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Capítulo I - Helen

Sempre soube que na vida havia momentos únicos responsáveis por grandes mudanças no cenário geral, aquela virada de mesa, a girada do mundo e de repente tudo o que você planejou, toda sua vida que parecia perfeita desmorona bem diante de seus olhos e você não tem poder de fazer nada, tinha noção de que estava passando por um desses momentos nos últimos meses.

Agora mesmo, por exemplo, pegar um ônibus sozinha para São Fernando, carregando uma mala na mão e meu bebê na barriga, não era o que eu esperava estar fazendo a essa altura da vida, mas era minha única opção no momento, na verdade não a única, mas a melhor.

Eu sabia que precisava de apoio nesse momento, não aguentava mais ficar trancada dentro de casa, sufocando um pouco a cada dia com as palavras engasgadas dentro de mim. Por isso no momento em que Emily me ligou insistindo que eu fosse para São Fernando, "que eu fosse para casa", eu sabia que tinha que aceitar.

Desde que Fernando tinha decidido me abandonar eu havia passado um tempo remoendo sobre minhas escolhas.

Tinha sido um acordo entre nós dois enquanto tentávamos engravidar que eu deixaria o escritório para me dedicar ao nosso filho, eu tinha escolhido e ele me apoiou na escolha.

Havia desejado isso por anos e já tinha me privado por muito tempo focando na minha carreira, mas agora que acreditava finalmente ter achado o homem que seria um pai perfeito eu sentia que era a hora de largar o trabalho e focar naquela nova vidinha.

Então quando o primeiro ultrassom foi feita confirmando a gravidez eu dei entrada na papelada de desligamento do escritório e me dediquei a buscar mais sobre meu próximo desafio.

Mas as surpresas chegaram nos tirando do eixo, meu obstetra pediu exames mais específicos conforme os meses avançavam, eu não era mais tão novinha assim, já estava no auge dos meus trinta e sete então a preocupação com a gravidez era explicada. Minha saúde estava perfeita, mas depois de um ultrassom ele pediu por um exame de translucência nucal, o médico me assegurou que eram só cuidados extras, a verdade é que ele não queria nos alertar antes de ter total certeza.

Então depois de três semanas em completa agonia com o resultado nosso médico nos contou que tinham detectado a trissomia do cromossomo 21, em outras palavras nosso bebê tinha Síndrome de Down.

Nosso garotão era mais do que especial, ao contrário do resto da população que tem 46 cromossomos em cada uma das células, nosso filho teria 47. Ocorre um entre cada 700 nascimentos, eu tinha pesquisado, e estava acontecendo com a gente. As coisas seriam diferentes, ele ia precisar de um pouco mais de atenção e cuidado, mas nós podíamos fazer isso, era nosso filho e para mim cada momento seria mágico, por mais difícil que pudesse ser.

Eu não ia negar que entrei em pânico, me fazendo mil e um questionamentos sobre o porquê daquilo, o porquê de estar acontecendo conosco, quais dificuldades teríamos de enfrentar. Mas eu aceitei que era algo que precisaríamos trabalhar em grupo, nós éramos os pais e um time, tudo daria certo.

Só não esperava que Fernando fosse reagir totalmente o oposto, o homem tinha se fechado por dias, falava só o básico e passava a maior parte do tempo enfiado no notebook. Esperava até que achasse que eu estava dormindo para então se deitar e saía bem cedo, antes que eu acordasse. Por vários dias era como se eu fosse uma estranha dentro da minha própria casa, como se não existisse mais ninguém com ele no lugar. Então ele finalmente soltou a bomba.

E foi essa a última vez que eu o vi, ele sumiu por duas semanas e há um dia recebi uma mensagem onde ele avisava que estava indo para a casa do pai em São Fernando e que esperava minha decisão.

Bem se não tinha ficado claro para ele na outra noite eu não ia desenhar. Eu entendia sua preocupação com o futuro do nosso filho, eu me sentia do mesmo jeito. Mas isso não era desculpa para eu não o querer mais!

Fernando tinha perdido todo o juízo e eu não conseguia compreender o motivo de querer tomar uma decisão tão insana.

