O progresso era irrevogável; disso eu sabia e fazia questão de me lembrar. Mesmo as civilizações mais primitivas, os mecanismos mais rudimentares, os organismos mais incomplexos, todos estavam destinados a alcançar o progresso, ou morrer pelas mãos daqueles que o alcançaram primeiro. Eu sempre pensara assim, mesmo ao estar por baixo. Tivera uma infância difícil, sendo o primogênito de uma mulher conservadora, mergulhado em ideologias retrógradas. Aos quinze anos fora proibido de recorrer às cirurgias da idade, posto que para ela "a verdadeira beleza estava no interior".
Com efeito, o Núcleo agregava tudo o que podia satisfazer o homem. Tínhamos todo o conforto, a beleza e o prazer existentes. Podíamos obter tudo o que tocássemos ou víssemos. Afora, é claro, quando lidávamos com rebeldes: criaturas asquerosas, sempre tentando "ver além do momento", provar insuficiente a felicidade que nos era acessível. Detestava românticos, sentia asco dos sentimentalistas.
Para garantir a satisfação de todos, não lhes era estimulada a busca por qualquer conhecimento histórico (ninguém era feliz quando pensava demais); em contrapartida, isso os impedia de conhecer o passado. Houvera uma época em que lidáramos com guerra, fome, doença: um momento no tempo em que sexualidade era reprimida, que alguns dos prazeres humanos eram abomináveis. Hoje, podendo-se desfrutar de tudo, ninguém se preocupava com o quão terrível sua vida poderia se tornar. Era uma afronta ao orgulho patriota que alguns de nós ainda nutrissem a ideia de voltar aos nossos princípios mais selváticos, regurgitando por aí máximas cujo significado nem os próprios rebeldes conheciam.
Para alguns, ser feliz não era tão fácil, isso era notório. Os broncos que viviam ao redor do Núcleo não tinham mesmo muito o que celebrar; todavia, era nisso que se consistia o processo (e, sob a mesma ótica, o estado em que viviam lhes havia sido designado pela natureza). Assim sempre foi a seleção natural. Nos primórdios, o mais forte se alimentava do mais fraco; por muito que quiséssemos nos afastar de nossas origens iníquas, o balanço do universo sempre pesaria para um lado.
De todo modo, os provincianos também não tinham tanto do que reclamar; nenhum deles conhecia a vida no Núcleo para ambicioná-la. Eram peças importantes no quebra-cabeça da humanidade e, tal como nossos animais, seriam respeitados na medida em que fossem gratos pelo que lhes oferecíamos.
Sim, o progresso era mesmo irrevogável; para o homem, até mesmo para os broncos, e sobretudo para mim. Era por isso que o cargo que eu ocupava na Corte era, por ora, o ideal para mim. Havia muito que eu faria quando me tornasse Supremo Magister (aquele que governava toda a Colmeia), mas enquanto esse dia não chegasse, muitas arestas precisavam de aparo.
Agora eu me preparava para dar as notícias ruins. Eu estava no corredor principal do quinto andar do prédio da sede. Andava com certa pressa, fazendo com que o crachá em meu peito balançasse. Pelo canto do olho, era possível ver meu nome escrito: Delos Belvedere. Quando parei diante das portas e elas se abriram, revelando o interior amplo e circular do escritório de Scylla, eu podia imaginar o desgosto com o qual ela receberia as novas. Eu sempre admirara sua sala: a maneira como a projeção dimensional no piso dava a sensação de que o chão era fofo como areia sob os pés, as janelas amplas que proporcionavam o vislumbre da parte mais bela da cidade.
A Magister se sentava no centro de sua mesa em formato de C. Ocupada, não se moveu ao me perceber entrar.
— Espero que seja importante.
Eu sabia como detestava ser interrompida.
— Certamente, Magister. Seria necessário, pelo bem da Corte, que você desse uma olhada nisto.
Ofereci meu dispositivo portátil a Scylla. Ela o pegou da minha mão.
— O que quer que seja, não podia ter sido enviado pela rede?
— Achei mais prudente reportar em pessoa.
Quando seu olhar bateu nas imagens da tela, Scylla logo percebeu a dimensão do problema. Três jovens deixando a ilha de Ventura num dos barcos do Núcleo, após causar grande prejuízo e provocar mortes.
— Esse é…
— O garoto Margon, precisamente.
Ela soltou o portátil e passou as mãos levemente pelo rosto, como se retomasse o fôlego perdido.
— Como isso aconteceu, Delos?
— A Inteligência de Segurança identificou atividades irregulares. Parece que alguém se beneficiou de uma falha do servidor para invadir o sistema.
Scylla apoiou as costas na cadeira, pensativa. Concluiu ela:
— Um trabalho interno? Estamos falando de mais um caso de insurgência?
