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Capítulo Um Continua

Parte 2...

Estava tentada a se virar e ir embora, mas seria falta de consideração com Charlotte que ajeitara essa entrevista e também falta de educação com seu filho, que tirara um tempo para recebê-la. Não podia ser assim, tinha que valorizar a boa vontade das pessoas.

Sentiu um arrepio passar por seus braços e não era por causa do vento frio. Era por receio do que poderia acontecer ali. Não tinha certeza se seria capaz de administrar remédios para animais e menos ainda de ser capaz de tratar feridas ou fazer procedimentos mais pesados.

Não era alguém que se ligava ao fracasso antes mesmo de realizar algo, mas era honesta com relação ao seu estado físico e emocional. Sua parte psicológica estava bem, ela era capaz de compreender seus dias e suas limitações, mas e os outros? Não queria causar problemas.

Por outro lado ela queria ter um emprego fixo de novo e ter mais contato com outras pessoas. Isso a ajudaria muito em sua recuperação. E ainda tinha a vantagem de estar com animais que era algo que amava.

Se sentia isolada e sempre foi uma pessoa ativa, que saía com amigos, ria muito, conversava sobre vários assuntos e há tempos não fazia isso. Era bom ter contato humano, ter assuntos diversos, até mesmo ouvir fofocas já era bom.

Não era covarde, mas diante de sua situação se sentia receosa. Se continuasse se segurando para tudo, não voltaria a ter momentos assim mais livres e gostava disso, dessa sensação de ser acolhida em um grupo.

Obrigou-se a caminhar. Um passo de caa vez. Era forte, já tinha superado outras dificldades. Agora era apenas ser realista e esperar para ver o que aconteceria. Pelo menos havia tentado.

Ela nem sabia se seria aceita, então não tinha porque ficar remoendo pensamentos de derrota ali fora, parada no vento frio e que em breve poderia até cair uma chuva. Seria honesta com o filho de Charlotte. Seria maravilhoso que ele quisesse lhe dar o emprego, mas se achasse que não serviria, agradeceria e vida que segue. Voltaria para seus afazeres normais.

Entrou na clínica com o pé direito, assim lhe daria sorte. Era sua perna lenta, como ela dizia, fazendo graça de si mesma, mas era a da sorte. Andou até a moça que estava no balcão da entrada e se apresentou.

Respirou fundo e acalmou o corpo que estava agitado. Seu problema não aceitava que ficasse ansiosa e agitada demais. Tinha que ir devagar e controlar a emoção. A garota levantou o rosto e lhe sorriu.

— Boa tarde, em que posso ajudar?

— E-eu me chamo... Camila - falou lenta, mas sorriu de volta para a garota — V-vim pa-para a entre...vista - falava separando as palavras.

A garota continuou sorrindo educada e não pareceu notar que ela tinha um problema de fala. Talvez tivesse pensado que era apenas nervosismo e não um grave problema de afasia que limitava sua fala. Mas ela não podia fazer nada sobre isso. Era assim que vinha se comunicando nos últimos anos após o acidente. E hoje em dia estava muito melhor do que ao sair do hospital.

Pelo menos agora ela conseguia manter um controle da compreensão do que era dito pelas pessoas e muitas vezes conseguia formular uma frase completa sem gaguejar ou esquecer o dizia.

A afasia era uma das sequelas de seu acidente. Tinha tido uma lesão cerebral e ao acordar não conseguia se comunicar corretamente como fazia antes e até mesmo saber o que lhe era dito. Era tudo muito confuso e perdido. Ler se tornou algo impossível logo no início, mas hoje tinha pequenas vitórias. Conseguia até mesmo ler um cartaz em voz alta.

A garota lhe indicou a sala onde deveria esperar. Mike Reeves estava atendendo no momento. Era um caso grave de uma cadelinha de três anos que estava com uma torção no intestino e que precisava de cuidados urgentes ou poderia sofrer até mesmo uma perda dessa parte.