Não demorou para que Emily ligasse me chamando para ir e eu aceitei. Em toda minha fragilidade eu não conseguia mais me manter sozinha, essas semanas que ele apenas me ignorou e as outras duas sumido do mapa, eu estava acabada emocionalmente, lutando para me manter forte por meu filho, mas me sentia perdida, sem um rumo, um porto seguro, alguém com quem eu pudesse contar.

Estar grávida não era doença, eu jamais trataria desse jeito, mas é o momento mais poderoso e vulnerável ao mesmo tempo na minha vida. Ter que lidar com seu corpo mudando, os hormônios descontrolados, a ideia de ter uma vida por quem você é responsável dali por diante, agora junte isso ao fato de saber que seu filho tem T21 e você vai ter que adaptar tudo o que planejou para uma criança que precisará desde que nascer de um fisioterapeuta, uma fono e mais um monte de ajuda.

Eu estava sim perdida, vulnerável e, apesar de toda a vergonha que sentia em admitir, sozinha.

— Helen! — o grito de Emily chamou a atenção de todos no lugar antes mesmo que ela corresse em minha direção sem se importar com nada a sua volta.

E aqui estava, minha cunhadinha, que sempre pareceu ter uma sombra cobrindo seus olhos, agora radiante. Não sei se era o ar puro da cidade, o sol ou algo a mais. Minhas apostas eram que havia algo a mais por trás daquele sorriso!

Era vergonhoso, eu sei, mas meus soluços saíram sem que eu conseguisse controlar. Ver um rosto conhecido e amigável em tanto tempo me trouxe um alívio que eu não imaginei sentir. Seu abraço me trouxe conforto ajudando a barreira a estourar de vez, eu estava em segurança, podia chorar em seu ombro que ela me ajudaria a não desmontar.

Emily me manteve apertada em seu abraço até que eu me sentisse pronta para me afastar e encarar seu rosto.

— Oh meu Deus, você está linda. — sua voz era doce e verdadeira, ela encarou meu rosto e notei em seus olhos que minha aparência não era muito boa. — E esse bebezão está crescendo tão rápido.

Minha barriga estava grande, bem maior do que quando ela havia deixado São Paulo, o vestido que eu usava evidenciava ainda mais a forma arredonda. Eu a toquei como reflexo e as mãos de Emily se juntaram as minhas em uma carícia aconchegante.

Mais uma vez lá se iam as lágrimas derramadas, fazia um bom tempo que apenas eu tocava e conversava com meu bebê. Por sorte eu podia culpar os hormônios por ter virado uma cachoeira ambulante.

— Você que está linda, parece tão mais cheia de vida do que quando saiu de São Paulo. — toquei seu rosto com o mesmo carinho que ela me dava. — Me diga isso é coisa de São Fernando ou têm alguma pessoa responsável?

Emily apenas gargalhou como se tivesse sido pega no flagra e segurou meu braço, não antes de pegar a única mala que eu havia trazido, nos arrastando para fora da estação.

Ouvi suas histórias já no carro a caminho de casa, ao que parecia tudo o que a cidade tinha de pequena tinha de agitada, a vida de Emily esteve uma loucura nos últimos meses. Ela me contou do reencontro com o ex, de quem eu nunca tinha ouvido falar, também me confidenciou sobre a amiga que estava tentando superar os problemas e processar o ex-marido por violência doméstica e me deixou a par do progresso que Miguel estava fazendo.

Parte de mim me fazia sentir mal de arrastá-los para o meu problema, especialmente agora que tinham outras pessoas morando na casa.

— Papai está eufórico com a ideia de ter vocês dois em casa. Ele não vê a hora de ver sua barriga. — Emily disse no momento certo, parecendo sentir minha hesitação.

Estávamos já perto da casa e eu encarei o céu azul e o clima quente, apesar da brisa das árvores. Era por isso que eu amava sempre que vinhamos passar as férias aqui, a cidade parecia ter saído de um filme, cidade pequena, pessoas amáveis, a natureza em todo o lugar. Era perfeita.

— Aí seu pai, estou com tanta saudade dele. Da sua mãe também, não faz ideia do quanto.