— É o que parece.
Ponderou.
— Quem poderia ter interesse nesse rapaz a ponto de se voltar contra a Corte?
— A Inteligência está trabalhando nisso, mas o invasor, quem quer que seja, protegeu muito bem seus dados.
— Já verificaram os registros de compra desses componentes? Interrogue quem quer que os tenha adquirido.
— Já solicitei os dados, Magister, mas os recibos de apenas um dos componentes foram encontrados, os da garota. Um dos fugitivos era um personagem não-jogável, portanto não há registro de venda dele; e os dados de quem adquiriu o garoto Margon… bem, não estão disponíveis no sistema, por algum motivo. É como se a transação nunca houvesse sido realizada.
O motivo parecia óbvio para mim.
E então, diferentemente do que eu havia imaginado a princípio, Scylla sorriu.
— Estamos lidando com um indivíduo talentoso. Isso é interessante.
— O localizador do veículo interceptado está ativo. Eles estão vindo em direção ao continente. — Apontei para a imagem dos jovens na tela do portátil. — Podemos rastrear os fugitivos, m****r uma nova equipe de contenção e dominá-los antes que cheguem a terra firme.
— Estão tentando voltar para a Colmeia? Nunca passariam pelas nossas defesas.
Havia bom-humor naquela afirmação. Por certo, era uma tamanha façanha, mesmo dispondo de ajuda, que aqueles jovens houvessem escapado do Simulador (isso nunca ocorrera antes, em dois anos de servidor beta). Não obstante, era absurdo acreditarem que retornariam à Colmeia e permaneceriam livres. Nesse momento, havia uma equipe inteira rastreando sua localização no mar; podíamos enviar um comando remoto via satélite para parar o barco, e então eles se tornariam alvos desamparados no meio do oceano, esperando que os veículos aéreos chegassem e os recapturassem. Ademais, em último caso, mesmo que conseguissem desembarcar na cidade, não conseguiriam dar dois passos antes que nossos guardas os interceptassem.
Surpreendeu-me Scylla ao ordenar:
— Não, não. Deixe-os entrar na cidade. Descubra o canal ao qual estão se dirigindo e remova toda a guarda do local.
Aquilo não fazia sentido.
— Deseja que eu lhes conceda livre acesso ao Núcleo?
— Exatamente. Existe um agitador entre nós; quero compreender suas motivações, o que o levou a auxiliar esses jovens. Se lidarmos com os fugitivos agora, poderemos nunca descobrir o que realmente aconteceu.
— Então devo liberar a passagem do garoto Margon e rastrear suas atividades a fim de chegar ao pivô do problema?
Pensando bem, era um ótimo plano. Se os detivéssemos agora, a Inteligência poderia jamais identificar a origem da invasão, e então, futuramente, nos depararíamos com outro caso de fuga. Em contrapartida, se déssemos qualquer autonomia aos fugitivos, deixaríamos que nos levassem ao hacker responsável pelo transtorno, possibilitando-nos evitar uma possível ameaça futura.
Respondeu Scylla:
— Isso mesmo. Mantenha-me informada sobre cada passo que esse rapaz der. Uma hora ele nos levará ao nosso agitador, então lidaremos com os dois e acabaremos com todo este inconveniente de uma vez.
A Magister era bem mais do que uma das mais belas mulheres da cidade. Sua esperteza era invejável, e era por isso que havia conquistado o cargo político mais alto da Corte; eu devia aprender muito com ela se quisesse ocupar sua posição um dia. Permitia-me sentir grande atração por ela (quando estávamos a sós em seu apartamento, é claro, mas especialmente em momentos como esse, em que nossa relação era insuspeita e profissional…)
Especialmente em ocasiões como agora.
Ela inclinou a cabeça para o lado, esboçando um meio sorriso e cruzando as pernas, nem um pouco desgostosa como eu havia previsto. Scylla tinha a situação sob seu controle.
Havia apenas mais um problema a ser resolvido: a criança bronca, uma mal-apanhada, que fora vista passeando pelas ruas do Núcleo. Eu mal podia acreditar que agora, de repente e de uma só vez, lidávamos com tantos aborrecimentos.
— Há mais uma questão que precisa de sua atenção. — Curvei-me para frente e agitei os dedos sobre o portátil, mudando a imagem na tela. — As câmeras registraram essa jovem dentro do nosso perímetro. Ela não é uma de nós.
Uma jovem feia, que provavelmente viera com a importação de mercadorias da província ao sul.
Scylla franziu o cenho, observando a imagem. Deu de ombros.
— Claramente não é, mas você sabe que eu não lido com imigrantes clandestinos. Mande a questão para o setor responsável.