Agradeceu a foi andando devagar, em seu passo, até a sala indicada pela atendente. Bateu de leve e abriu a porta. Como a atendente disse, não havia ninguém, mas ela poderia esperar lá dentro. Andou até o sofá pequeno que havia ao lado e sentou-se aí, aguardando.

*************************

Camila não imaginava que uma clínica veterinária fosse assim. Havia uma grande janela bem em frente onde ela via o movimento de pessoas de um lado para outro. Dava para ver que a clínica era bem maior do que parecia lá fora. Ainda seguia para os lados, em várias salas.

Viu uma garota passar com um uniforme verde, carregando um pequeno yorkshire com um colar no pescoço que evitava que ele lambesse o corpinho. Talvez estivesse doentinho. Ela sentia muita pena dos animais que sofriam.

Se ela que era uma mulher adulta sofria, imagine um animal inocente que não tinha como explicar o que estava sentindo e contava com a bondade das pessoas.

Observou que mais animais passavam acompanhandos, andando ou sendo carregados. Pareciam funcionários da clínica. Usavam uniforme e deu para ver que alguns usavam crachás também. Não sabia reconhecer as raças. Eram muitas e ela não tinha conhecimento ou se tinha, havia se perdido em sua mente. Mas poderia aprender, caso ficasse trabalhando ali.

Ouvia o som de telefones e impressoras vindo de algum lugar ali por perto. Também vozes e passos que pareciam apressados. O local era mais agitado do que ela havia imaginado que seria.

Ficou entretida com o movimento que via pela grande janela e nem viu as horas passarem. Fazia tempo que não saía de casa para fazer algo diferente do que era sua rotina e tudo isso era interessante e lhe fazia bem. Eram informações novas para seu cérebro lento e acostumado ao mesmo.

Viu um relógio na parede ao lado e focou nele, tentando ver direito as horas. Esse era um problema que lhe tomava tempo. Números eram uma fraqueza em sua condição. Muitas vezes ela os confundia ou os via invertidos de cabeça para baixo e levava tempo para organizar novamente até sua mente compreender o que realmente mostravam.

Sempre tinha cuidado com relação a números. Demorou para perceber que perdia horários e chegava atrasada em compromissos ou algum serviço que fazia. Explicava sempre às pessoas sobre essa dificuldade para que soubessem que não fazia por mal.

Depois de um tempo ela passou a sempre adiantar sua saída fosse para o que fosse, assim não corria o risco de se atrasar ou perder o apontamento.

Por isso mesmo havia saído de casa meia hora antes do que havia combinado com Charlotte. Pediu um táxi no horário e assim ficava calma de chegar adiantada. Não gostava de deixar ninguém esperando.

Ficou balançando a perna, olhando em volta o escritório. Gostava de fazer pequenas observações pois isso funcionava como um exercício que estimulava sua mente a trabalhar. Um de seus terapeutas lhe indicou isso diariamente, em qualquer local onde estivesse, para criar mais conexões cerebrais que fossem destravando o cérebro.

E ela tinha isso como uma terapia também. Era bom e ajudava a passar o tempo, além de distrair sua mente da ansiedade.

Ela ficava ligada nas cores, nos cheiros, prestava atenção nas vozes... Ia seguindo um caminho quase como de uma criança no início de sua vida, que prestava atenção a tudo em sua volta, para ir ganhando mais informações do mundo em que vivia.

Para ela era muito importante tentar evitar que sua mente fosse se apagando, caso ficasse parada em casa, apenas aguardando que talvez um dia as coisas melhorassem.

Poderiam mudar, mas ela nunca se livraria da afasia e nem de seu problema na perna. Isso era algo que teria para toda sua vida. Então, o melhor mesmo era evitar a depressão e evitar se sentir uma pessoa incapaz de fazer algo.

Ela só não podia fazer certas coisas de antes, mas agora poderia fazer outras. Trocou uma coisa por outra. Era isso que vinha mantendo em mente para ajudar a não cair de novo na depressão.

Ninha Cardoso

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