Lena veio me visitar, trazendo uma vasilha de canja em sua bandeja de café da manhã. Alve já havia saído para visitar seus avós, o momento de leitura estava encerrado por hoje. Minha irmã falou sobre o quanto estava aliviada por me ver, embora estivesse preocupada com a minha saúde. Ajeitou o travesseiro atrás de mim, de modo que eu pudesse me sentar; mediu minha temperatura e constatou que ela estava diminuindo. Insisti que eu poderia me alimentar sozinho, mas ela fazia questão de levar a colher à minha boca.
Tomei as colheradas calado. A canja estava boa, mas minha atenção estava toda na minha irmã. Ela estava viva, segura, como tantas vezes eu havia desejado que estivesse. Agora, entretanto, eu a via com outros olhos. Vinha-me à mente as imagens de uma Lena furiosa admitindo ser responsável pelo assassinato do próprio pai. Ela fingia que não percebia meu o
Fazia muito calor essa noite, apesar da chuva torrencial que assolava as janelas de casa. Eu me via batendo na porta do quarto. Talvez faltasse energia elétrica, não era comum que minha mãe deixasse todas as luzes da sala apagadas.A porta se abriu, minha mãe me fitou por um instante com olhos semicerrados. Seus cabelos volumosos, negros e encaracolados, davam a ela a aparência engraçada de um abajur — devia saber disso, pois logo os prendeu num rabo de cavalo.— O que faz acordado, meu filho? — perguntou, a voz ainda embargada de sono.Segurei o travesseiro mais perto do rosto, mas não disse nada. Eu não queria acordar o papai, ele ficava bem irritado quando o incomodávamos.Ela compreendeu. Fechou a porta atrás de si e me pegou no colo. Eu sabia que já estava muito crescido para isso, para ficar com medo do escuro — completara cinco anos no mês pass
As águas escuras se agitavam. O barco era o único ponto iluminado no oceano. Parecia arriscado e imprudente navegar àquela hora da madrugada, com a maré um tanto alta e o breu adiante; era como se o céu e o mar fossem um só, uma cortina negra na qual eu me emaranhava deliberadamente.Estava sentado numa pequena elevação da popa. Logo o continente surgiria em meio à neblina, e então eu estaria seguro.Dormir costumava ser um desafio para mim, mas agora que tudo estava acabado, que o calor se dissipava e o ar não tinha mais gosto de confinamento, toda a tensão das últimas três semanas cobrava seu preço. Assim, quase sem perceber, resvalei para uma inconsciência condigna, um descanso vitorioso após tantas formas de vigília.No meu repouso, eu via tudo. A ponte se movendo como um gigante inquieto, fazendo-me pender acima do abismo; as balas de
O progresso era irrevogável; disso eu sabia e fazia questão de me lembrar. Mesmo as civilizações mais primitivas, os mecanismos mais rudimentares, os organismos mais incomplexos, todos estavam destinados a alcançar o progresso, ou morrer pelas mãos daqueles que o alcançaram primeiro. Eu sempre pensara assim, mesmo ao estar por baixo. Tivera uma infância difícil, sendo o primogênito de uma mulher conservadora, mergulhado em ideologias retrógradas. Aos quinze anos fora proibido de recorrer às cirurgias da idade, posto que para ela "a verdadeira beleza estava no interior".Com efeito, o Núcleo agregava tudo o que podia satisfazer o homem. Tínhamos todo o conforto, a beleza e o prazer existentes. Podíamos obter tudo o que tocássemos ou víssemos. Afora, é claro, quando lidávamos com rebeldes: criaturas asquerosas, sempre tentando "ver além do mo
