Eu nem imaginava por onde começar a procurar, a cidade era mesmo muito grande. Mas Simas tinha que estar lá em algum lugar, e, uma hora ou outra, acabaríamos nos encontrando.
Tudo aqui parecia um sonho, mas daqueles bem doidos em que nada faz sentido. Os prédios pareciam árvores prateadas que usavam chapéu, uma delas até tinha um anel dourado que ficava girando e girando. Os carros eram diferentes dos da província, lembravam mais bolinhas de gude do que qualquer outra coisa. Eles passavam pelas ruas sem fazer barulho, e alguns pareciam não ter motorista.
Senti cheiro de pipoca doce no ar. Não sabia se era realmente pipoca, já que tudo aqui tinha cheiro de doce… e algumas coisas até pareciam guloseimas. Uma mulher passou perto de mim com uma coisa na cabeça que mais parecia uma jujuba azul.
As roupas deles eram tão dif
Alve apareceu na sala com um pacote de alguma coisa comestível na mão. Olhava para mim com curiosidade, mastigando seu lanche crocante. Reina havia acabado de me deixar.— Espero que não se importe de eu ter escutado tudo — falou ele, de boca cheia. — Essas paredes não são tão grossas quanto parecem.Foi justamente quando Kaira saiu do banheiro, vestindo roupas limpas, secando os cabelos molhados com uma toalha de rosto. Tinha um semblante relaxado. Atrás dela, vapor de água escapava por entre a abertura da porta.Meneei a cabeça para Alve. Eu não conversaria sobre nada disso agora. Passei por Kaira e entrei no banheiro.As paredes e o chão eram todos revestidos de azulejos brancos e azuis. Tomei banho, pela primeira vez descobrindo um chuveiro que mais parecia uma cascata; lembrava os esguichos fortes que eu tomara assim que havia chegado ao Núcleo, jorr
Olhei ao redor, imaginando por onde poderíamos começar. A manta do sofá estava desarrumada; o prato vazio estava abandonado sobre a mesa; nossos calçados sujos de terra esperavam à base da escada.Deveríamos esperar o melhor horário para sair e não podíamos ficar com o rosto à mostra. Agora eu sabia que havia câmeras por todo lado naquela cidade, e, com tantos guardas patrulhando as ruas, não chegaríamos longe se deixássemos o abrigo do mesmo jeito como havíamos entrado nele.Fui com Alve para um dos quartos. A cama grande de casal estava desfeita, indicando que alguém dormira nela durante a tarde. O cômodo era todo decorado com móveis de mogno, havia papel de parede vinho nas paredes e uma estante de livros que cobria uma delas. Abrimos o guarda-roupas e procuramos vestimentas apropriadas.Olhei num relógio eletrônico que esta
O mundo era cheio de coisas assustadoras, disso eu sabia. Beladonas lindas que matavam, animais ferozes que habitavam as florestas, homens fardados que atiravam em inocentes. Eu havia sentido esse tipo de ansiedade muitas vezes, uma mistura de curiosidade e incerteza.O garoto pronunciou meu nome em tom de dúvida: sua voz era a mesma, mas soava diferente agora que não estava apenas na minha cabeça.Nenhum de nós ousou dar o primeiro passo.Até então, Benjamin era apenas uma ideia, uma espécie de entidade fantástica. Parecia que eu jamais o imaginara como uma pessoa de verdade; parte de mim vinha tratando-o como um ser distante e inalcançável.Benjamin tinha aquela aparência de quem pertencia ao Núcleo. Uma mandíbula larga, pele que parecia resplandecer, olhos que brilhavam num azul impenetrável e escuro como safira; suas bochechas eram demarcadas por aquelas c
