Passar a noite num abrigo subterrâneo era uma experiência única. A ausência de janelas e de incidência de luz solar fazia com que os dias parecessem intermináveis. Por conta disso, fiquei mais tempo que o habitual na cama, tentando convencer meu corpo de que já era hora de se levantar. Olhava para o teto liso buscando uma velha e conhecida mancha, a mariposa pintada com giz de cera no cal, sabendo que ela nunca estaria lá.
Havia, contudo, o que eu poderia chamar de borboletas no meu estômago. Talvez fosse fome, ou efeito da conversa da noite passada; ou, ainda, a lembrança sempre insistente do que havia acontecido naquele terraço.
Alve, que já tinha se levantado há algum tempo, deu duas batidas na porta e meteu a cabeça para dentro do quarto. Disse, de boca cheia, que havia posto a mesa para o café da manhã. Concordei em acompanhá-lo, aproveitando o incenti
Voltei a descer as escadas, um degrau por vez, enquanto o alçapão se fechava sobre minha cabeça. Benjamin retornava da cozinha, e Alve estava ajoelhado no chão diante da caixa enquanto a abria. Os dois me olharam inquisitivamente. Meu semblante já transmitia por si só que alguma coisa bem ruim acabara de ocorrer. Emendei um breve instante de silêncio com a declaração mais honesta que eu poderia fazer nesse momento:— Não podemos confiar nela.Benjamin cruzou os braços.— Isso tem alguma coisa a ver com aquela cara de assustada que ela fez quando comentamos sobre Delos? — ele quis saber.Sacudi a cabeça.— Você percebeu também?— Foi impossível não perceber — disse Alve, voltando a mexer na caixa.— O que foi mesmo que aquele sujeito disse a você, Simas?Suspirei, esfregand
Com um último sopro de prazer, deixamos nossos corpos tombarem pesados sobre o colchão. As cobertas desarrumadas se entrelaçavam por nossas pernas e braços. Era êxtase novamente, mais um de nossos encontros no fim do expediente. O ambiente cheirava a suor e incenso.Não era surpresa para ninguém o quanto eu admirava a Magister, motivos para isso não faltavam. De quando em quando, gostávamos que nossa relação fosse mais do que profissional. Todos precisávamos de alguma satisfação na vida, e Scylla definitivamente não pensava como os radicais, que se privavam de sexo fácil por razões esdrúxulas.É claro que eu não era o único. Sabia que ela só me dera uma chance, anos atrás, por eu ser o jovem mais solícito. Em nossos momentos mais íntimos, eu gostava de imaginar que meu fascínio por ela era r
— Essa imagem deve ser falsa! É possível falsificar uma foto, não é?Primeiro pensei que aquela mulher na fotografia pudesse ser apenas alguém muito parecido com minha mãe, mas seu nome estava escrito em caixa-alta na margem inferior da tela: Ágda Margon; essa era a razão por que Benjamin vinha hesitando tanto.— Posso estudar a imagem para tentar descobrir se foi alterada, mas… Simas, se for verdadeira…— Não pode ser — interpelou Alve. Ele estava tão surpreso quanto eu. — A mãe do Simas nunca esteve no Núcleo.Eu mal conseguia desviar a atenção da tela. Apesar das inconsistências, aquela era sem dúvida minha mãe. Estava um pouco diferente, mais magra e com a pele bem cuidada — ou talvez seu rosto apenas se iluminasse com aquele sorriso; seus olhos quase fechados e o queixo levemente ergui
