Parte 4...
E isso o fez se sentir mal, pequeno até. Assim como ela, quantas outras pessoas não viviam por ái, espalhadas pelo mundo, sendo esquecidas pelas autoridades que não lhes dava oportunidades e mais ainda pelas pessoas comuns que se preocupavam apenas com seu próprio umbigo.
Quantas outras Camila deveriam estar por aí agora, tentando sobreviver por terem a má sorte de sofrerem de alguma lesão, algum problema que as impedisse de participar de modo ativo da sociedade. Muitas com certeza eram abandonadas.
— Desculpe perguntar coisas assim, mas preciso saber um pouco mais sobre você - sentiu vergonha de incomodá-la.
— Não tem proble...ma. Fique à vontade. E-eu prefiro até.
— Quando fica nervosa você tem uma reação mais forte, não é assim? - ela assentiu — E você consegue ler, escrever... Pegar recados... - se sentiu mal por essas perguntas ridículas.
— S-sim - ajeitou a bolsa no colo — É um pouco com...plicado quando estou em... Em um dia ruim - gesticulou tentando explicar — Mi-minha coordenação motora ficou muito preocu... Prejudicada - forçou — Mas agora eu le...io, só que...Como uma criança de dez anos - parou um intante e puxou o ar de novo — E-e quando estou bem, posso ler algumas frases inteiras. Para escrever é, é, mais difícil porque preci...so ter tempo.
Antes ela tinha vergonha disso, mas agora após esses anos, compreendia que era algo que levaria consigo para toda a vida e por isso não tinha porque sentir vergonha. Não era algo errado ou feio, ela apenas tinha sequelas de um grave acidente.
— Como é um dia ruim, Camila? - cruzou as mãos.
— Eu me esqueço de coisas simples. Os números fi-ficam embaralhados ou invertidos e tem palavras que não saem da boca. O mais chato é quan...do eu não... Eu não... - ela travou de novo e soltou um grande suspiro, olhando para ele. Fez um bico e deu de ombro.
— Não consegue completar o que ia falar ou fazer? - ela assentiu — Eu entendo - coçou a testa — Posso fazer um pequeno teste agora?
— Pode sim - sorriu inclinando a cabeça — Mas, mas estou um pouco nervosa agora.
— Tudo bem - ele sorriu e se esticou pegando uma receita em cima da mesa e passou para ela — Pode ler isso aqui?
Ela pegou o papel e olhou com calma, fixando os olhos nas letras que a princípio ficaram levemente borradas e depois foram se mostrando para ela. Ler era uma das coisas que ela mais gostava de fazer antes e não poder fazer isso corretamente como antes a deixava enervada e triste, mas queria tentar.
Leu devagar em silêncio e depois respirou fundo, relendo para ele em voz alta, mesmo com suas travas, mas querendo provar que sabia ler e entendia o que lhe mostrava ali.
— Você leu bem para mim - ele disse e foi honesto. Não revelou que sentiu vontade de apertar sua mão — Tem algo aí na receita que você não tenha entendido? - ela releu e fez que não — Isso é bom.
— Se escre...ver os números por extenso é, é me..lhor pra mim.
— Como faz para contar os números?
Ela mostrou os dedos das mãos.
— Conta até dez? - ela fez que sim — E se passar de dez?
— Eu uso os pés - deu uma risadinha e ele a acompanhou — E se faltar dedos, aí tenho que parar.
Ele gargalhou com o modo engraçado dela falar. Ficou feliz em ver que tinha bom humor sobre algo tão sério, mas ao mesmo tempo se sentiu triste por ela passar por algo assim. Devia ser uma luta constante.
Ele percebeu que ela estava um tanto tensa, apesar de tentar se manter calma, mas os dedos de suas mãos começavam a ficar vermelhos de tanto ela apertar. Gostaria de poder ajudar em algo, fazer com que ficasse calma e entendesse que estava tudo bem, que ele não a julgaria.
Ela era um lutadora, podia ver isso. Sair de uma vida normal, onde era praticamente uma arquiteta, trabalhando com o que gostava e tinha talento, para depois estar aqui, pedindo emprego para limpar a caca de animais doentes, era algo para poucos.
Se fosse comparar, diria que ela tinha o espírito de uma fênix e a força de uma ursa, para se manter de pé diante de todas as adversidades que a vida estava lhe impondo.
— Bem, Camila - ele se reclinou de volta na cadeira — Se você quiser um trabalho sem graça e sem glamour, creio que poderá fazer o período de teste conosco. A clínica pertence a mim e a meu irmão.
— Sendo muito ho-ho-hones... - ela parou e puxou o ar, sentindo uma inquietação e impotência.
— Sendo honesta...
— Isso - engoliu em seco — Eu preciso de um trabalho q- que não me exija mui-muito e que me pague um salário todo mês - bateu as mãos de leve — Tenho contas a, a pagar e viver de bi...cos não é b-bom.
