Começava a anoitecer, e o céu tinha uma cor avermelhada bonita. Eu tinha ficado tanto tempo dentro daquele lugar que nem sabia que horas eram. O ar do lado de fora era um pouco abafado, mas não era o clima ou a paisagem o que me chamava a atenção.
Um monte de pessoas se reunia pra gritar. Era que nem na Festa da Grande Emersão, com um monte de gente junta, mas um pouco diferente, porque pareciam estar com raiva de alguma coisa. Ou de alguém. Talvez tivesse alguma coisa a ver com o que meu irmão e aquele menino tinham conversado lá dentro.
Simas tinha dito pra eu confiar no menino, mas eu estava com medo. E se a mamãe estivesse certa, e todos daquele lugar fossem maus? A pele de Benjamin era macia; ele me lembrava uma boneca que uma amiga minha tinha, toda bonitinha. Eu queria ser igual a ele. Meu irmão confiava nele. Eu ia dar uma chance pro garoto.
Eu nunca deveria ter acreditado no que os livros diziam sobre a morte. As ficções poderiam ter me convencido de que a vida passaria diante dos meus olhos em retrospectiva; de que os últimos momentos seriam de paz antes que eu fosse levado para uma dimensão fora da matéria. As não-ficções ensinavam o incontestável: nos primeiros segundos, eu expeliria o que restava de oxigênio no meu corpo. Minha atividade cerebral pararia. Talvez algumas funções ainda se mantivessem por alguns minutos, consumindo as últimas unidades de energia. E então meus músculos relaxariam. A essa altura, eu não estaria mais ali para ver.Da minha perspectiva, nada disso era tão fácil de imaginar. Mas a poética visão de túnel era real. Quanto tempo eu teria que esperar?Obriguei-me a manter os olhos abertos até que não aguentasse mais. Em ve
Agora o toque era real. Mais brusco, mais… desesperado.— Simas, por toda a venustidade! — A voz de Benjamin soava bem acima de mim.Ele levantou minha cabeça para uma posição inclinada e forçou algo frio contra minha boca. De olhos ainda fechados, senti na língua o gosto de ambrosina, o fluido azul curativo; ele me empurrava a borda de um frasco. Tentei engolir o máximo que pude.Então ele me segurou. Colocou um dos meus braços por trás do pescoço e me arrastou para dentro do elevador. Percebi por sua respiração ofegante que ele esteve correndo. Os gemidos que soltava para tentar segurar o peso do meu corpo indicavam que eu não era um fardo fácil de se carregar. Minhas pernas imóveis deslizavam pelo chão.Uma vez dentro do elevador, Benjamin despencou. Não se preocupou em me ajeitar confortavelmente; apenas apertou os
O aroma doce me dava bom-dia. Eu podia sentir a presença de Benjamin ao meu lado no colchão. Havíamos dormido afinal. Virei-me de barriga para cima, devagar para não despertá-lo. Então, por um momento, quase experimentei um déjà vu. Colado no teto, bem acima do meu rosto, havia uma folha de papel, um desenho feito à mão.Benjamin se mexeu ao meu lado, já estava acordado. Ao perceber que ele olhava para mim, fiz uma careta.— Aquilo é uma mosca? — perguntei, tentando decifrar o desenho no papel. Tratava-se de um círculo com tracinhos ao redor.Ele cobriu uma risada com a mão.— Uma mariposa — respondeu. — A sua mariposa. — Franzi o cenho. Benjamin fixara o desenho no teto enquanto eu dormia. — Queria que você se sentisse em casa.Lembrei-me de ter contado a ele sobre a mancha do meu quart
Lena veio me visitar, trazendo uma vasilha de canja em sua bandeja de café da manhã. Alve já havia saído para visitar seus avós, o momento de leitura estava encerrado por hoje. Minha irmã falou sobre o quanto estava aliviada por me ver, embora estivesse preocupada com a minha saúde. Ajeitou o travesseiro atrás de mim, de modo que eu pudesse me sentar; mediu minha temperatura e constatou que ela estava diminuindo. Insisti que eu poderia me alimentar sozinho, mas ela fazia questão de levar a colher à minha boca.Tomei as colheradas calado. A canja estava boa, mas minha atenção estava toda na minha irmã. Ela estava viva, segura, como tantas vezes eu havia desejado que estivesse. Agora, entretanto, eu a via com outros olhos. Vinha-me à mente as imagens de uma Lena furiosa admitindo ser responsável pelo assassinato do próprio pai. Ela fingia que não percebia meu o