A surpresa veio logo pela manhã. Acordei com alguém sacudindo meu ombro. Meu coração disparou com o susto.— Simas, desculpe acordá-lo assim outra vez — disse Benjamin. Ele tentava manter o tom de voz baixo, mas falava com urgência. Sacudi a cabeça, desorientado, e consegui apenas identificar o semblante aturdido em seu rosto. — Acordei cedo para voltar a procurar no computador…— Descobriu mais alguma coisa? — perguntei, despertando instantaneamente.— Acho… acho que sim.O abrigo continuava gelado, Benjamin devia ter desligado o aquecedor de novo. Coloquei-me de pé, levando apenas um instante para me equilibrar, e segui Benjamin a passos largos até a sala. O cômodo estava bem mais iluminado do que na noite passada.Alve também parecia ter acabado de despertar, tinha uma das coxas envolvida pelo cobertor, os cabelos ruivos c
Lágrimas se formaram nos meus olhos, mas se mantiveram lá sem cair. Alve e Benjamin continuavam falando, fazendo conjecturas, tentando chegar a uma conclusão. Mas eu já entendia tudo: toda minha família estava em perigo. Ou pelo menos o que havia restado dela.A confirmação veio de um modo que eu jamais teria esperado. Uma música orquestral começou a tocar na sala do abrigo, vindo das caixas de som no teto; seu volume subiu num crescendo, provocando um efeito arrebatador. Parecia um hino. Na tela circular, um modelo 3D do símbolo da Colmeia girava e piscava em cores chamativas.— O que está acontecendo?Benjamin levantou a sobrancelha, tão surpreso quanto eu:— É um pronunciamento público…Ele levantou a mão no ar, pensando duas vezes antes de apontar para o símbolo na tela. O hino foi reduzido até se tornar um s
Quando Alve entrou no quarto, encontrou-me sentado na cama. Seu rosto estava lívido. O hino da Colmeia tocava na sala, indicando que o pronunciamento acabava. Limpei as bochechas e me coloquei de pé.— Ele me disse o que você pretende fazer — falou.— Está aqui para me impedir também?Soltou o ar pelos lábios frouxos, num gesto teatral.— Como se alguma vez eu tivesse tido algum sucesso nisso… — Ele me olhou com cautela. — Eu entendo. Você nunca deixou a Leninha sozinha.Larguei a mochila sobre a cama. Pensando bem, eu não precisaria dela. Era estúpido tê-la preparado quando eu sabia que não voltaria do lugar para onde estava indo.O calor do momento se dissipava aos poucos. Minhas mãos ainda estavam trêmulas. Havia um tom de abstração naquilo tudo. Uma parte de mim ainda acreditava que meu pai estar
Meu coração batia forte. O homem no chão berrava.“Amarre-a! Tire essa desgraçada de perto de mim!”Berrei também. O outro homem segurava meus pulsos, estava atrás de mim. Eu tentava puxar os braços. Como ele era forte, em vez de afastá-lo de mim, eu trouxe sua mão mais pra perto e dei uma bela de uma mordida nela. Ele não aguentou a dor e soltou meu pulso, aproveitei a mão livre pra golpear seu outro braço com o pedaço de vidro. Ele gritou uma palavra feia e me libertou. Corri pra porta, ela estava quase aberta. Eu a puxei e saí.Estava num corredor agora. Soltei um soluço. Estava com medo, mas sabia que se eu parasse de correr, eles iam me prender de novo. Tinham me enganado. Se Simas estivesse mesmo aqui, ele teria vindo me ver. Eram maus, queriam judiar de mim igual o Farid fazia quando me prendia no q
Benjamin se inquietou:— São discos de dados?Reina fez que sim.— Mas não quaisquer discos de dados.O rapaz se aproximou e esticou a mão com a intenção de pegá-lo, mas Reina apenas abaixou o objeto e o devolveu de volta à caixa acolchoada.— O que é isso? — eu quis saber.Benjamin respondeu:— Um dispositivo que antigamente era usado para transportar dados digitais. Hoje em dia, armazenamos informações nas redes de compartilhamento, mas alguns computadores ainda podem ler esse tipo de disco.A assistente passou as mãos pelas bordas da caixa aveludada como se a acariciasse.— Séculos atrás, depois da queda das civilizações e da Grande Emersão, os satélites artificiais não funcionavam mais, e, durante muitos anos, a humanidade teve que recorrer a m&eacu