Ana, a mãe deles, havia partido há um tempo e isso ainda doía, eu a tinha conhecido desde que Fernando e eu firmamos o namoro e podia dizer que não havia conhecido mulher mais forte e doce, uma figura materna que seria de tanta ajuda nesse momento de dificuldade.

Ana sempre me tratou como uma filha, em nenhum momento vi a crítica em seus olhos por eu ter me envolvido com seu filho. Segundo ela não havia dúvidas que tínhamos sido feitos um para o outro.

Eu costumava ter essa certeza, mas a essa altura do campeonato eu não sabia mais.

A caminhonete parou na entrada da casa e eu não tinha nem me livrado do cinto quando Miguel surgiu na varanda. Ele desceu os degraus já com os braços abertos e o sorriso ainda mais largo, antes de qualquer coisa ele me envolveu em um abraço apertado que dizia tanto. Eu ainda era amada.

— Minha filha que saudades. — ele sussurrou contra meus cabelos antes de beijá-los e se afastar para me analisar. — E esse garotão aqui. — falou já se curvando para tocar minha barriga proeminente. — Seu avô está aqui, louco para ver você chegar para bagunçar a casa.

Eu sorri diante de suas palavras, era como um bálsamo sobre mim, sentia um peso saindo das minhas costas. Passar esses dias sozinha tinha me deixado realmente balançada, havia sido semanas estranhas depois de tantos anos de estabilidade.

— Miguel, não imagina o quanto eu senti sua falta. — confidenciei a verdade, eles não faziam ideia do quanto. — Como as coisas estão por aqui?

— Oh minha querida, vamos conversar lá dentro, vamos tirar você desse calor e alimentar esse bebê lindo. — o homem vestido com avental e um pano de prato na mão segurou minha mão já me puxando para andar quando senti alguma lágrima teimosa escorrer por minha bochecha.

Tinha tentado ser forte e não me derramar de novo como fiz quando vi Emy, não queria parecer uma bagunça completa, mas aqui estava eu chorando novamente.

Miguel não hesitou ao passar o braço em meus ombros e beijar novamente meus cabelos me consolando antes de me levar para dentro.

A casa era a mesma, sempre com a mesma pintura amarela nas paredes, as cortinas escuras e pesadas, apesar do sofá ser novo todo o resto continuava igual.

Emily me apresentou a Sara e Fábio, que ficou muito interessado com a ideia de que dentro da minha barriga havia outro menino crescendo, as perguntas vieram em enxurradas assim que respondi a primeira, parecia que ele nunca pararia de questionar as coisas.

Sara era maravilhosa, muito fácil de se gostar como todos da cidade. Eu me lembrava vagamente dela em algumas fotos de formatura de Fernando, mas ela estava diferente, os cabelos menores e algumas rugas aqui e ali e um olhar um tanto cansado. Isso me dizia que a vida não tinha sido agradável com ela, também pudera depois de tudo o que Emy havia me contado no caminho pra cá.

E por pensar em Fernando me lembrei de procurá-lo, eu esperava que ele estivesse aqui para olhar nos meus olhos e questionar o que eu estava fazendo aqui, mas pelo jeito ele havia preferido fugir já que não o encontrei em lugar nenhum.

— Eu vou até a Bete hoje de tarde, você deve estar cansada então qualquer coisa me liga que eu corro pra cá. — Emily me contou depois de me ajudar a me acomodar no seu antigo quarto.

Era ruim ocupar seu espaço e incomodar assim, mas Sara e o filho estavam no quarto de hóspedes e Fernando em seu velho quarto, então não tinha muita opção.

— Não mesmo, eu vou com você, vou adorar ver as meninas.

— Tem certeza? Você é bem-vinda se quiser!

— Claro que quero! Preciso ver gente, já fiquei dias de mais isolada. — aquilo não era uma mentira, mas sim uma meia verdade.

Por mais cansada que estivesse não queria ficar em casa sozinha e correr o risco de dar de cara com Fernando por aí, queria evitar ao máximo um embate e se estivéssemos sozinhos era isso o que iria acontecer.

— Perfeito, então descanse e eu te chamo mais tarde. — Emily deu um afago rápido em minha barriga, como se não pudesse se conter, e saiu com um sorriso largo nos lábios.

Era bom estar aqui novamente.

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