Parte 2...
Estava tentada a se virar e ir embora, mas seria falta de consideração com Charlotte que ajeitara essa entrevista e também falta de educação com seu filho, que tirara um tempo para recebê-la. Não podia ser assim, tinha que valorizar a boa vontade das pessoas.
Sentiu um arrepio passar por seus braços e não era por causa do vento frio. Era por receio do que poderia acontecer ali. Não tinha certeza se seria capaz de administrar remédios para animais e menos ainda de ser capaz de tratar feridas ou fazer procedimentos mais pesados.
Não era alguém que se ligava ao fracasso antes mesmo de realizar algo, mas era honesta com relação ao seu estado físico e emocional. Sua parte psicológica estava bem, ela era capaz de compreender seus dias e suas limitações, mas e os outros? Não queria causar problemas.
Por outro lado ela queria ter um emprego fixo de novo e ter mais contato com outras pessoas. Isso a ajudaria muito em sua recuperação. E ainda tinha a vantagem de estar com animais que era algo que amava.
Se sentia isolada e sempre foi uma pessoa ativa, que saía com amigos, ria muito, conversava sobre vários assuntos e há tempos não fazia isso. Era bom ter contato humano, ter assuntos diversos, até mesmo ouvir fofocas já era bom.
Não era covarde, mas diante de sua situação se sentia receosa. Se continuasse se segurando para tudo, não voltaria a ter momentos assim mais livres e gostava disso, dessa sensação de ser acolhida em um grupo.
Obrigou-se a caminhar. Um passo de caa vez. Era forte, já tinha superado outras dificldades. Agora era apenas ser realista e esperar para ver o que aconteceria. Pelo menos havia tentado.
Ela nem sabia se seria aceita, então não tinha porque ficar remoendo pensamentos de derrota ali fora, parada no vento frio e que em breve poderia até cair uma chuva. Seria honesta com o filho de Charlotte. Seria maravilhoso que ele quisesse lhe dar o emprego, mas se achasse que não serviria, agradeceria e vida que segue. Voltaria para seus afazeres normais.
Entrou na clínica com o pé direito, assim lhe daria sorte. Era sua perna lenta, como ela dizia, fazendo graça de si mesma, mas era a da sorte. Andou até a moça que estava no balcão da entrada e se apresentou.
Respirou fundo e acalmou o corpo que estava agitado. Seu problema não aceitava que ficasse ansiosa e agitada demais. Tinha que ir devagar e controlar a emoção. A garota levantou o rosto e lhe sorriu.
— Boa tarde, em que posso ajudar?
— E-eu me chamo... Camila - falou lenta, mas sorriu de volta para a garota — V-vim pa-para a entre...vista - falava separando as palavras.
A garota continuou sorrindo educada e não pareceu notar que ela tinha um problema de fala. Talvez tivesse pensado que era apenas nervosismo e não um grave problema de afasia que limitava sua fala. Mas ela não podia fazer nada sobre isso. Era assim que vinha se comunicando nos últimos anos após o acidente. E hoje em dia estava muito melhor do que ao sair do hospital.
Pelo menos agora ela conseguia manter um controle da compreensão do que era dito pelas pessoas e muitas vezes conseguia formular uma frase completa sem gaguejar ou esquecer o dizia.
A afasia era uma das sequelas de seu acidente. Tinha tido uma lesão cerebral e ao acordar não conseguia se comunicar corretamente como fazia antes e até mesmo saber o que lhe era dito. Era tudo muito confuso e perdido. Ler se tornou algo impossível logo no início, mas hoje tinha pequenas vitórias. Conseguia até mesmo ler um cartaz em voz alta.
A garota lhe indicou a sala onde deveria esperar. Mike Reeves estava atendendo no momento. Era um caso grave de uma cadelinha de três anos que estava com uma torção no intestino e que precisava de cuidados urgentes ou poderia sofrer até mesmo uma perda dessa parte.
Agradeceu a foi andando devagar, em seu passo, até a sala indicada pela atendente. Bateu de leve e abriu a porta. Como a atendente disse, não havia ninguém, mas ela poderia esperar lá dentro. Andou até o sofá pequeno que havia ao lado e sentou-se aí, aguardando.