A Corte havia nos encontrado.Kaira levou a mão ao peito, Alve se aproximou de mim.Delos inclinou a cabeça para se referir ao guarda à sua direita. Quando falou, seu tom era confiante:— Informe a Suprema Magister de que ela tinha razão. Encurralamos os fugitivos e descobrimos a identidade do invasor. — Tentei começar a correr, mas, perante um aviso de Delos, os guardas ergueram suas armas no ar, parando-me bem onde eu estava. — Você já nos arranjou problemas demais. Não nos dê motivo para pressionar o gatilho.Eu não esperava ver aquele homem nunca mais. Só agora percebia isso, mas havia algo em seu jeito que me provocava mais desprezo do que eu geralmente sentia por qualquer habitante do Núcleo. A gola alta das camisas que ele costumava usar o fazia parecer uma serpente sem pescoço. Seu queixo protuberante quase sempre estava levantado, num ar de
Os pontos luminosos piscavam em cores. À minha frente, na superfície interativa de led, os pixels se reacomodavam quando eu os tocava. A mesa em formato de arco havia sido designada especialmente para mim, abraçava meu entorno, permitindo que eu me dedicasse a mais de uma tarefa por vez.Não havia ninguém no meu escritório além de mim, portanto me permiti recostar, deselegante, em minha cadeira. Geralmente, desfazer-me da costumeira compostura me deixava mais tensa do que permanecer numa posição circunspecta, mas, por ordens médicas, eu fazia um esforço para relaxar.Às vezes é preciso ceder à pressão, eu mantinha em mente. Seguir o fluxo também é diligenciar.Ao menos era o que meu clínico dizia, e por mais que eu achasse isso uma tolice, tentava me fazer convencida. "Clínico", pois a palavra "t
— Você está bem?A mera intenção de me mover provocava pontadas doloridas.— Não sei ainda — resmungou Benjamin.Ao menos ele estava consciente e capaz de falar. O rapaz tateou o cinto à altura da coxa e da cintura, tentando se soltar. Tive que auxiliá-lo, pois que ele mal virava o pescoço para ver o que estava fazendo. Uma vez livre das amarras, Benjamin se pôs a engatinhar, testando seus movimentos.— Conseguimos! — comemorou. — Não acredito que conseguimos! — Tentei fazer o mesmo que ele e, assim que me coloquei sentado, senti uma dor aguda no ombro. — Seu braço… está sangrando.O ferimento não parecia grave, mas manchava de vermelho minha camisa e a alça da mochila.Tudo com o que eu me importava agora era em me manter longe dos guardas. Naquela cidade onde tudo era monitorado, Delos com c
Eu já não conseguia mais sentir como se estivesse perdendo o controle da situação. Não vinha tendo controle sobre nada há algum tempo. A sensação que perdurava era de tragédia inelutável.Alve resmungou algumas palavras de indulgência, o que não me ajudaria a combater o sorrateiro sentimento de culpa que provavelmente adviria assim que eu conseguisse assimilar com clareza tudo o que acabara de acontecer.Agora éramos nós três no abrigo. Ao que parecia, tudo o que nos restava era — mais uma vez — as incertezas do que poderia ocorrer em seguida. Esse tipo de transtorno já era tão familiar que começava a parecer imponderável.Pensando bem, um elemento havia sido adicionado a essa equação. Sofrêramos uma perda que não podia ser revertida, e isso causava impacto na maneira como eu lidava com toda a s
Passar a noite num abrigo subterrâneo era uma experiência única. A ausência de janelas e de incidência de luz solar fazia com que os dias parecessem intermináveis. Por conta disso, fiquei mais tempo que o habitual na cama, tentando convencer meu corpo de que já era hora de se levantar. Olhava para o teto liso buscando uma velha e conhecida mancha, a mariposa pintada com giz de cera no cal, sabendo que ela nunca estaria lá.Havia, contudo, o que eu poderia chamar de borboletas no meu estômago. Talvez fosse fome, ou efeito da conversa da noite passada; ou, ainda, a lembrança sempre insistente do que havia acontecido naquele terraço.Alve, que já tinha se levantado há algum tempo, deu duas batidas na porta e meteu a cabeça para dentro do quarto. Disse, de boca cheia, que havia posto a mesa para o café da manhã. Concordei em acompanhá-lo, aproveitando o incenti