— Você está bem?
A mera intenção de me mover provocava pontadas doloridas.
— Não sei ainda — resmungou Benjamin.
Ao menos ele estava consciente e capaz de falar. O rapaz tateou o cinto à altura da coxa e da cintura, tentando se soltar. Tive que auxiliá-lo, pois que ele mal virava o pescoço para ver o que estava fazendo. Uma vez livre das amarras, Benjamin se pôs a engatinhar, testando seus movimentos.
— Conseguimos! — comemorou. — Não acredito que conseguimos! — Tentei fazer o mesmo que ele e, assim que me coloquei sentado, senti uma dor aguda no ombro. — Seu braço… está sangrando.
O ferimento não parecia grave, mas manchava de vermelho minha camisa e a alça da mochila.
Tudo com o que eu me importava agora era em me manter longe dos guardas. Naquela cidade onde tudo era monitorado, Delos com c
Eu já não conseguia mais sentir como se estivesse perdendo o controle da situação. Não vinha tendo controle sobre nada há algum tempo. A sensação que perdurava era de tragédia inelutável.Alve resmungou algumas palavras de indulgência, o que não me ajudaria a combater o sorrateiro sentimento de culpa que provavelmente adviria assim que eu conseguisse assimilar com clareza tudo o que acabara de acontecer.Agora éramos nós três no abrigo. Ao que parecia, tudo o que nos restava era — mais uma vez — as incertezas do que poderia ocorrer em seguida. Esse tipo de transtorno já era tão familiar que começava a parecer imponderável.Pensando bem, um elemento havia sido adicionado a essa equação. Sofrêramos uma perda que não podia ser revertida, e isso causava impacto na maneira como eu lidava com toda a s
Passar a noite num abrigo subterrâneo era uma experiência única. A ausência de janelas e de incidência de luz solar fazia com que os dias parecessem intermináveis. Por conta disso, fiquei mais tempo que o habitual na cama, tentando convencer meu corpo de que já era hora de se levantar. Olhava para o teto liso buscando uma velha e conhecida mancha, a mariposa pintada com giz de cera no cal, sabendo que ela nunca estaria lá.Havia, contudo, o que eu poderia chamar de borboletas no meu estômago. Talvez fosse fome, ou efeito da conversa da noite passada; ou, ainda, a lembrança sempre insistente do que havia acontecido naquele terraço.Alve, que já tinha se levantado há algum tempo, deu duas batidas na porta e meteu a cabeça para dentro do quarto. Disse, de boca cheia, que havia posto a mesa para o café da manhã. Concordei em acompanhá-lo, aproveitando o incenti
Voltei a descer as escadas, um degrau por vez, enquanto o alçapão se fechava sobre minha cabeça. Benjamin retornava da cozinha, e Alve estava ajoelhado no chão diante da caixa enquanto a abria. Os dois me olharam inquisitivamente. Meu semblante já transmitia por si só que alguma coisa bem ruim acabara de ocorrer. Emendei um breve instante de silêncio com a declaração mais honesta que eu poderia fazer nesse momento:— Não podemos confiar nela.Benjamin cruzou os braços.— Isso tem alguma coisa a ver com aquela cara de assustada que ela fez quando comentamos sobre Delos? — ele quis saber.Sacudi a cabeça.— Você percebeu também?— Foi impossível não perceber — disse Alve, voltando a mexer na caixa.— O que foi mesmo que aquele sujeito disse a você, Simas?Suspirei, esfregand
Com um último sopro de prazer, deixamos nossos corpos tombarem pesados sobre o colchão. As cobertas desarrumadas se entrelaçavam por nossas pernas e braços. Era êxtase novamente, mais um de nossos encontros no fim do expediente. O ambiente cheirava a suor e incenso.Não era surpresa para ninguém o quanto eu admirava a Magister, motivos para isso não faltavam. De quando em quando, gostávamos que nossa relação fosse mais do que profissional. Todos precisávamos de alguma satisfação na vida, e Scylla definitivamente não pensava como os radicais, que se privavam de sexo fácil por razões esdrúxulas.É claro que eu não era o único. Sabia que ela só me dera uma chance, anos atrás, por eu ser o jovem mais solícito. Em nossos momentos mais íntimos, eu gostava de imaginar que meu fascínio por ela era r