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Camila não imaginava que uma clínica veterinária fosse assim. Havia uma grande janela bem em frente onde ela via o movimento de pessoas de um lado para outro. Dava para ver que a clínica era bem maior do que parecia lá fora. Ainda seguia para os lados, em várias salas.
Viu uma garota passar com um uniforme verde, carregando um pequeno yorkshire com um colar no pescoço que evitava que ele lambesse o corpinho. Talvez estivesse doentinho. Ela sentia muita pena dos animais que sofriam.
Se ela que era uma mulher adulta sofria, imagine um animal inocente que não tinha como explicar o que estava sentindo e contava com a bondade das pessoas.
Observou que mais animais passavam acompanhandos, andando ou sendo carregados. Pareciam funcionários da clínica. Usavam uniforme e deu para ver que alguns usavam crachás também. Não sabia reconhecer as raças. Eram muitas e ela não tinha conhecimento ou se tinha, havia se perdido em sua mente. Mas poderia aprender, caso ficasse trabalhando ali.
Ouvia o som de telefones e impressoras vindo de algum lugar ali por perto. Também vozes e passos que pareciam apressados. O local era mais agitado do que ela havia imaginado que seria.
Ficou entretida com o movimento que via pela grande janela e nem viu as horas passarem. Fazia tempo que não saía de casa para fazer algo diferente do que era sua rotina e tudo isso era interessante e lhe fazia bem. Eram informações novas para seu cérebro lento e acostumado ao mesmo.
Viu um relógio na parede ao lado e focou nele, tentando ver direito as horas. Esse era um problema que lhe tomava tempo. Números eram uma fraqueza em sua condição. Muitas vezes ela os confundia ou os via invertidos de cabeça para baixo e levava tempo para organizar novamente até sua mente compreender o que realmente mostravam.
Sempre tinha cuidado com relação a números. Demorou para perceber que perdia horários e chegava atrasada em compromissos ou algum serviço que fazia. Explicava sempre às pessoas sobre essa dificuldade para que soubessem que não fazia por mal.
Depois de um tempo ela passou a sempre adiantar sua saída fosse para o que fosse, assim não corria o risco de se atrasar ou perder o apontamento.
Por isso mesmo havia saído de casa meia hora antes do que havia combinado com Charlotte. Pediu um táxi no horário e assim ficava calma de chegar adiantada. Não gostava de deixar ninguém esperando.
Ficou balançando a perna, olhando em volta o escritório. Gostava de fazer pequenas observações pois isso funcionava como um exercício que estimulava sua mente a trabalhar. Um de seus terapeutas lhe indicou isso diariamente, em qualquer local onde estivesse, para criar mais conexões cerebrais que fossem destravando o cérebro.
E ela tinha isso como uma terapia também. Era bom e ajudava a passar o tempo, além de distrair sua mente da ansiedade.
Ela ficava ligada nas cores, nos cheiros, prestava atenção nas vozes... Ia seguindo um caminho quase como de uma criança no início de sua vida, que prestava atenção a tudo em sua volta, para ir ganhando mais informações do mundo em que vivia.
Para ela era muito importante tentar evitar que sua mente fosse se apagando, caso ficasse parada em casa, apenas aguardando que talvez um dia as coisas melhorassem.
Poderiam mudar, mas ela nunca se livraria da afasia e nem de seu problema na perna. Isso era algo que teria para toda sua vida. Então, o melhor mesmo era evitar a depressão e evitar se sentir uma pessoa incapaz de fazer algo.
Ela só não podia fazer certas coisas de antes, mas agora poderia fazer outras. Trocou uma coisa por outra. Era isso que vinha mantendo em mente para ajudar a não cair de novo na depressão.
