O Conto da Donzela do Santuário
O Conto da Donzela do Santuário
Por: Victoria Franco Nogueira
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A capital sagrada de Yamato era dez vezes maior e mais movimentada do que Mikoto imaginara. Carros e motos passavam zunindo pelas ruas, as pessoas se espremiam nas calçadas apinhadas, e prédios mais altos do que montanhas se erguiam acima de tudo.

Mikoto teria ficado impressionada se não estivesse tão perdida e confusa. Sua pequena ilha não era nem de longe tão caótica, barulhenta e cheia de gente como ali, e com certeza ela agora parecia uma simplória moça do campo perdida na cidade grande, o que não deixava de ser verdade.

Com certeza ela se destacava na multidão, vestida com um quimono tradicional e botas surradas em meio a tantos ternos e calças jeans com tênis. Se não tivesse saído de casa numa corrida tão desenfreada, com certeza teria vestido algo menos chamativo e antiquado.

Porém, ninguém lhe dava atenção.

Todos pareciam ir na mesma direção, mas a menina não conseguia ver para onde, e perguntou a um senhor em uma barraquinha na calçada:

-- Aonde todos estão indo?

-- Você não sabe? – o homem a olhou incrédulo – Você só pode ser de fora. Vão para o Santuário Branco, ver a cerimônia de nomeação das novas sacerdotisas do clã Kairiku.

-- Então eu cheguei a tempo! A cerimônia ainda não começou!

-- Eu não disse isso, ela já está acontecendo. Se não quiser perder, é melhor ser boa corredora.

Mikoto saiu em disparada e embrenhou-se na multidão, que subiu uma longa escadaria para o templo na montanha. Ela precisou levantar a barra do hakama para galgar os degraus mais rapidamente, mas parecia que eles não tinham fim, como uma montanha podia ser tão alta? O caminho para o santuário de casa não era mais que uma colina comparado a aquele.

Quando enfim atravessou o torii, suas pernas doíam e seus pulmões pareciam em brasa, mas ela continuou andando, apenas uma massa compacta de espectadores se encontrava entre Mikoto e seu objetivo.

Nunca ficou tão feliz por ser tão baixinha e magricela quanto naquele momento, se esgueirando facilmente entre as pessoas que se empurravam para ter a melhor visão.

Com algum esforço e suor, Mikoto chegou na frente dos espectadores e viu perfeitamente o pátio em frente ao templo, onde a cerimônia acontecia. Duas meninas, que deviam ser uns poucos anos mais velhas do que ela, se postavam diante de uma mulher mais velha, que brandia um suzu numa mão e um gohei na outra enquanto proclamava uma oração. As três usavam quimonos cerimoniais brancos com hakamas vermelhos.

Mikoto as observava encantada. A única miko que ela já vira atuando fora sua mestra, Megumi-sama, que apesar da idade avançada, conduzia as cerimônias da ilha com uma postura digna, mas aquela mulher tinha uma voz tão imponente que prendia a atenção de quem ouvisse.

O santuário também era impressionante, maior e mais bem conservado. Naquela montanha mais alta, a construção estava melhor protegida da maresia, e a tinta nas paredes não descascara. Até mesmo o torii era maior que o pequeno portal de casa.

As fofocas que vinham das outras ilhas e do continente diziam que as sacerdotisas do clã Kairiku tinham uma espécie de poder sobrenatural. Se isso existisse mesmo, a jovem bem que gostaria de ver, mas era verdade que aquele clã era dedicado a tarefas sacerdotais há gerações, e tinha muito prestígio até mesmo entre os reis e com o próprio imperador.

Mikoto tivera muito medo de perder a cerimônia, e teve certeza que a perderia quando o barco que a trouxera apresentou defeito no motor na noite anterior. Por isso era tão difícil de acreditar que estava ali, uma testemunha daquele evento sagrado.

Sem perceber, ela levou a mão à pedra que carregava no pescoço, escondida sob a roupa.

