikoto se arrependia mais a cada segundo por estar ali. Fora uma ideia absurda fugir, e tudo o que fizera até agora foi atrapalhar as sacerdotisas do clã Kairiku em uma hora importante.
A jovem mais baixa passou o braço sobre seus ombros e disse amigavelmente:
-- Relaxe, vamos falar com sua mestra e dizer que que você vai ficar bem com a gente. Partimos amanhã de manhã, e enquanto isso, por que não nos conhecemos melhor? Meu nome é Sayuri, e a mal-humorada aqui é minha prima Takako – ela indicou a mais alta, que fechou a cara ainda mais – E a nossa mestra é Tamayori-sama, nossa sacerdotisa principal. Dispense a ela o mesmo respeito que tem pela sua mestra.
-- Sim – Mikoto murmurou, encarando o chão.
-- Arranjem um quarto para ela passar a noite, eu devo fazer um pronunciamento – Tamayori se dirigiu às portas. Funcionários do templo as abriram e a mulher anunciou à multidão – Os céus nos enviaram um presente inesperado: uma nova pérola celestial, trazida por uma nova sacerdotisa que nos auxiliará na missão.
O resto Mikoto não ouviu, pois foi conduzida por Takako e Sayuri para uma saída nos fundos do templo, que levava a outro caminho para a base da montanha.
-- Eu não devia estar aqui, me deixem voltar para casa, por favor. Não sou uma miko importante como vocês, só trabalho num pequeno santuário – Mikoto pedia enquanto andavam.
-- Sua pérola diz o contrário – Takako murmurou e olhou para ela – Por acaso na sua ilha as pessoas usam quimono o tempo todo?
-- Não, só quem trabalha no santuário, enquanto fazemos as tarefas.
Agora ela queria mais ainda ter pensado no que usava antes de sair escondida num impulso, e ter vestido algo mais prático. Com aquela roupa junto à uma fita presa num laço em seu cabelo, com certeza ela tinha uma aparência mais infantil do que gostaria.
No pé da montanha ficavam as casas do clã Kairiku. Um pequeno agrupamento de pessoas aguardava a volta das duas jovens, e não puderam conter a surpresa ao ver a terceira menina desconhecida acompanhando-as. Takako ficou e explico o que acontecera enquanto Sayuri guiava, ou melhor, puxava Mikoto para uma casa que devia ser a sua.
-- Você pode passar a noite no quarto de hóspedes.
-- Acho que não foi isso que sua mestra quis dizer com “arranjar um quarto” para mim – Mikoto murmurou. Aquele quarto era bem diferente do seu em casa.
-- Ela não especificou nada – Sayuri deu de ombros, sorrindo travessamente – Que tal falarmos um pouco mais sobre você?
-- Não tenho nada demais para contar, eu só trabalhei como miko a vida toda com minha avó, e preciso voltar para casa. Megumi-sama vai me matar se souber que além de fugir, eu atrapalhei uma cerimônia do clã Kairiku – Mikoto esperava que isso despertasse alguma pena e assim a deixassem ir, porque era verdade.
-- Ah, já disse para não se preocupar, Tamayori-sama é muito boa com diplomacia, com certeza vai amansar a sua mestra – Sayuri ainda sorria ao conduzir Mikoto pelo interior da casa, ignorando mais alguns olhares confusos, e abriu uma porta para um quarto – Descanse um pouco até os ânimos de todos se acalmarem.
Mikoto se sentou na cama, uma cama de verdade, não um futon como aquele em que sempre dormira, e esperou o que pareceu uma eternidade, mergulhada num silêncio sufocante.
Sayuri não demorou meia hora para voltar, diferente de Takako, que só apareceu no quarto de hóspedes quando já passava de meio-dia. Ela anunciou antes de fechar a porta:-- Contatamos sua mestra – Mikoto gelou ao ouvir isso – Ela ficou bem zangada a princípio, mas depois que Tamayori-sama explicou o que aconteceu quando você chegou, ela pediu para dar um recado: “Mikoto, se você foi recrutada pelo clã Kairiku, fique aí e faça tudo que as sacerdotisas ordenarem. Honre o nome de nossa ilha. ”A menina precisou de um instante para se recompor. Não queria acreditar que sua avó falara aquilo, mas do jeito que ela sempre fora tão respeitosa ao falar sobre o clã Kairiku, não era muito difícil de imaginá-la dizendo exatamente essas palavras.Se Megumi-sama ordenara que ela ficasse em vez de voltar para casa, então todas as s
Sayuri se dedicou a explorar o convés no momento em que as pessoas no porto ficaram indistinguíveis à distância. Takako pegou as bolsas de viagem e dirigiu-se às cabines que passariam a ocupar. Mikoto ainda ficou agarrada à amurada, sentindo-se um pouco enjoada com o movimento do navio.Ela ainda estava nessa posição quando Sayuri voltou de sua pequena excursão e sugeriu, na tentativa de distraí-la:-- Que tal mostrar um pouco do que você sabe de naginata?As duas usaram cabos de vassoura, os objetos mais parecidos com a arma que encontraram a bordo, e Mikoto passou algumas horas divertidas mostrando a Sayuri como manejá-la. Ela não era muito boa nisso.Na hora do almoço, Takako interrompeu o treinamento (ou seria brincadeira?), e uma ofegante, porém alegre Sayuri largou seu cabo de vassoura e puxou Mikoto para um abraço, quase pulando de al