Ninha Cardoso
Parte 1...Mike estava abaixado, olhando os pontos na barriga de uma gatinha que havia sido trazida pela dona às pressas. A gata não tinha raça definida, era uma vira-lata muito bonita, branca e amarela. A mulher a encontrara na rua, muito magra e a levou para casa. Agora morava em sua casa há dois anos e era muito apegada à sua nova dona e sua casa. Mas era uma gatinha muito danada e que mexia em tudo. Acabou engolindo um dos carretéis de linha que a mulher usava para suas costuras e começou a passar mal.Infelizmente foi necessário fazer uma cirugia de emergência, mas foi bem sucedida e agora a gatinha estava em recuperação. A dona poderia levá-la de volta dentro de quatro dias. Antes ela precisaria ficar em observação mais próxima e evitar fazer movimentos bruscos, então ele a colocara em uma pequena gaiola que limitava seus movimentos e também um colar cirúrgico em volta do pescoço para que não retirasse os pontos.Levantou e mexeu os ombros, sentindo a tensão do dia. Parecia qu
Parte 2...Não iria se sentir culpado por não ter sentido algo a mais por ela, por não ter corrido aquele arrepio gostoso na pele quando se tem uma conexão com outra pessoa. Não era um homem que embarcava em algo apenas pelo desejo momentâneo. E a clínica que só crescia lhe tomava bastante tempo de sua vida e tanto ele quanto o irmão estavam mais presos ao pensamento de fazer com que tudo corresse bem e a ideia de ambos era que se transformasse em uma referência na região e para isso eles trabalhavam muito e investiam também.Deixou a sala e foi até seu escritório para pegar a pasta de tarefas. Ele sempre revisava tudo que tinha feito antes de ir embora, para ter um arquivo de tudo o que era realizado durante o dia. Isso o ajudava a manter sua organização pessoal.Quando abriu a porta de seu escritório estancou no lugar, ao ver que havia uma garota sentada em seu sofá. Ela estava com as pernas cruzadas. Os sapatos pareciam de bonecas, em um tom leve de verde, assim como seu vestido f
Parte 3...Ok, isso era até um certo preconceito de sua parte, mas é o que geralmente se via. Não esperava que Camila Becker fosse uma garota assim, com esse rosto perfeito, olhos brilhantes e um sorriso suave que fez seu coração bater mais forte. E ele sabia que tinha um corpo bonito também, deu para perceber suas curvas na roupa folgada. E suas pernas torneadas lhe chamavam atenção o tempo todo, mas segurava o olhar em seu rosto ou ficaria estranho esse comportamento em uma entrevista de emprego. Então ela levantou e ele saiu de seu pensamento.— Bem, agora eu vou embora - alisou o vestido e sorriu, inclinando um pouco a cabeça de lado — D-deu pra notar... Que aqui é bem agi...tado e que o senhor pre-precisa de alguém diferente - ajeitou a bolsa no ombro.— O que? - ele franziu a testa — Não vai fazer a entrevista?Ela puxou o ar o encarando com um sorriso delicado.— O senhor sabe que eu... Eu tenho um proble...ma sério? - ele fez que sim com a cabeça — Então sabe que não posso aj
Parte 4...E isso o fez se sentir mal, pequeno até. Assim como ela, quantas outras pessoas não viviam por ái, espalhadas pelo mundo, sendo esquecidas pelas autoridades que não lhes dava oportunidades e mais ainda pelas pessoas comuns que se preocupavam apenas com seu próprio umbigo.Quantas outras Camila deveriam estar por aí agora, tentando sobreviver por terem a má sorte de sofrerem de alguma lesão, algum problema que as impedisse de participar de modo ativo da sociedade. Muitas com certeza eram abandonadas.— Desculpe perguntar coisas assim, mas preciso saber um pouco mais sobre você - sentiu vergonha de incomodá-la.— Não tem proble...ma. Fique à vontade. E-eu prefiro até.— Quando fica nervosa você tem uma reação mais forte, não é assim? - ela assentiu — E você consegue ler, escrever... Pegar recados... - se sentiu mal por essas perguntas ridículas.— S-sim - ajeitou a bolsa no colo — É um pouco com...plicado quando estou em... Em um dia ruim - gesticulou tentando explicar — Mi-m