A grande muralha de rochas se alteava à nossa frente. Era uma parte da Colmeia, vista por um ângulo raro. Um amontoado de terra, montanhas muito altas. Em seu cume, províncias existiam, isoladas e dissociadas umas das outras. Elas se organizavam como um arquipélago circular, seis montes cruzando o céu; no centro de todas, o Núcleo estendia suas pontes para cada província, como os aros de uma roda.Eu nunca havia percebido o quanto vivíamos acima do mar. As águas nas quais velejávamos eram as mesmas que banhavam os rochedos abismáticos à base de toda a Colmeia. Isso explicava o cheiro salgado que podia ser sentido na guarita, à altura da ponte, de onde tudo o que se via era o precipício abaixo. Podíamos somente enxergar o pico iluminado pelas luzes da cidade, as pedras eram manchas escuras deduzíveis ao farol do barco.A embarcação se aproximou ca
— Não — falei. — Isso é muito conveniente.— Conveniente? — perguntou Kaira.— Se tudo tivesse saído como planejado, ninguém teria percebido nossa fuga da ilha. Ninguém saberia que estamos aqui. Ninguém esperaria que entrássemos na cidade. Agora recebemos uma ligação anônima. Isso só pode ser uma armadilha. É conveniente demais.Comecei a andar de um lado para o outro, olhando para o chão.— A mulher disse que era uma velha amiga tua — mencionou Kaira. — Deu a entender que vocês se conheciam.Sacudi a cabeça.— Mais um motivo para desconfiarmos. Se eu a conheço mesmo, por que ela não disse o nome dela?Alve olhou para o alto mais uma vez, observando à distância o cume da ladeira.— Ela disse que a Corte nos encontrará logo, logo
Sua aparência era exatamente como eu me lembrava, só que seus cabelos castanhos curtos estavam emplastrados na cabeça, e ela não vestia seu usual uniforme azul-claro. Suas bochechas eram ossudas e o nariz fino, pontudo. Era incomum ver a Assistente 44 em qualquer lugar senão nos corredores cromados da sede.— Fique longe de mim! — ordenou a mulher, apoplética.O que aquela mulher estava fazendo ali? Por que estava vestida daquele jeito?Ela havia sido uma das primeiras pessoas a se reportarem diretamente a mim quando eu chegara ao Núcleo. Lembrava-me de ter sido escoltado por um guarda de neoprene até ela; a assistente se apresentara como 44, esticando sua mão com luva de látex para me cumprimentar, abrindo um sorriso largo de dentes brancos e retificados como eu poucas vezes havia visto até então. Ela me conduzira, semanas atrás, por todo o processo ao qual eu
O cansaço começava a se tornar impossível de ignorar. O cochilo que eu tirara a bordo do barco não havia sido suficiente. Essa vinha sendo uma noite longa. Sentia o peso do sono nos meus olhos.A Assistente 44 cruzou as pernas e aguardou com uma expressão séria no rosto. Kaira mal esperou que a mulher terminasse de falar e já se levantou, indo em direção ao banheiro. Alve continuou onde estava, com uma caneca em cada mão, um bigode de chantili sob o nariz, alternando o olhar entre mim e a assistente. Meio minuto se passou sem que ninguém se movesse, até que o rapaz entendesse a mensagem de que Reina gostaria de falar comigo a sós.Ele apontou com a caneca na direção da cozinha e foi andando para lá.Tomei uma cadeira e me sentei de frente à assistente. Ela deu um gole em sua bebida e me estudou por um minuto. A exaustão ficava cada vez ma
Meus olhos arderam.— Margon — murmurou Reina —, sinto muito. Todos estamos fazendo sacrifícios.Ela tinha razão, e eu sabia disso. Mas, para sua alegria, ela ao menos estava livre, podia voltar para casa. Aliás, isso era uma coisa que todos podiam fazer, um direito do qual apenas páuperes eram privados.Lembrei-me de Benjamin mais uma vez. Até mesmo ele estava numa situação melhor que a minha. Havia sido usado como um recurso nos planos arquitetados pela assistente, sem nunca perceber que tinha pouca autonomia sobre a situação. E agora provavelmente respirava aliviado, achando que a situação estava resolvida, que eu havia retornado para minha terra de origem, sem jamais imaginar o verdadeiro desdobramento dessa história.Remeti-me ao que Reina havia falado durante o telefonema; dissera que Benjamin também se tornava um foco da Corte. Ele nã