Ele sentiu que ela começava a ficar mais agitada, talvez até um pouco nervosa. E pelo que havia entendido, isso não era nada bom para ela, então não quis forçar mais. Estava decidido a querer que trabalhasse ali. Tinha a impressão de que seria bom para ambos.
— Eu imagino, as coisas andam muito difíceis hoje em dia.
— Eu posso voltar a-amanhã pra falar com seu irmão.
— Não precisa - abanou a mão — Quero que volte amanhã para começar a trabalhar. Nós confiamos na opinião um do outro. Se eu digo que você é capaz de fazer o trabalho, ele assina embaixo.
Ela sorriu e pareceu aliviada. Mike gostou disso.
— Podemos fazer o seguinte - ele voltou a se inclinar para ela, falando devagar para que o compreendesse — Você fará um teste de quinze dias, seu horário será meio turno e vai trabalhar comigo e com meu irmão, me entende? - ela fez que sim — Terá supervisão e vai aprendendo como é feito o serviço. Se sentir dificuldades poderá pedir ajuda, se não, apenas siga com o serviço. No final dos quinze dias, se estiver tudo bem para ambos os lados, poderá renovar para mais quinze e após isso, aí sim podemos te contratar de modo fixo. Está bom assim?
— Sim - respondeu firme.
Parte 5...— Amanhã quando vier, quero que traga seus documentos - ele pegou um bloco atrás de si e uma caneta — Vou escrever para você em letra de forma porque minha letra é péssima.— Isso é normal em um médico - ela brincou.— É verdade - ele sorriu apontado para ela — Eu acho que você vai poder ficar com a gente. Gostei de seu jeito honesto e de seu modo de expôr seu problema tão natural.— É que depois de tanto tempo, aca...bei compreendendo que não, não... - ela fez um som de impotência e ele esperou — Que minha vida é assim agora e, e... Pronto - gesticulou.Ele puxou a folha e entregou a ela com um sorriso. Ela estava lutando e isso era muito bonito. E quanto ela vinha tentando ter sucesso durante esses anos todos? Era uma pessoa de valor e ainda mantinha o pensamento positivo. Gostava disso.— Faremos assim - levantou e foi até a mesa — Vou deixar esse formulário para ser preenchido amanhã com calma - mostrou um papel a ela e prendeu com uma pirâmide de cristal ao lado do not
Parte 1...O dia prometia mais chuva. Quando Camila entrou no táxi em direção à clínica, ansiosa e um pouco nervosa pelo começo de seu emprego fixo, o primeiro depois de anos, ela ia forçando a mente a não esquecer de falar sobre sua dificuldade para a moça que iria fiscalizar seu trabalho.Não queria pena, mas tinha que deixar claro o que poderia ou não fazer, para evitar problemas de ambos os lados.Desceu do carro e agradeceu. Era o mesmo motorista de outras vezes. Até já sabia que ela tinha esse problema e falava com ela devagar, para que compreendesse sua fala. Olhou para o céu. Estava cinza e vinha uma nuvem mais escura ainda pouco adiante. O vento soprava frio. Puxou a gola do casaco marrom para cima, enfiou as mãos nos bolsos e foi andando devagar até a entrada da clínica. Já estava para abrir a grande porta de vidro quando seu celular tocou e ela parou, ficando de lado para ver quem era.— Bom dia, querida.— Bom dia, tia. Ligou cedo.Ela viu que uma senhora toda de uniforme
Parte 2...A vergonha se abateu sobre ela. Não era orgulhosa, mas ser feita de burra aí já era demais. Não aceitaria.— Tia, tenho que des-desligar agora. Beijo.Ela desligou e respirou fundo. Se aproximou da mesa e explicou para a moça que não poderia ficar para o início do teste. Gaguejando tensa e nervosamente, ela se desculpou muito e disse que iria embora. Pediu que avisasse a Mike e agradecesse a oportunidade, mas ela tinha mudado de ideia. É claro que a atendente ficou sem saber o que houve, já que estava presente ali, mas não entrou em detalhes, apenas perguntou se precisava de algo. Ela disse que não e saiu por onde entrou, de cabeça baixa.*************************Mike estava separando um arquivo que levaria para imprimir quando chegasse na clínica, quando seu celular tocou. Ficou preocupado por ver que era a atendente do dia.— Bom dia, Mara. Está tudo bem?— Sim e não.— Explique, por favor - largou o pendrive na mesa.— Aqui está tudo bem na clínica, mas aquela garota
