Sayuri não demorou meia hora para voltar, diferente de Takako, que só apareceu no quarto de hóspedes quando já passava de meio-dia. Ela anunciou antes de fechar a porta:
-- Contatamos sua mestra – Mikoto gelou ao ouvir isso – Ela ficou bem zangada a princípio, mas depois que Tamayori-sama explicou o que aconteceu quando você chegou, ela pediu para dar um recado: “Mikoto, se você foi recrutada pelo clã Kairiku, fique aí e faça tudo que as sacerdotisas ordenarem. Honre o nome de nossa ilha. ”
A menina precisou de um instante para se recompor. Não queria acreditar que sua avó falara aquilo, mas do jeito que ela sempre fora tão respeitosa ao falar sobre o clã Kairiku, não era muito difícil de imaginá-la dizendo exatamente essas palavras.
Se Megumi-sama ordenara que ela ficasse em vez de voltar para casa, então todas as suas esperanças de sair dali desapareciam como fumaça ao vento. Era provável que, se Mikoto tentasse voltar agora, a avó lhe daria uma bronca por tê-la desobedecido e esqueceria o fato de ter fugido de casa.
-- Você fica com a gente, com a permissão da sua mestra – Sayuri parecia nunca parar de sorrir. Ela olhou para Takako – Sabia que Mikoto tem dezessete anos? Achei que ela tinha quinze.
-- É, você é meio baixinha, dá a impressão de ser mais nova – Takako riu. Mikoto disfarçou a irritação, já ouvira aquela mesma frase mil vezes – Ei, e seus olhos...
Outra frase que ela já ouvira incontáveis vezes no passado. Diferente de todo mundo da ilha Iruka, que tinha olhos escuros, os de Mikoto eram acinzentados, como nuvens de chuva, e não havia uma só pessoa que não reparasse nisso e a encarasse intrigada. Era bem desconcertante.
-- São bonitos – Sayuri disse com gentileza, olhando para a prima.
-- Sim, é uma cor bonita. Bastante exótica – Takako concordou. Sayuri levantou-se e sugeriu.
-- Agora que está tudo resolvido, que tal trocarmos de roupa? Eu preciso de calças, ou pelo menos uma saia mais informal do que esse hakama.
-- Está bem – Takako foi para a porta.
-- E você, Mikoto? Eu posso te emprestar umas roupas minhas se você quiser.
-- Não, obrigada. Estou bem assim.
Não que a jovem gostasse de usar quimono o tempo inteiro, mas estando em uma terra estranha, entre pessoas desconhecidas numa situação tão irreal, ela se sentiria mais confortável usando uma roupa sua, ter pelo menos um pouquinho de familiaridade por perto.
Mikoto não ousou sair do quarto pelo resto do dia, mas não ficou entediada. Sayuri e Takako voltaram para trazer o almoço e a primeira dedicou as horas seguintes a conhecer a vida de Mikoto e mostrar a própria.
Como Mikoto dissera, não havia muito o que falar de si mesma. Depois de encontrada na praia quando bebê, foi criada por Megumi-sama, aprendendo todas as funções de uma miko da ilha, e todos esperavam que ela fosse sua sucessora. E Mikoto cumprira bem esse papel, até fugir de casa de repente. Com certeza haveria muitas fofocas sobre ela correndo pela população quando soubessem o que fizera.
-- Vamos, todos temos histórias para contar – Sayuri insistiu – O que você fazia de diferente na escola?
-- Eu era membro do clube de naginata – ela disse depois de pensar um pouco.
-- Que legal, temos uma mestra de armas aqui.
Mas Mikoto estava mais interessada na história delas, então Sayuri explicou.
Todas as mulheres do clã Kairiku eram treinadas desde a infância como miko, e as duas mais habilidosas herdavam a guarda das duas pérolas celestiais, ocupando a posição mais elevada do sacerdócio, abaixo somente da alta-sacerdotisa, que por sua vez foi uma guardiã da pérola de sua geração. A dupla também era incumbida de zelar pela ordem do mundo, por isso Sayuri e Takako partiriam em viagem no dia seguinte.
-- Zelar pela ordem? – Mikoto não entendeu. Foi Takako que respondeu dessa vez, com um ar muito sério.
-- Proteger o mundo humano dos youkai.
Mikoto ficou encarando-a em silêncio por um momento, esperando ela começar a rir da própria piada, mas seu semblante continuou rígido. Agora imaginando se não estava em meio a pessoas loucas, a jovem perguntou devagar:
-- Monstros do folclore?