— Sei muito bem, Magister. No entanto, passamos as imagens pelo programa de reconhecimento facial do banco de dados. E, por mais inusitado que seja, identificamos parentesco entre a imigrante e um dos nossos fugitivos recentes.
Ela se sobressaltou, voltando a olhar para a tela.
— Ela é uma Margon?!
— Lena Alice Margon, mais precisamente.
A Magister riu, impressionada.
— A cria caçula da Ágda, quem diria!
Senti incômodo perante a menção daquele nome. Ágda Margon, uma das protagonistas de um caso de insurgência antigo, do qual ninguém na Corte se esqueceria. Por anos aquele nome nunca tinha vindo à tona, e, depois que a situação havia sido resolvida, eu imaginara que ninguém iria se referir àquela mulher novamente (ou a qualquer um dos envolvidos no caso). É claro que eu devia ter previsto, agora que seus descendentes visitavam nossas terras, que toda aquela história seria mencionada outra vez.
— Magister, você acha que talvez… a razão para isso tudo estar acontecendo seja que esses jovens sabem sobre… sobre a progenitora deles?
Ela me encarou com severidade.
— O que aconteceu entre o Núcleo e aquela mulher está no passado. Ocultamos tudo.
Eu sabia que o rapaz Margon havia sido trazido por uma eventualidade. Nenhum de nós se atentara à sua relação com Ágda a princípio, até que ele começara se manifestar. Ainda assim, sua irmã mais nova não tinha motivo algum para visitar o Núcleo. Isso me parecia suspeito demais, tendo em vista os acontecimentos de outrora, tal como o esforço que o Núcleo fizera para escondê-los.
— Nesse caso, devo solicitar a extradição da menina imediatamente?
Ponderou.
— Você fez bem em se reportar a mim. Nada de extradição. Capture a garota e a mantenha sob nosso poder. Ela pode se mostrar um recurso útil.
— Como quiser, Magister. — Quando eu já virava as costas, um último pensamento me ocorreu. — Aliás, se me permite. O que você pretende para quando recapturarmos o rapaz Margon e o agitador que o ajudou? — Enviá-los de volta à ilha já não parecia apropriado.
A Magister respirou fundo, como se saboreasse uma outra deliciosa ideia.
— Não podemos executá-los até descobrirmos o que aconteceu naquela ilha, mas isso, como bem sabe, é só uma questão de tempo.
A grande muralha de rochas se alteava à nossa frente. Era uma parte da Colmeia, vista por um ângulo raro. Um amontoado de terra, montanhas muito altas. Em seu cume, províncias existiam, isoladas e dissociadas umas das outras. Elas se organizavam como um arquipélago circular, seis montes cruzando o céu; no centro de todas, o Núcleo estendia suas pontes para cada província, como os aros de uma roda.Eu nunca havia percebido o quanto vivíamos acima do mar. As águas nas quais velejávamos eram as mesmas que banhavam os rochedos abismáticos à base de toda a Colmeia. Isso explicava o cheiro salgado que podia ser sentido na guarita, à altura da ponte, de onde tudo o que se via era o precipício abaixo. Podíamos somente enxergar o pico iluminado pelas luzes da cidade, as pedras eram manchas escuras deduzíveis ao farol do barco.A embarcação se aproximou ca
— Não — falei. — Isso é muito conveniente.— Conveniente? — perguntou Kaira.— Se tudo tivesse saído como planejado, ninguém teria percebido nossa fuga da ilha. Ninguém saberia que estamos aqui. Ninguém esperaria que entrássemos na cidade. Agora recebemos uma ligação anônima. Isso só pode ser uma armadilha. É conveniente demais.Comecei a andar de um lado para o outro, olhando para o chão.— A mulher disse que era uma velha amiga tua — mencionou Kaira. — Deu a entender que vocês se conheciam.Sacudi a cabeça.— Mais um motivo para desconfiarmos. Se eu a conheço mesmo, por que ela não disse o nome dela?Alve olhou para o alto mais uma vez, observando à distância o cume da ladeira.— Ela disse que a Corte nos encontrará logo, logo
Sua aparência era exatamente como eu me lembrava, só que seus cabelos castanhos curtos estavam emplastrados na cabeça, e ela não vestia seu usual uniforme azul-claro. Suas bochechas eram ossudas e o nariz fino, pontudo. Era incomum ver a Assistente 44 em qualquer lugar senão nos corredores cromados da sede.— Fique longe de mim! — ordenou a mulher, apoplética.O que aquela mulher estava fazendo ali? Por que estava vestida daquele jeito?Ela havia sido uma das primeiras pessoas a se reportarem diretamente a mim quando eu chegara ao Núcleo. Lembrava-me de ter sido escoltado por um guarda de neoprene até ela; a assistente se apresentara como 44, esticando sua mão com luva de látex para me cumprimentar, abrindo um sorriso largo de dentes brancos e retificados como eu poucas vezes havia visto até então. Ela me conduzira, semanas atrás, por todo o processo ao qual eu