Parte 5...— Amanhã quando vier, quero que traga seus documentos - ele pegou um bloco atrás de si e uma caneta — Vou escrever para você em letra de forma porque minha letra é péssima.— Isso é normal em um médico - ela brincou.— É verdade - ele sorriu apontado para ela — Eu acho que você vai poder ficar com a gente. Gostei de seu jeito honesto e de seu modo de expôr seu problema tão natural.— É que depois de tanto tempo, aca...bei compreendendo que não, não... - ela fez um som de impotência e ele esperou — Que minha vida é assim agora e, e... Pronto - gesticulou.Ele puxou a folha e entregou a ela com um sorriso. Ela estava lutando e isso era muito bonito. E quanto ela vinha tentando ter sucesso durante esses anos todos? Era uma pessoa de valor e ainda mantinha o pensamento positivo. Gostava disso.— Faremos assim - levantou e foi até a mesa — Vou deixar esse formulário para ser preenchido amanhã com calma - mostrou um papel a ela e prendeu com uma pirâmide de cristal ao lado do not
Parte 1...O dia prometia mais chuva. Quando Camila entrou no táxi em direção à clínica, ansiosa e um pouco nervosa pelo começo de seu emprego fixo, o primeiro depois de anos, ela ia forçando a mente a não esquecer de falar sobre sua dificuldade para a moça que iria fiscalizar seu trabalho.Não queria pena, mas tinha que deixar claro o que poderia ou não fazer, para evitar problemas de ambos os lados.Desceu do carro e agradeceu. Era o mesmo motorista de outras vezes. Até já sabia que ela tinha esse problema e falava com ela devagar, para que compreendesse sua fala. Olhou para o céu. Estava cinza e vinha uma nuvem mais escura ainda pouco adiante. O vento soprava frio. Puxou a gola do casaco marrom para cima, enfiou as mãos nos bolsos e foi andando devagar até a entrada da clínica. Já estava para abrir a grande porta de vidro quando seu celular tocou e ela parou, ficando de lado para ver quem era.— Bom dia, querida.— Bom dia, tia. Ligou cedo.Ela viu que uma senhora toda de uniforme
Parte 2...A vergonha se abateu sobre ela. Não era orgulhosa, mas ser feita de burra aí já era demais. Não aceitaria.— Tia, tenho que des-desligar agora. Beijo.Ela desligou e respirou fundo. Se aproximou da mesa e explicou para a moça que não poderia ficar para o início do teste. Gaguejando tensa e nervosamente, ela se desculpou muito e disse que iria embora. Pediu que avisasse a Mike e agradecesse a oportunidade, mas ela tinha mudado de ideia. É claro que a atendente ficou sem saber o que houve, já que estava presente ali, mas não entrou em detalhes, apenas perguntou se precisava de algo. Ela disse que não e saiu por onde entrou, de cabeça baixa.*************************Mike estava separando um arquivo que levaria para imprimir quando chegasse na clínica, quando seu celular tocou. Ficou preocupado por ver que era a atendente do dia.— Bom dia, Mara. Está tudo bem?— Sim e não.— Explique, por favor - largou o pendrive na mesa.— Aqui está tudo bem na clínica, mas aquela garota
Parte 1...Infelizmente ele teria que chegar atrasado na clínica, mas pelo menos dessa vez eles não tinham recebido nenhum animal com problemas sérios e seu irmão e os outros funcionários poderiam resolver.Antes ele tinha que acertar as coisas com Camila.Parou o carro em frente da casa dela. Era uma casinha pequena e antiga. Tinha um pequeno portão na frente de madeira, já precisando de uma pintura. Ele abriu e entrou, atravessando o curto espaço até a porta. Alguns vasinhos com flores coloridas estavam espalhados pela varanda, cercada com uma proteção de madeira, também precisando de pintura. Estava desgastada pelo tempo.Sua mãe tinha dito que a casa era alugada. Como os valores andavam muito altos em imóveis, com certeza ali era o que ela podia pagar com sua baixa pensão por invalidez.Era até estranho pensar que uma pessoa tão jovem fosse aposentada por invalidez. Camila não tinha a aparência que se espera de uma pessoa classificada como inválida. E ela não era isso. Era um modo