A mulher, sem dúvida a alta-sacerdotisa, terminou a oração e ordenou às duas meninas à sua frente.

-- Apresentem suas pérolas celestiais.

Elas estenderam a mão direita. Cada uma segurava uma pedra perfeitamente redonda e lapidada, que reluziam à luz do sol como joias. Mesmo à distância, Mikoto viu que uma delas era verde-água e a outra era amarela, cor de areia.

A alta-sacerdotisa balançou o suzu e o gohei acima das pedras e anunciou:

-- Que as bênçãos do céu recaiam sobre suas pérolas, que concedam poder, coragem e sabedoria para realizar sua missão. Como alta-sacerdotisa do Santuário Branco, eu agora as consagro portadoras e guardiãs destas pérolas, com os títulos de sacerdotisa da terra e sacerdotisa do mar.

Os guizos do suzu tilintaram suavemente, e as pedras nas mãos das duas jovens miko brilharam verde e amarela, como pequenas estrelas coloridas. A multidão ofegou encantada, porém, não apenas por tão mística visão.

Mikoto percebeu que muitas cabeças estavam voltadas para ela, porque uma terceira luz brilhava, emanando de seu peito.

Debaixo dos olhares das três sacerdotisas e de toda a multidão, uma Mikoto apavorada tentava esconder com as mãos o brilho azul que se acendera do nada e sobrepujara até as dobras de seu quimono.

-- O que significa isso? – a alta-sacerdotisa bradou e veio andando a passos largos em sua direção, com uma cara nada amigável.

Mikoto teria novamente se embrenhado no meio das pessoas e desaparecido na multidão, mas aconteceu que a pessoa a seu lado era um guarda do santuário. Ele agarrou seu braço antes que conseguisse se afastar e a segurou onde estava até a alta-sacerdotisa parar à sua frente.

O olhar da mulher era dez vezes mais intimidador que o de Megumi-sama, e Mikoto sentiu o corpo inteiro começar a tremer imediatamente.

-- Quem é você?

-- Mikoto, sacerdotisa assistente do santuário da ilha Iruka – ela gaguejou. As outras duas miko olhavam para ela por cima do ombro da mestra, uma delas tinha o olhar igualmente severo, enquanto a outra a fitava com curiosidade. Mikoto percebeu, um pouco intimidada, como eram altas.

-- O que você tem aí? – a mulher questionou, e seu tom não tolerava negação. Quando Mikoto tirou seu colar de baixo da roupa com a mão tomada por tremores e o mostrou, os olhos dela se arregalaram – Onde conseguiu essa pérola?!

-- O quê?

-- É melhor entrarmos.

Ela e as duas jovens voltaram-se para o templo, e o guarda empurrou Mikoto na mesma direção. Enquanto andavam, as três tinham um fervoroso debate, do qual a menina só captava alguns trechos.

-- O que era aquilo?

-- Era uma pérola de verdade?

-- Não pode...?

-- O brilho é igual...

-- Estranho.

-- ... mas saberemos em breve.

Após adentrar o templo, o guarda enfim largou Mikoto e se retirou. As grandes portas duplas se fecharam com um estrondo, silenciando o burburinho da multidão lá fora e prendendo a trêmula Mikoto ali dentro com as três miko, que naquele momento mais pareciam um tribunal.

GLOSSÁRIO

Hakama: vestimenta tradicional japonesa, que cobre a parte de baixo do corpo. Pode ser uma larga calça ou uma saia, usada em conjunto com o quimono

Suzu: árvore de guizos usados pelas miko em cerimônias

Gohei: bastão de madeira decorados com serpentinas brancas de papel (shide), também usados em cerimônias xintoístas

Torii: portão tradicional construído próximo a santuários xintoístas, para indicar a proximidade do templo, e a passagem entre o mundo humano e dos kami. Composto por dois pilares unidos por uma trave horizontal, na maioria das vezes pintado de vermelho.

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