A capital sagrada de Yamato era dez vezes maior e mais movimentada do que Mikoto imaginara. Carros e motos passavam zunindo pelas ruas, as pessoas se espremiam nas calçadas apinhadas, e prédios mais altos do que montanhas se erguiam acima de tudo.
Mikoto teria ficado impressionada se não estivesse tão perdida e confusa. Sua pequena ilha não era nem de longe tão caótica, barulhenta e cheia de gente como ali, e com certeza ela agora parecia uma simplória moça do campo perdida na cidade grande, o que não deixava de ser verdade.
Com certeza ela se destacava na multidão, vestida com um quimono tradicional e botas surradas em meio a tantos ternos e calças jeans com tênis. Se não tivesse saído de casa numa corrida tão desenfreada, com certeza teria vestido algo menos chamativo e antiquado.
Porém, ninguém lhe dava atenção.
Todos pareciam ir na mesma direção, mas a menina não conseguia ver para onde, e perguntou a um senhor em uma barraquinha na calçada:
-- Aonde todos estão indo?
-- Você não sabe? – o homem a olhou incrédulo – Você só pode ser de fora. Vão para o Santuário Branco, ver a cerimônia de nomeação das novas sacerdotisas do clã Kairiku.
-- Então eu cheguei a tempo! A cerimônia ainda não começou!
-- Eu não disse isso, ela já está acontecendo. Se não quiser perder, é melhor ser boa corredora.
Mikoto saiu em disparada e embrenhou-se na multidão, que subiu uma longa escadaria para o templo na montanha. Ela precisou levantar a barra do hakama para galgar os degraus mais rapidamente, mas parecia que eles não tinham fim, como uma montanha podia ser tão alta? O caminho para o santuário de casa não era mais que uma colina comparado a aquele.
Quando enfim atravessou o torii, suas pernas doíam e seus pulmões pareciam em brasa, mas ela continuou andando, apenas uma massa compacta de espectadores se encontrava entre Mikoto e seu objetivo.
Nunca ficou tão feliz por ser tão baixinha e magricela quanto naquele momento, se esgueirando facilmente entre as pessoas que se empurravam para ter a melhor visão.
Com algum esforço e suor, Mikoto chegou na frente dos espectadores e viu perfeitamente o pátio em frente ao templo, onde a cerimônia acontecia. Duas meninas, que deviam ser uns poucos anos mais velhas do que ela, se postavam diante de uma mulher mais velha, que brandia um suzu numa mão e um gohei na outra enquanto proclamava uma oração. As três usavam quimonos cerimoniais brancos com hakamas vermelhos.
Mikoto as observava encantada. A única miko que ela já vira atuando fora sua mestra, Megumi-sama, que apesar da idade avançada, conduzia as cerimônias da ilha com uma postura digna, mas aquela mulher tinha uma voz tão imponente que prendia a atenção de quem ouvisse.
O santuário também era impressionante, maior e mais bem conservado. Naquela montanha mais alta, a construção estava melhor protegida da maresia, e a tinta nas paredes não descascara. Até mesmo o torii era maior que o pequeno portal de casa.
As fofocas que vinham das outras ilhas e do continente diziam que as sacerdotisas do clã Kairiku tinham uma espécie de poder sobrenatural. Se isso existisse mesmo, a jovem bem que gostaria de ver, mas era verdade que aquele clã era dedicado a tarefas sacerdotais há gerações, e tinha muito prestígio até mesmo entre os reis e com o próprio imperador.
Mikoto tivera muito medo de perder a cerimônia, e teve certeza que a perderia quando o barco que a trouxera apresentou defeito no motor na noite anterior. Por isso era tão difícil de acreditar que estava ali, uma testemunha daquele evento sagrado.
Sem perceber, ela levou a mão à pedra que carregava no pescoço, escondida sob a roupa.