— Essa imagem deve ser falsa! É possível falsificar uma foto, não é?Primeiro pensei que aquela mulher na fotografia pudesse ser apenas alguém muito parecido com minha mãe, mas seu nome estava escrito em caixa-alta na margem inferior da tela: Ágda Margon; essa era a razão por que Benjamin vinha hesitando tanto.— Posso estudar a imagem para tentar descobrir se foi alterada, mas… Simas, se for verdadeira…— Não pode ser — interpelou Alve. Ele estava tão surpreso quanto eu. — A mãe do Simas nunca esteve no Núcleo.Eu mal conseguia desviar a atenção da tela. Apesar das inconsistências, aquela era sem dúvida minha mãe. Estava um pouco diferente, mais magra e com a pele bem cuidada — ou talvez seu rosto apenas se iluminasse com aquele sorriso; seus olhos quase fechados e o queixo levemente ergui
A surpresa veio logo pela manhã. Acordei com alguém sacudindo meu ombro. Meu coração disparou com o susto.— Simas, desculpe acordá-lo assim outra vez — disse Benjamin. Ele tentava manter o tom de voz baixo, mas falava com urgência. Sacudi a cabeça, desorientado, e consegui apenas identificar o semblante aturdido em seu rosto. — Acordei cedo para voltar a procurar no computador…— Descobriu mais alguma coisa? — perguntei, despertando instantaneamente.— Acho… acho que sim.O abrigo continuava gelado, Benjamin devia ter desligado o aquecedor de novo. Coloquei-me de pé, levando apenas um instante para me equilibrar, e segui Benjamin a passos largos até a sala. O cômodo estava bem mais iluminado do que na noite passada.Alve também parecia ter acabado de despertar, tinha uma das coxas envolvida pelo cobertor, os cabelos ruivos c
Lágrimas se formaram nos meus olhos, mas se mantiveram lá sem cair. Alve e Benjamin continuavam falando, fazendo conjecturas, tentando chegar a uma conclusão. Mas eu já entendia tudo: toda minha família estava em perigo. Ou pelo menos o que havia restado dela.A confirmação veio de um modo que eu jamais teria esperado. Uma música orquestral começou a tocar na sala do abrigo, vindo das caixas de som no teto; seu volume subiu num crescendo, provocando um efeito arrebatador. Parecia um hino. Na tela circular, um modelo 3D do símbolo da Colmeia girava e piscava em cores chamativas.— O que está acontecendo?Benjamin levantou a sobrancelha, tão surpreso quanto eu:— É um pronunciamento público…Ele levantou a mão no ar, pensando duas vezes antes de apontar para o símbolo na tela. O hino foi reduzido até se tornar um s
Quando Alve entrou no quarto, encontrou-me sentado na cama. Seu rosto estava lívido. O hino da Colmeia tocava na sala, indicando que o pronunciamento acabava. Limpei as bochechas e me coloquei de pé.— Ele me disse o que você pretende fazer — falou.— Está aqui para me impedir também?Soltou o ar pelos lábios frouxos, num gesto teatral.— Como se alguma vez eu tivesse tido algum sucesso nisso… — Ele me olhou com cautela. — Eu entendo. Você nunca deixou a Leninha sozinha.Larguei a mochila sobre a cama. Pensando bem, eu não precisaria dela. Era estúpido tê-la preparado quando eu sabia que não voltaria do lugar para onde estava indo.O calor do momento se dissipava aos poucos. Minhas mãos ainda estavam trêmulas. Havia um tom de abstração naquilo tudo. Uma parte de mim ainda acreditava que meu pai estar