Mikoto nunca estivera num lugar remotamente parecido com aquele palácio, e o espanto estava mais do que claro em sua boca aberta e na forma como olhava para todos os lados com os olhos arregalados. -- Talvez seja melhor você esperar aqui – Takako sugeriu ao cruzarem a entrada do prédio – Isso vai ser só uma discussão política. Sayuri fez menção de protestar, então Mikoto se apressou em concordar. -- Eu não saberia nem como me portar na frente do rei – ela deu de ombros e ficou na entrada, observando as duas e os dois guardas se distanciarem. Quando elas desapareceram atrás das portas duplas, Mikoto voltou-se para o jardim. Ele fora o principal motivo para ela querer ficar. Era enorme, e tão cheio de flores e grama como Mikoto nunca vira. Havia tantas flores no mesmo lugar, os poucos jardins de Iruka eram sempre pequenos, com os mesmos tipos de pequenas flores, enquanto aquelas eram grandes e tão diferentes umas das outras. Andar por entre os c
A noite trouxe o silêncio e a escuridão que Mikoto nunca vira em uma cidade grande, era bem mais assustador que as noites em Iruka, cujo silêncio era constantemente quebrado pelo rugir suave das ondas ou o vento ao longe. Apoiada na amurada do navio, com o queixo sobre a mão, a jovem cochilava para acordar sobressaltada logo em seguida. Já devia ser madrugada, e ela não era acostumada a ficar acordada até tão tarde. Em total contraste, Takako e Sayuri estavam completamente acordadas, no píer, atentas a qualquer movimento e ruído. Outros tripulantes, incluindo Yukio e Kurono, também procuravam, espalhados pelo porto e ruas, sem nenhum sinal de anormalidade. Mikoto reprimiu o décimo bocejo dos últimos cinco minutos e estava prestes a pedir para se retirar e dormir quando pensou ter visto algo no céu. Julgou ser uma ilusão de ótica causada pelo sono e pelo escuro, e esfregou os olhos, mas quando os abriu, ainda estava ali, e se elevava acima dos prédios.
O gato youkai rosnou e Yasha voltou o olhar para a porta também. A mobilidade de Mikoto voltou como que por mágica, e ela disparou a toda velocidade para a sala de espera, o hakama levantado de novo para ir mais rápido.Quase derrubou a porta e matou Takako e Sayuri de susto ao chegar, e ainda ofegante, só conseguiu resumir o que vira. As duas miko ficaram boquiabertas, a mais velha precisou de um minuto para articular:-- Ela invocou um youkai?-- Igual a como nós conjuramos os kami nos papéis de ofuda.-- Vamos falar com o rei Sujin agora, e pegamos essa mulher de uma vez. Chego a pensar se ela mesma não é um youkai disfarçado – Sayuri foi na frente.As três encontraram a salas de reunião vazia exceto pelo rei Sujin e dois conselheiros, com quem debatia fervorosamente, mas todos se calaram com a entrada abrupta das meninas.-- Perdoe nossa intromissão,
Não que Mikoto nunca tivesse visto um cadáver, pois como miko assistente do santuário de Iruka, acompanhara Megumi-sama em várias cerimônias fúnebres, mas nenhum dos mortos que ela ajudou a velar se encontrava num estado remotamente parecido com aquele. Ensanguentados, alguns desmembrados, mas todos com a mesma expressão de medo congelada em seus rostos. -- Oh, céus – Yukio balbuciou e puxou Mikoto pelo ombro para junto de si – Não olhe, senhorita. Ela não conseguia desviar o olhar do rosto do homem à sua frente, cujos olhos vazios encaravam-na de volta. O rapaz desviou a luz do celular e ligou para o navio. -- O Santuário Vermelho foi atacado, todos aqui estão mortos – ele tentava falar, mas seu pânico dificultava a coerência das palavras. Mikoto desviou-se do sacerdote morto e dirigiu-se à entrada do prédio, tinha a impressão de que não estava vazio. Apertou os olhos, sem enxergar nada além do breu em seu interior. Devia haver um interrupto
Ainda estava escuro quando Mikoto acordou, e ela estava de volta ao Genbu. Um pouco trêmula, ela foi para o convés, onde Takako e Sayuri conversavam com um grupo do que pareciam policiais e guardas do palácio.Mikoto esperou que terminassem para aparecer na frente das primas. Assim que a viu, Sayuri a puxou num abraço e Takako alisou seu cabelo, ambas igualmente aliviadas por vê-la de pé.-- Ficamos tão preocupadas quando recebemos aquela ligação.-- Que bom que você não se feriu.-- O que aconteceu? Só me lembro de Yasha quase me apunhalar – sua voz falhou ao pronunciar a última palavra, e ela recomeçou a tremer com a lembrança.-- Ela recuou, e os youkai fugiram com ela – Sayuri apressou-se em responder, e uma sombra caiu sobre seu rosto – Mas fizeram muito estrago.Mikoto pôs a mão sobre a boca aber
O balançar enjoativo do navio derrubou Mikoto assim que passou do rio para o mar. Felizmente, dessa vez ela teve com o que se concentrar: os dias que passara sem treinar com a naginata agora podiam ser compensados.Sayuri também ficou interessada e novamente tentou manejá-la, e acabou se desequilibrando e deixando a naginata cair várias vezes comicamente, para o deleite de Takako, que se dobrava de tanto rir a cada falha da prima.Conforme se aproximavam de Ao, no entanto, o clima tornou-se cada vez mais pesado. Sayuri não tentou mais usar a naginata e Takako mantinha o semblante sério quase o tempo inteiro, e as duas frequentemente conversavam aos sussurros. Mikoto se perguntava sobre o que elas falavam, e só tem sua resposta quando atracaram na capital.-- É melhor você vir comigo ver Ayahito – Sayuri disse ao desembarcarem. Mikoto olhou para Takako.-- E o que você vai fazer?