Parte 1...Infelizmente ele teria que chegar atrasado na clínica, mas pelo menos dessa vez eles não tinham recebido nenhum animal com problemas sérios e seu irmão e os outros funcionários poderiam resolver.Antes ele tinha que acertar as coisas com Camila.Parou o carro em frente da casa dela. Era uma casinha pequena e antiga. Tinha um pequeno portão na frente de madeira, já precisando de uma pintura. Ele abriu e entrou, atravessando o curto espaço até a porta. Alguns vasinhos com flores coloridas estavam espalhados pela varanda, cercada com uma proteção de madeira, também precisando de pintura. Estava desgastada pelo tempo.Sua mãe tinha dito que a casa era alugada. Como os valores andavam muito altos em imóveis, com certeza ali era o que ela podia pagar com sua baixa pensão por invalidez.Era até estranho pensar que uma pessoa tão jovem fosse aposentada por invalidez. Camila não tinha a aparência que se espera de uma pessoa classificada como inválida. E ela não era isso. Era um modo
Parte 2...Ela deu um risinho tímido e olhou para baixo. De certo tinha vergonha de sua condição. Mas ele não era uma pessoa que olhava esse lado. Quando se interessava por uma garota, era pelo que ela lhe passava, lhe mostrava de bom em seu caráter. Aparência engana e muito.Claro, se fosse um flerte comum essas coisas entrariam na lista do que gostava ou não, dependendo do que buscava em um relacionamento. Se seria passageiro ou mais duradouro.— Acho que eu devo ter algo de errado, só pode - fez uma careta — Minha mãe vive fazendo isso comigo. É vergonhoso.Do nada ela deu uma gargalhada.— Você não tem nada de errado, Mike - mexeu o ombro — É só coisa de mãe. Ela quer te ver feliz.Ele tão pouco via algo de errado nela. Camila era muito bonita e tinha um sorriso encantador. Seu problema de afasia era algo muito sério mesmo, mas isso não era motivo para um homem não ter interesse nela. Tinha outras qualidades acima disso.— Eu sou feliz com o meu trabalho.— É, mas ela deve t-ter a
Parte 1...Na manhã seguinte Camila chegou para o trabalho. Enquanto ia caminhando em direção à entrada, ia repassando suas ideias.Depois que Mike saiu de sua casa ela ficou um tempo ainda encantada com sua presença ali. Mas sabia que de nada adiantava ficar encantada pelo seu novo chefe. Ela não era uma garota comum e tinha noção disso.Apesar de ser sempre positiva, uma coisa que tinha certeza é de que um relacionamento para ela, seria algo quase impossível. Para que tal coisa acontecesse ela teria que encontrar alguém que visse seu lado ruim, seus problemas e dificuldades e fosse capaz de não se importar com isso.Nem todo mundo era capaz de conviver com uma pessoa que tinha certas limitações. Por um tempo isso a incomodou e entristeceu, mas depois compreendeu que a vida dava lições a cada acontecimento. Ela tinha sido forçada a aprender novas coisas após seu acidente e uma boa coisa disso foi que ficou mais serena. Ainda que fosse um tanto ansiosa, ela sabia se controlar para nã
Parte 2...A mulher franziu a testa, pegou a pasta e leu o documento preso nela. Depois voltou a olhar para ela e seu rosto mudou de expressão.— Oh, meu Deus - levou a mão à boca — Me desculpe, fiquei preocupada que pudesse ser mordida. Você é a sobrinha da Henrieta, não é? - ela fez que sim com a cabeça e sorriu de leve — Meu Deus, eu me lembro do acidente - segurou seu braço — Menina, você é um milagre. Desculpe ter sido rude, mas já tivemos pessoas mordidas aqui e não quero que se repita.— Não tem problema. E-eu entendo.— Olha, o serviço aqui é chato, não vou mentir. Muita gente desiste porque não gosta ou não tem estômago para lidar com porcarias de animais doentes - ergueu a mão — Sou honesta com você. Tem certeza de que quer e pode fazer esse serviço? Alguns dias é leve, mas em outros é um inferno, acontece muita coisa.— Bem, penso que pos-so fazer e creio que os di-dias de teste irão me mostr... Mostrar, se sou a pessoa cer-cer-certa pra isso.Ela não entendeu bem a express
Parte 1...Mike viu que Eliza queria mais um tempo ao lado dele e com certeza Rosaly também percebeu. De tanto ela insistir em tentar levá-lo para seus braços, alguns funcionários mais ligados já estavam observando que ela tinha um interesse a mais além do profissional.Ele até queria fazer um lanche, sentia mesmo que seu corpo estava precisando de combustível. Sentia até um pequeno tremor nas mãos e seu estômago já tinha reclamado duas vezes, mas iria esperar um pouco até que Eliza saísse da cantina.Ele entrou na sala onde estava a cadelinha e fez o exame para ver como estava saindo o acompanhamento e ficou contente em ver que em breve ela poderia voltar para sua casa. Fez umas anotações para quando a dona dela viesse buscá-la.Ao sair da sala encontrou com Clóvis, que estava cuidando do gatil nesse mês. Aproveitou e perguntou sobre Camila e ele lhe falou bem sobre ela e até disse que se saiu muito bem ajudando-o com dois filhotes que estavam recusando alimento.— Eu gostei dela, ac