Fazia muito calor essa noite, apesar da chuva torrencial que assolava as janelas de casa. Eu me via batendo na porta do quarto. Talvez faltasse energia elétrica, não era comum que minha mãe deixasse todas as luzes da sala apagadas.A porta se abriu, minha mãe me fitou por um instante com olhos semicerrados. Seus cabelos volumosos, negros e encaracolados, davam a ela a aparência engraçada de um abajur — devia saber disso, pois logo os prendeu num rabo de cavalo.— O que faz acordado, meu filho? — perguntou, a voz ainda embargada de sono.Segurei o travesseiro mais perto do rosto, mas não disse nada. Eu não queria acordar o papai, ele ficava bem irritado quando o incomodávamos.Ela compreendeu. Fechou a porta atrás de si e me pegou no colo. Eu sabia que já estava muito crescido para isso, para ficar com medo do escuro — completara cinco anos no mês pass
As águas escuras se agitavam. O barco era o único ponto iluminado no oceano. Parecia arriscado e imprudente navegar àquela hora da madrugada, com a maré um tanto alta e o breu adiante; era como se o céu e o mar fossem um só, uma cortina negra na qual eu me emaranhava deliberadamente.Estava sentado numa pequena elevação da popa. Logo o continente surgiria em meio à neblina, e então eu estaria seguro.Dormir costumava ser um desafio para mim, mas agora que tudo estava acabado, que o calor se dissipava e o ar não tinha mais gosto de confinamento, toda a tensão das últimas três semanas cobrava seu preço. Assim, quase sem perceber, resvalei para uma inconsciência condigna, um descanso vitorioso após tantas formas de vigília.No meu repouso, eu via tudo. A ponte se movendo como um gigante inquieto, fazendo-me pender acima do abismo; as balas de
O progresso era irrevogável; disso eu sabia e fazia questão de me lembrar. Mesmo as civilizações mais primitivas, os mecanismos mais rudimentares, os organismos mais incomplexos, todos estavam destinados a alcançar o progresso, ou morrer pelas mãos daqueles que o alcançaram primeiro. Eu sempre pensara assim, mesmo ao estar por baixo. Tivera uma infância difícil, sendo o primogênito de uma mulher conservadora, mergulhado em ideologias retrógradas. Aos quinze anos fora proibido de recorrer às cirurgias da idade, posto que para ela "a verdadeira beleza estava no interior".Com efeito, o Núcleo agregava tudo o que podia satisfazer o homem. Tínhamos todo o conforto, a beleza e o prazer existentes. Podíamos obter tudo o que tocássemos ou víssemos. Afora, é claro, quando lidávamos com rebeldes: criaturas asquerosas, sempre tentando "ver além do mo
A grande muralha de rochas se alteava à nossa frente. Era uma parte da Colmeia, vista por um ângulo raro. Um amontoado de terra, montanhas muito altas. Em seu cume, províncias existiam, isoladas e dissociadas umas das outras. Elas se organizavam como um arquipélago circular, seis montes cruzando o céu; no centro de todas, o Núcleo estendia suas pontes para cada província, como os aros de uma roda.Eu nunca havia percebido o quanto vivíamos acima do mar. As águas nas quais velejávamos eram as mesmas que banhavam os rochedos abismáticos à base de toda a Colmeia. Isso explicava o cheiro salgado que podia ser sentido na guarita, à altura da ponte, de onde tudo o que se via era o precipício abaixo. Podíamos somente enxergar o pico iluminado pelas luzes da cidade, as pedras eram manchas escuras deduzíveis ao farol do barco.A embarcação se aproximou ca