-- Agora eles são isso, nada mais que lendas, fruto da imaginação de nossos antepassados que nada entendiam do mundo – Takako olhou para ela com mais intensidade – Mas outrora eles foram reais, bem como a magia, e é graças ao nosso clã que deixaram de existir neste mundo.
-- Takako, assim ela não vai entender. Deixe comigo – foi a vez de Sayuri ficar séria. Ela voltou-se para Mikoto – Como minha prima disse com tanta paixão, os youkai existiram na época de nossos tataravós, e eram uma ameaça à existência dos humanos, por isso uma família detentora de poderes sagrados decidiu que isso precisava mudar.
“Dizem que os deuses-dragões auxiliaram o clã Kairiku nessa empreitada, quando duas miko realizaram uma cerimônia que aprisionou todos os youkai do mundo em outra dimensão, acessível apenas por uma localização secreta. Nessa dimensão, eles não machucariam mais nenhum humano, nossa espécie foi salva da extinção”.
“Depois disso, a magia do mundo se reduziu muito, não restando nada dela além das duas pérolas celestiais, a da Terra e do Mar, que ficaram com nosso clã como presente dos dragões que nos ajudaram, e desde então somos detentoras de poderes sagrados”.
-- Então se magia existe de verdade... – Mikoto falou em voz alta na tentativa de absorver aquelas estranhas informações, mas soou ainda mais absurdo pronunciado por sua voz, beirava o ridículo – por que só vocês desse clã têm acesso a ela?
-- Porque nós não apenas usamos esses poderes sagrados, mas o protegemos. Não sabe o que pode ser feito com tal poder nas mãos erradas – Takako respondeu – Somos responsáveis por usar o poder concedido pelas pérolas pelo bem do mundo. Se houver um indício que os youkai podem voltar a nos ameaçar, somos nós que resolvemos isso.
“É para isso que os antigos santuários existem. Dentro de cada um dos quatro santuários principais dos quatro países que compõem Yamato, há um pergaminho sagrado, marcado por símbolos que asseguram a proteção e a magia do mundo. Esses pergaminhos são essenciais para a segurança do mundo”.
Vendo que ainda havia um quê de incredulidade nos olhos de Mikoto, Sayuri completou:
-- Vamos, você viu nossas pérolas brilharem, quer dizer que o poder delas está ligado a nós, como suas novas guardiãs.
-- Ainda podia ser um truque – Mikoto argumentou – Uma ilusão de ótica, um truque de luzes... se não fosse pela minha ter brilhado também. Contra isso não tenho explicação.
-- Nenhuma de nós tem explicação para isso – Takako adicionou.
Sayuri ficou de pé num pulo ao olhar pela janela que já havia escurecido.
-- Ei, já é quase hora do jantar, eu tenho que ajudar a preparar a comida.
Quando ela saiu, ficou um silêncio pesado no quarto, que se estendeu pelos minutos mais longos que Mikoto já vivera, e o olhar intenso que Takako dirigia-lhe não ajudava a passa-los mais rapidamente. Ela falou:
-- Sayuri tem facilidade em fazer amizade e confiar nas pessoas. Eu exijo um pouco mais de tempo – ela fez uma pausa para analisar a reação de Mikoto, que apenas engoliu em seco – Como a sua história foi confirmada, tudo que precisa fazer agora é não trair a confiança da Sayuri.
Mikoto não soube o que responder, e não suportando mais ser encarada, olhou para baixo enquanto assentia com a cabeça. Satisfeita com a resposta, Takako se levantou e saiu do quarto para ajudar Sayuri com o jantar também.
*
Às dez da manhã do dia seguinte, o navio Genbu estava pronto para deixar o porto, levando as três sacerdotisas.
Mikoto não tinha bagagem para levar, somente pôs no bolso uma caneta que encontrara na gaveta do criado-mudo do quarto de hóspedes. Megumi-sama sempre dissera que ter uma caneta à mão era sempre útil, nunca se sabia quando se poderia precisar.
Ver aquela embarcação maior e mais assustadora que todas as que já vira foi um choque de realidade, e Mikoto imediatamente sentiu o corpo inteiro tremer como se estivesse em um terremoto.
Não conseguiria subir a bordo, suas pernas não se moviam. O único navio que ela gostaria de subir era aquele que a levaria para casa.
-- Está pronta? – Sayuri deu um tapinha amigável em seu ombro, mas Mikoto estava tão tensa que se sobressaltou, assustada, e fez uma última tentativa de se livrar daquele destino:
-- Vocês não precisam mesmo que eu vá, não é? Eu não sei nada de poderes sagrados nem youkai, tudo o que sei são as orações do nosso santuário, só vou atrapalhar.
