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Allah! E agora? Ele me reconheceu?

Paro de pensar nisso e volto a acender a luz do abajur. Pego o caderno e olho o título.

Oficina de Escrita Criativa.

Dou um suspiro quando me vem à mente um poema que li esses dias:

"Palavras não são apenas um amontoado de letras que se juntam em concordância, formando significados e significantes. Palavras são sentimentos em forma física de expressão, que podem servir tanto como uma ponte quanto como um abismo."

Afasto os pensamentos que a romântica incurável desperta em mim e começo a ler o livro.

Eu ainda estava estudando quando ouvi meus pais chegarem. Antes que Yasmin me importune com sua presença no meu quarto, por causa da luz acesa, aperto o interruptor do abajur e fico no escuro.

Claro, não me deito de imediato. Levanto-me para dar uma olhadinha no meu vizinho lindo. Como ele está sentado distraído, afasto bem as cortinas para observá-lo melhor, mas fico com o corpo para trás, tendo o cuidado de me manter oculta nas sombras. Seu quarto está pouco iluminado; a única luz provém do abajur. Eu o avisto. Ele está sentado em sua cama, a cabeça baixa, segurando algo nas mãos. Acho que é uma foto. Sei que é algo que lhe traz angústia, pela expressão carregada no seu rosto. Ele então passa a mão nos olhos, com raiva.

— Ele está chorando? — Eu me pergunto.

Meu coração se aperta no peito. Fico estática na janela, em choque. É a primeira vez que o vejo tão vulnerável.

Zafir então se levanta num ímpeto, e o vejo rasgar a foto ao meio. Depois, olha apenas o pedaço em suas mãos. Após algum tempo, amassa a foto com força, o rosto carregado de raiva.

Sim, ele está sofrendo. Na presença de todos, ele veste sua máscara, se mostrando frio e inabalável. Mas ele não está feliz. Agora vejo que não era apenas uma impressão que eu lia em seus olhos.

De repente, as luzes do quarto se acendem. Levo um susto. Os olhos do professor estão fixos em mim.

Allah! Nãaaaaaaaaaaaaaaaao!

Engulo em seco quando nossos olhares se encontram. Sem quebrar o contato visual, ele se aproxima da janela. Num ímpeto, fecho as cortinas.

— Você perdeu um filme lindo! — Yasmin grita estridente nas minhas costas.

Abalada por ter sido flagrada, caminho com as pernas bambas até a minha cama e me sento nela.

— Você ouviu o que eu disse?

Encaro Yasmin, furiosa.

— Quantas vezes preciso dizer para não entrar no meu quarto sem bater? Não pode ir entrando assim! — Eu grito. Ah, se meus pais não proibissem a porta trancada!

— Eu esqueci! — Ela diz, birrenta.

Eu suspiro.

— Nunca mais faça isso! Eu conheço a história, é linda mesmo. Agora, saia. Amanhã eu levanto cedo e preciso dormir.

— Eu também levanto cedo. E por que você está tão brava? Eu esqueci, já falei. E você estava acordada.

Não adiantava explicar nada para Yasmin. Ela sempre foi impulsiva. E eu não tinha cabeça para sermões ou conversas agora.

Respiro fundo e digo, dura:

— Tudo bem, mas agora saia!

Ela me encara por alguns instantes, sai pisando duro e b**e a porta. Tremendo, fecho os olhos para me acalmar.

Allah! E agora? Ele me reconheceu?

Uma semana o observando na surdina e agora fui surpreendida! Mais tarde, insônia. Eu me preocupando com isso.

E justo amanhã eu terei que enfrentá-lo. Desistir do curso? Ficar enfiada ajudando minha mãe na arrumação da casa?

Nunca!

Meus pensamentos rebobinam imagens da minha vida e me levam a refletir sobre como, com muito esforço, conquistei essa liberdade de estudar. Minha infância foi feliz, pois as barreiras sempre foram claras como água. Assimilar nossa cultura e saber vivê-la é fundamental para a felicidade da família. Sempre fui muito obediente aos meus pais. Tive uma vida reclusa, de idas e vindas ao colégio, atividades domésticas e refúgios em livros. Nunca me irava nem contradizia ninguém, apenas me resignava e chorava nas pregas do kaftan de minha mãe.

Conquistar a liberdade de estudar no ensino médio foi um desafio, que venci com muita conversa, bons argumentos e sem rebeldia. Mostrei a eles todos os benefícios de continuar os estudos. Fiz Letras com esse voto de confiança. Contudo, quebrei essa confiança quando me envolvi com um garoto em Miami. Ele não pertencia à nossa cultura. Meu pai descobriu por causa das mensagens no celular.

Allah! Eu vivi um inferno na terra.

Ele tirou meu celular e me trancou em casa. Seus sermões me perseguem até hoje, lembrando-me de como a mescla com outras culturas interfere em nossos valores espirituais e morais.

Para conseguir fazer esse curso, Allah, usei muitos argumentos. Promessas de bom comportamento e justificativas sem fim. Mas o melhor argumento foi mostrar que eu poderia trabalhar em casa como escritora, revisora de textos ou para algum site. Pois sei que trabalhar fora não é algo que meu pai permitiria. A função dos pais libaneses é criar suas filhas para casarem, e não para serem bem-sucedidas profissionalmente. Esse direito só nos seria concedido por nossos maridos, caso no futuro eles concordassem.

Embora meu pai seja considerado liberal por meus tios e tias, que são extremamente rígidos, eu sei bem que ele está longe disso.

Por causa da descoberta do meu namoro com Liam, não tenho mais celular. Vou de casa para o curso e do curso para casa. Só saio acompanhada por eles. Minhas amigas não têm ideia das imposições que garotas libanesas respeitam. Uma delas é não se envolver com homens de outra cultura. Contestar isso, agir de outra forma, é o mesmo que ir contra Allah. Casar-se com alguém de fora significa assimilar sua cultura, algo que meus pais jamais admitiriam. Isso é visto como errar o alvo que Allah estabeleceu para nossas vidas. Em outras palavras, é pecado.

Acredito até que foi por minha causa que meu pai pediu transferência. Saímos de um lugar cheio de tentações, com suas belas praias e surfistas sarados, e viemos para Arizona, uma cidade quase no meio do nada. Ela fica no oeste do país, na Região das Montanhas Rochosas. Um lugar onde predomina a agricultura e pequenos comércios. Ou seja, uma cidade inofensiva.

De vez em quando, observava meu pai e minha mãe cochichando pelos cantos, o que me preocupava. Sempre me pergunto se já estão planejando um casamento para mim.

A expressão dura de Zafir, ao me ver em frente à janela o espionando, surge na minha mente. Com certeza, dormirei mal essa noite, preocupada com isso. E o pior: amanhã terei que enfrentá-lo.

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