A mulher, sem dúvida a alta-sacerdotisa, terminou a oração e ordenou às duas meninas à sua frente.
-- Apresentem suas pérolas celestiais.
Elas estenderam a mão direita. Cada uma segurava uma pedra perfeitamente redonda e lapidada, que reluziam à luz do sol como joias. Mesmo à distância, Mikoto viu que uma delas era verde-água e a outra era amarela, cor de areia.
A alta-sacerdotisa balançou o suzu e o gohei acima das pedras e anunciou:
-- Que as bênçãos do céu recaiam sobre suas pérolas, que concedam poder, coragem e sabedoria para realizar sua missão. Como alta-sacerdotisa do Santuário Branco, eu agora as consagro portadoras e guardiãs destas pérolas, com os títulos de sacerdotisa da terra e sacerdotisa do mar.
Os guizos do suzu tilintaram suavemente, e as pedras nas mãos das duas jovens miko brilharam verde e amarela, como pequenas estrelas coloridas. A multidão ofegou encantada, porém, não apenas por tão mística visão.
Mikoto percebeu que muitas cabeças estavam voltadas para ela, porque uma terceira luz brilhava, emanando de seu peito.
Debaixo dos olhares das três sacerdotisas e de toda a multidão, uma Mikoto apavorada tentava esconder com as mãos o brilho azul que se acendera do nada e sobrepujara até as dobras de seu quimono.
-- O que significa isso? – a alta-sacerdotisa bradou e veio andando a passos largos em sua direção, com uma cara nada amigável.
Mikoto teria novamente se embrenhado no meio das pessoas e desaparecido na multidão, mas aconteceu que a pessoa a seu lado era um guarda do santuário. Ele agarrou seu braço antes que conseguisse se afastar e a segurou onde estava até a alta-sacerdotisa parar à sua frente.
O olhar da mulher era dez vezes mais intimidador que o de Megumi-sama, e Mikoto sentiu o corpo inteiro começar a tremer imediatamente.
-- Quem é você?
-- Mikoto, sacerdotisa assistente do santuário da ilha Iruka – ela gaguejou. As outras duas miko olhavam para ela por cima do ombro da mestra, uma delas tinha o olhar igualmente severo, enquanto a outra a fitava com curiosidade. Mikoto percebeu, um pouco intimidada, como eram altas.
-- O que você tem aí? – a mulher questionou, e seu tom não tolerava negação. Quando Mikoto tirou seu colar de baixo da roupa com a mão tomada por tremores e o mostrou, os olhos dela se arregalaram – Onde conseguiu essa pérola?!
-- O quê?
-- É melhor entrarmos.
Ela e as duas jovens voltaram-se para o templo, e o guarda empurrou Mikoto na mesma direção. Enquanto andavam, as três tinham um fervoroso debate, do qual a menina só captava alguns trechos.
-- O que era aquilo?
-- Era uma pérola de verdade?
-- Não pode...?
-- O brilho é igual...
-- Estranho.
-- ... mas saberemos em breve.
Após adentrar o templo, o guarda enfim largou Mikoto e se retirou. As grandes portas duplas se fecharam com um estrondo, silenciando o burburinho da multidão lá fora e prendendo a trêmula Mikoto ali dentro com as três miko, que naquele momento mais pareciam um tribunal.
GLOSSÁRIO
Hakama: vestimenta tradicional japonesa, que cobre a parte de baixo do corpo. Pode ser uma larga calça ou uma saia, usada em conjunto com o quimono
Suzu: árvore de guizos usados pelas miko em cerimônias
Gohei: bastão de madeira decorados com serpentinas brancas de papel (shide), também usados em cerimônias xintoístas
Torii: portão tradicional construído próximo a santuários xintoístas, para indicar a proximidade do templo, e a passagem entre o mundo humano e dos kami. Composto por dois pilares unidos por uma trave horizontal, na maioria das vezes pintado de vermelho.