-- Isso já é meio caminho andado – Takako surgiu a seu lado – Se conhece algumas preces, pode chamar os nomes dos kami. E não foi a sua mestra que te mandou ficar com a gente?
-- Se vocês disserem que tudo foi só um mal-entendido, ela vai aceitar, e aí eu estaria livre para voltar para casa e receber meu castigo por fugir.
Sayuri riu.
-- Mas não foi nenhum mal-entendido, por isso você vem com a gente. Relaxe, se aparecer um youkai, nós te protegemos.
Ainda que com alguma gentileza, as duas primas empurraram Mikoto pela rampa de acesso até o navio. A alta-sacerdotisa Tamayori e outros membros do clã, inclusive várias crianças, acenaram animadamente do píer enquanto o navio se distanciava, depois uniu as mãos em prece pela segurança das discípulas.
Mikoto tinha certeza de que precisaria de todas as preces do mundo dali em diante.
Glossário
Naginata: arma japonesa semelhante à lança ou alabarda europeias, composta de uma lâmina curva presa a uma haste de madeira. Comumente usada por mulheres samurai antes da restauração Meiji.
Sayuri se dedicou a explorar o convés no momento em que as pessoas no porto ficaram indistinguíveis à distância. Takako pegou as bolsas de viagem e dirigiu-se às cabines que passariam a ocupar. Mikoto ainda ficou agarrada à amurada, sentindo-se um pouco enjoada com o movimento do navio.Ela ainda estava nessa posição quando Sayuri voltou de sua pequena excursão e sugeriu, na tentativa de distraí-la:-- Que tal mostrar um pouco do que você sabe de naginata?As duas usaram cabos de vassoura, os objetos mais parecidos com a arma que encontraram a bordo, e Mikoto passou algumas horas divertidas mostrando a Sayuri como manejá-la. Ela não era muito boa nisso.Na hora do almoço, Takako interrompeu o treinamento (ou seria brincadeira?), e uma ofegante, porém alegre Sayuri largou seu cabo de vassoura e puxou Mikoto para um abraço, quase pulando de al
Mikoto nunca estivera num lugar remotamente parecido com aquele palácio, e o espanto estava mais do que claro em sua boca aberta e na forma como olhava para todos os lados com os olhos arregalados. -- Talvez seja melhor você esperar aqui – Takako sugeriu ao cruzarem a entrada do prédio – Isso vai ser só uma discussão política. Sayuri fez menção de protestar, então Mikoto se apressou em concordar. -- Eu não saberia nem como me portar na frente do rei – ela deu de ombros e ficou na entrada, observando as duas e os dois guardas se distanciarem. Quando elas desapareceram atrás das portas duplas, Mikoto voltou-se para o jardim. Ele fora o principal motivo para ela querer ficar. Era enorme, e tão cheio de flores e grama como Mikoto nunca vira. Havia tantas flores no mesmo lugar, os poucos jardins de Iruka eram sempre pequenos, com os mesmos tipos de pequenas flores, enquanto aquelas eram grandes e tão diferentes umas das outras. Andar por entre os c
A noite trouxe o silêncio e a escuridão que Mikoto nunca vira em uma cidade grande, era bem mais assustador que as noites em Iruka, cujo silêncio era constantemente quebrado pelo rugir suave das ondas ou o vento ao longe. Apoiada na amurada do navio, com o queixo sobre a mão, a jovem cochilava para acordar sobressaltada logo em seguida. Já devia ser madrugada, e ela não era acostumada a ficar acordada até tão tarde. Em total contraste, Takako e Sayuri estavam completamente acordadas, no píer, atentas a qualquer movimento e ruído. Outros tripulantes, incluindo Yukio e Kurono, também procuravam, espalhados pelo porto e ruas, sem nenhum sinal de anormalidade. Mikoto reprimiu o décimo bocejo dos últimos cinco minutos e estava prestes a pedir para se retirar e dormir quando pensou ter visto algo no céu. Julgou ser uma ilusão de ótica causada pelo sono e pelo escuro, e esfregou os olhos, mas quando os abriu, ainda estava ali, e se elevava acima dos prédios.