O cansaço começava a se tornar impossível de ignorar. O cochilo que eu tirara a bordo do barco não havia sido suficiente. Essa vinha sendo uma noite longa. Sentia o peso do sono nos meus olhos.A Assistente 44 cruzou as pernas e aguardou com uma expressão séria no rosto. Kaira mal esperou que a mulher terminasse de falar e já se levantou, indo em direção ao banheiro. Alve continuou onde estava, com uma caneca em cada mão, um bigode de chantili sob o nariz, alternando o olhar entre mim e a assistente. Meio minuto se passou sem que ninguém se movesse, até que o rapaz entendesse a mensagem de que Reina gostaria de falar comigo a sós.Ele apontou com a caneca na direção da cozinha e foi andando para lá.Tomei uma cadeira e me sentei de frente à assistente. Ela deu um gole em sua bebida e me estudou por um minuto. A exaustão ficava cada vez ma
Meus olhos arderam.— Margon — murmurou Reina —, sinto muito. Todos estamos fazendo sacrifícios.Ela tinha razão, e eu sabia disso. Mas, para sua alegria, ela ao menos estava livre, podia voltar para casa. Aliás, isso era uma coisa que todos podiam fazer, um direito do qual apenas páuperes eram privados.Lembrei-me de Benjamin mais uma vez. Até mesmo ele estava numa situação melhor que a minha. Havia sido usado como um recurso nos planos arquitetados pela assistente, sem nunca perceber que tinha pouca autonomia sobre a situação. E agora provavelmente respirava aliviado, achando que a situação estava resolvida, que eu havia retornado para minha terra de origem, sem jamais imaginar o verdadeiro desdobramento dessa história.Remeti-me ao que Reina havia falado durante o telefonema; dissera que Benjamin também se tornava um foco da Corte. Ele nã
Eu nem imaginava por onde começar a procurar, a cidade era mesmo muito grande. Mas Simas tinha que estar lá em algum lugar, e, uma hora ou outra, acabaríamos nos encontrando.Tudo aqui parecia um sonho, mas daqueles bem doidos em que nada faz sentido. Os prédios pareciam árvores prateadas que usavam chapéu, uma delas até tinha um anel dourado que ficava girando e girando. Os carros eram diferentes dos da província, lembravam mais bolinhas de gude do que qualquer outra coisa. Eles passavam pelas ruas sem fazer barulho, e alguns pareciam não ter motorista.Senti cheiro de pipoca doce no ar. Não sabia se era realmente pipoca, já que tudo aqui tinha cheiro de doce… e algumas coisas até pareciam guloseimas. Uma mulher passou perto de mim com uma coisa na cabeça que mais parecia uma jujuba azul.As roupas deles eram tão dif
Alve apareceu na sala com um pacote de alguma coisa comestível na mão. Olhava para mim com curiosidade, mastigando seu lanche crocante. Reina havia acabado de me deixar.— Espero que não se importe de eu ter escutado tudo — falou ele, de boca cheia. — Essas paredes não são tão grossas quanto parecem.Foi justamente quando Kaira saiu do banheiro, vestindo roupas limpas, secando os cabelos molhados com uma toalha de rosto. Tinha um semblante relaxado. Atrás dela, vapor de água escapava por entre a abertura da porta.Meneei a cabeça para Alve. Eu não conversaria sobre nada disso agora. Passei por Kaira e entrei no banheiro.As paredes e o chão eram todos revestidos de azulejos brancos e azuis. Tomei banho, pela primeira vez descobrindo um chuveiro que mais parecia uma cascata; lembrava os esguichos fortes que eu tomara assim que havia chegado ao Núcleo, jorr
Olhei ao redor, imaginando por onde poderíamos começar. A manta do sofá estava desarrumada; o prato vazio estava abandonado sobre a mesa; nossos calçados sujos de terra esperavam à base da escada.Deveríamos esperar o melhor horário para sair e não podíamos ficar com o rosto à mostra. Agora eu sabia que havia câmeras por todo lado naquela cidade, e, com tantos guardas patrulhando as ruas, não chegaríamos longe se deixássemos o abrigo do mesmo jeito como havíamos entrado nele.Fui com Alve para um dos quartos. A cama grande de casal estava desfeita, indicando que alguém dormira nela durante a tarde. O cômodo era todo decorado com móveis de mogno, havia papel de parede vinho nas paredes e uma estante de livros que cobria uma delas. Abrimos o guarda-roupas e procuramos vestimentas apropriadas.Olhei num relógio eletrônico que esta