-- Você diz que veio de uma ilha Iruka. Onde fica? – a jovem mais alta, de olhar mais severo e cabelos que iam até a cintura, começou. Era impressionante como ela conseguia ser intimidadora, até sua pérola amarela dava-lhe um ar de superioridade inata. Mikoto tentou não gaguejar de novo.-- No sul. É a ilha mais ao sul que existe.-- Isso que você carrega é uma pérola celestial. Só existem duas no mundo, e ambas estão aqui, então onde você conseguiu essa? – a voz da alta-sacerdotisa foi o bastante para Mikoto se encolher.-- Eu não sei, ela apareceu perto de mim.-- O quê?-- Poderia nos contar o que a trouxe aqui? – a jovem mais baixa, de cabelos cortados na altura dos ombros, perguntou com mais gentileza. A mulher concordou.-- Sim. Por que está aqui?Mikoto não soube dizer o motivo porque ela m
Sayuri não demorou meia hora para voltar, diferente de Takako, que só apareceu no quarto de hóspedes quando já passava de meio-dia. Ela anunciou antes de fechar a porta:-- Contatamos sua mestra – Mikoto gelou ao ouvir isso – Ela ficou bem zangada a princípio, mas depois que Tamayori-sama explicou o que aconteceu quando você chegou, ela pediu para dar um recado: “Mikoto, se você foi recrutada pelo clã Kairiku, fique aí e faça tudo que as sacerdotisas ordenarem. Honre o nome de nossa ilha. ”A menina precisou de um instante para se recompor. Não queria acreditar que sua avó falara aquilo, mas do jeito que ela sempre fora tão respeitosa ao falar sobre o clã Kairiku, não era muito difícil de imaginá-la dizendo exatamente essas palavras.Se Megumi-sama ordenara que ela ficasse em vez de voltar para casa, então todas as s
Sayuri se dedicou a explorar o convés no momento em que as pessoas no porto ficaram indistinguíveis à distância. Takako pegou as bolsas de viagem e dirigiu-se às cabines que passariam a ocupar. Mikoto ainda ficou agarrada à amurada, sentindo-se um pouco enjoada com o movimento do navio.Ela ainda estava nessa posição quando Sayuri voltou de sua pequena excursão e sugeriu, na tentativa de distraí-la:-- Que tal mostrar um pouco do que você sabe de naginata?As duas usaram cabos de vassoura, os objetos mais parecidos com a arma que encontraram a bordo, e Mikoto passou algumas horas divertidas mostrando a Sayuri como manejá-la. Ela não era muito boa nisso.Na hora do almoço, Takako interrompeu o treinamento (ou seria brincadeira?), e uma ofegante, porém alegre Sayuri largou seu cabo de vassoura e puxou Mikoto para um abraço, quase pulando de al
Mikoto nunca estivera num lugar remotamente parecido com aquele palácio, e o espanto estava mais do que claro em sua boca aberta e na forma como olhava para todos os lados com os olhos arregalados. -- Talvez seja melhor você esperar aqui – Takako sugeriu ao cruzarem a entrada do prédio – Isso vai ser só uma discussão política. Sayuri fez menção de protestar, então Mikoto se apressou em concordar. -- Eu não saberia nem como me portar na frente do rei – ela deu de ombros e ficou na entrada, observando as duas e os dois guardas se distanciarem. Quando elas desapareceram atrás das portas duplas, Mikoto voltou-se para o jardim. Ele fora o principal motivo para ela querer ficar. Era enorme, e tão cheio de flores e grama como Mikoto nunca vira. Havia tantas flores no mesmo lugar, os poucos jardins de Iruka eram sempre pequenos, com os mesmos tipos de pequenas flores, enquanto aquelas eram grandes e tão diferentes umas das outras. Andar por entre os c
A noite trouxe o silêncio e a escuridão que Mikoto nunca vira em uma cidade grande, era bem mais assustador que as noites em Iruka, cujo silêncio era constantemente quebrado pelo rugir suave das ondas ou o vento ao longe. Apoiada na amurada do navio, com o queixo sobre a mão, a jovem cochilava para acordar sobressaltada logo em seguida. Já devia ser madrugada, e ela não era acostumada a ficar acordada até tão tarde. Em total contraste, Takako e Sayuri estavam completamente acordadas, no píer, atentas a qualquer movimento e ruído. Outros tripulantes, incluindo Yukio e Kurono, também procuravam, espalhados pelo porto e ruas, sem nenhum sinal de anormalidade. Mikoto reprimiu o décimo bocejo dos últimos cinco minutos e estava prestes a pedir para se retirar e dormir quando pensou ter visto algo no céu. Julgou ser uma ilusão de ótica causada pelo sono e pelo escuro, e esfregou os olhos, mas quando os abriu, ainda estava ali, e se elevava acima dos prédios.