O gato youkai rosnou e Yasha voltou o olhar para a porta também. A mobilidade de Mikoto voltou como que por mágica, e ela disparou a toda velocidade para a sala de espera, o hakama levantado de novo para ir mais rápido.Quase derrubou a porta e matou Takako e Sayuri de susto ao chegar, e ainda ofegante, só conseguiu resumir o que vira. As duas miko ficaram boquiabertas, a mais velha precisou de um minuto para articular:-- Ela invocou um youkai?-- Igual a como nós conjuramos os kami nos papéis de ofuda.-- Vamos falar com o rei Sujin agora, e pegamos essa mulher de uma vez. Chego a pensar se ela mesma não é um youkai disfarçado – Sayuri foi na frente.As três encontraram a salas de reunião vazia exceto pelo rei Sujin e dois conselheiros, com quem debatia fervorosamente, mas todos se calaram com a entrada abrupta das meninas.-- Perdoe nossa intromissão,
Não que Mikoto nunca tivesse visto um cadáver, pois como miko assistente do santuário de Iruka, acompanhara Megumi-sama em várias cerimônias fúnebres, mas nenhum dos mortos que ela ajudou a velar se encontrava num estado remotamente parecido com aquele. Ensanguentados, alguns desmembrados, mas todos com a mesma expressão de medo congelada em seus rostos. -- Oh, céus – Yukio balbuciou e puxou Mikoto pelo ombro para junto de si – Não olhe, senhorita. Ela não conseguia desviar o olhar do rosto do homem à sua frente, cujos olhos vazios encaravam-na de volta. O rapaz desviou a luz do celular e ligou para o navio. -- O Santuário Vermelho foi atacado, todos aqui estão mortos – ele tentava falar, mas seu pânico dificultava a coerência das palavras. Mikoto desviou-se do sacerdote morto e dirigiu-se à entrada do prédio, tinha a impressão de que não estava vazio. Apertou os olhos, sem enxergar nada além do breu em seu interior. Devia haver um interrupto
Ainda estava escuro quando Mikoto acordou, e ela estava de volta ao Genbu. Um pouco trêmula, ela foi para o convés, onde Takako e Sayuri conversavam com um grupo do que pareciam policiais e guardas do palácio.Mikoto esperou que terminassem para aparecer na frente das primas. Assim que a viu, Sayuri a puxou num abraço e Takako alisou seu cabelo, ambas igualmente aliviadas por vê-la de pé.-- Ficamos tão preocupadas quando recebemos aquela ligação.-- Que bom que você não se feriu.-- O que aconteceu? Só me lembro de Yasha quase me apunhalar – sua voz falhou ao pronunciar a última palavra, e ela recomeçou a tremer com a lembrança.-- Ela recuou, e os youkai fugiram com ela – Sayuri apressou-se em responder, e uma sombra caiu sobre seu rosto – Mas fizeram muito estrago.Mikoto pôs a mão sobre a boca aber
O balançar enjoativo do navio derrubou Mikoto assim que passou do rio para o mar. Felizmente, dessa vez ela teve com o que se concentrar: os dias que passara sem treinar com a naginata agora podiam ser compensados.Sayuri também ficou interessada e novamente tentou manejá-la, e acabou se desequilibrando e deixando a naginata cair várias vezes comicamente, para o deleite de Takako, que se dobrava de tanto rir a cada falha da prima.Conforme se aproximavam de Ao, no entanto, o clima tornou-se cada vez mais pesado. Sayuri não tentou mais usar a naginata e Takako mantinha o semblante sério quase o tempo inteiro, e as duas frequentemente conversavam aos sussurros. Mikoto se perguntava sobre o que elas falavam, e só tem sua resposta quando atracaram na capital.-- É melhor você vir comigo ver Ayahito – Sayuri disse ao desembarcarem. Mikoto olhou para Takako.-- E o que você vai fazer?
Novamente Takako conduziu a cerimônia, a expressão séria tão parecida com a de Megumi-sama, que Mikoto imaginou que a jovem com certeza seria como ela quando chegasse à sua idade.Primeiro, para purificar o ambiente maculado, ela executou uma longa oração, tocando o suzu e cantando com toda a vontade. Mikoto e Sayuri sentiram o efeito do encantamento, a sensação de uma corrente de água morna passando por dentro de seus corpos.Mal terminara e Takako recomeçou a dançar, a mesma que executara no Santuário Vermelho. Uma barreira amarela cristalina se formou ao redor da montanha e Mikoto espalhou ofuda com o kami de proteção no torii.Ao terminar, Takako caiu de joelhos, pálida como um fantasma, o rosto coberto de suor e todos os músculos tremendo, como se ela estivesse com frio. Sayuri pôs o braço direito da prima sobre seus ombros, e M