O gato youkai rosnou e Yasha voltou o olhar para a porta também. A mobilidade de Mikoto voltou como que por mágica, e ela disparou a toda velocidade para a sala de espera, o hakama levantado de novo para ir mais rápido.Quase derrubou a porta e matou Takako e Sayuri de susto ao chegar, e ainda ofegante, só conseguiu resumir o que vira. As duas miko ficaram boquiabertas, a mais velha precisou de um minuto para articular:-- Ela invocou um youkai?-- Igual a como nós conjuramos os kami nos papéis de ofuda.-- Vamos falar com o rei Sujin agora, e pegamos essa mulher de uma vez. Chego a pensar se ela mesma não é um youkai disfarçado – Sayuri foi na frente.As três encontraram a salas de reunião vazia exceto pelo rei Sujin e dois conselheiros, com quem debatia fervorosamente, mas todos se calaram com a entrada abrupta das meninas.-- Perdoe nossa intromissão,
Não que Mikoto nunca tivesse visto um cadáver, pois como miko assistente do santuário de Iruka, acompanhara Megumi-sama em várias cerimônias fúnebres, mas nenhum dos mortos que ela ajudou a velar se encontrava num estado remotamente parecido com aquele. Ensanguentados, alguns desmembrados, mas todos com a mesma expressão de medo congelada em seus rostos. -- Oh, céus – Yukio balbuciou e puxou Mikoto pelo ombro para junto de si – Não olhe, senhorita. Ela não conseguia desviar o olhar do rosto do homem à sua frente, cujos olhos vazios encaravam-na de volta. O rapaz desviou a luz do celular e ligou para o navio. -- O Santuário Vermelho foi atacado, todos aqui estão mortos – ele tentava falar, mas seu pânico dificultava a coerência das palavras. Mikoto desviou-se do sacerdote morto e dirigiu-se à entrada do prédio, tinha a impressão de que não estava vazio. Apertou os olhos, sem enxergar nada além do breu em seu interior. Devia haver um interrupto
Ainda estava escuro quando Mikoto acordou, e ela estava de volta ao Genbu. Um pouco trêmula, ela foi para o convés, onde Takako e Sayuri conversavam com um grupo do que pareciam policiais e guardas do palácio.Mikoto esperou que terminassem para aparecer na frente das primas. Assim que a viu, Sayuri a puxou num abraço e Takako alisou seu cabelo, ambas igualmente aliviadas por vê-la de pé.-- Ficamos tão preocupadas quando recebemos aquela ligação.-- Que bom que você não se feriu.-- O que aconteceu? Só me lembro de Yasha quase me apunhalar – sua voz falhou ao pronunciar a última palavra, e ela recomeçou a tremer com a lembrança.-- Ela recuou, e os youkai fugiram com ela – Sayuri apressou-se em responder, e uma sombra caiu sobre seu rosto – Mas fizeram muito estrago.Mikoto pôs a mão sobre a boca aber