Chloë
— Estamos totalmente ferrados! O ambiente é um caos, as vezes parece a guerra fria. Meus pais quase não se falam. Tudo está uma maldita droga!
Observei enquanto Jony abria o pacote de biscoitos recheados e levava um à boca, apoiando em seguida a cabeça nas mãos, bagunçando seus fios de cabelo loiro, antes perfeitamente penteados, em todas as direções.
— Acho que as coisas apenas... Resultaram ser dessa maneira. Você terá que buscar a forma de conviver com isso.
Encarou-me transtornado, fitando-me com seus translúcidos olhos azuis.
— Chloë, essa é uma maneira muito distante de observar as coisas.
Remexi-me inquieta no banco frio de concreto enquanto inúmeros estudantes caminhavam ao nosso redor antes do início das aulas daquele dia. Eu simplesmente não era a pessoa indicada para temas como esse. Quando estava triste, quando me sentia frustrada, eu pintava. Eu não sabia lidar com sentimentos de outra maneira.
Eu não estava feita de palavras de conforto, eu estava feita de tinta.
Tinta branca e negra.
A maioria das pessoas não entendiam isso.
— Desculpe. — Tomei um gole do meu suco de laranja e observei em silencio enquanto o desgosto dominava seu corpo atlético e conturbava as linhas perfeitas do seu rosto.
Jony Sullivan era o protótipo perfeito de como um cara deveria ser desde o ponto de vista dos meus pais, dos professores, da maioria das meninas da escola e da maioria das pessoas que cruzavam pelo seu caminho.
Alto, ombros largos, cabelo sempre penteado, olhos da cor do mar, notas acima da média e um desempenho exemplar nos esportes. Éramos o que muitos casais da Tom Jobim (sim, o nome da minha escola é uma homenagem ao cantor e compositor carioca, embora quase todo mundo ali ignorasse qualquer forma de arte) queriam ser. Nos ajudávamos mutuamente e seguíamos um objetivo em comum: nos formar com notas sobressalentes o suficiente para ser aceitos nas melhores universidades do mundo.
E claro. Tinha a parte física também, embora essa não fosse a minha prioridade no nosso relacionamento. Eu via as coisas com Jony de um jeito mais objetivo. Parecíamos feitos da mesma matéria e avançávamos em direção ao mesmo rumo. Nossas brigas eram superficiais por ranking de melhor aluno, competições sobre os melhores projetos escolares. Longe do drama adolescente que parecia minar a cabeça das meninas da minha classe, éramos como uma dupla tão perfeita que seria desperdício se não estivéssemos juntos.
Algumas vezes eu sentia essa tal sensação de vazio na boca do estômago quando Jony me beijava e isso me fazia pintar a noite toda.
Não queria perdê-lo.
Jony era preto e branco e por isso eu o conhecia tão bem.
ღ ♥ ღ ♥ ღ ♥ ღ ♥
O sinal tocou no exato momento em que Gabriel Sullivan passou pelos portões de ferro e entrou no pátio principal da Tom Jobim. Como uma corrente inesperada de ar, ele caminhou e desapareceu pelos corredores sem olhar para nenhum lugar em especial, sem titubear diante das miradas inquisitivas, sem se importar com os comentários que ecoavam sem pudor pelo pátio em sua direção.
Vi quando Jony cerrou as mãos em punho. Vi quando apertou o maxilar e seus olhos se dilataram. Vi quando colocou a mochila nas costas me arrastando para longe dali.
Não era difícil decifrar todo o burburinho que corria pelos corredores da escola. Andrés Sullivan, um dos empresários mais renomados da indústria farmacêutica, tinha um outro herdeiro. Um filho fora do casamento com uma estrangeira que havia falecido recentemente depois de lutar durante dois anos contra um câncer no pulmão. Ao parecer, o senhor Sullivan era a única pessoa que poderia oferecer um futuro decente ao seu filho, que havia nascido em uma pequena cidade escondida no sul da Argentina. Esse havia sido o último pedido de sua amante antes que ela se convertesse em sonhos.
Um escândalo que havia sido nota em alguns jornais da cidade, mas que logo havia sido deixado de lado por problemas visivelmente maiores e por fofocas mais rentáveis depois de algum tempo.
Uma lacuna permanente na família de Jony. Uma página a mais nas notícias de uma das cidades mais visitadas do nosso país.
Inúmeros pares de olhos curiosos acompanharam com certo descaro a chegada do novo aluno. Logo a história de infidelidade que rondava a família de Jony deixaria de ser novidade também na conceituada escola da zona sul de um dos bairros mais caros do Rio de Janeiro. É realmente curioso como pessoas com grande poder econômico tendem a protagonizar escândalos. Foi o que eu disse a Jony antes de entrarmos na sala de aula esperando que ele entendesse que logo toda essa história sairia dos holofotes.
Eu não sabia o que esperar.
Naquele momento eu não sabia nada sobre Gabriel Sullivan.
Gab não é o tipo de escândalo que se perde com o tempo.
Ele é mais como uma tinta permanente e brilhante com a qual você corre o risco de se ofuscar se chega perto demais.
ღ ♥ ღ ♥ ღ ♥ ღ ♥
— Abram seus livros, por favor na página 46 de atividades.
O método de ensino da professora Morgan consistia em matar-nos de tédio durante todo o primeiro tempo de aula.
Por mim tudo bem. Nunca achei que o segundo grau fosse uma espécie de festa adolescente com liberdade limitada. Não era como se não soubéssemos que estávamos ali para estudar e aprender o que quer que fosse ensinado da melhor forma possível. Se fosse para perder o meu tempo, eu não acordaria as seis da manha cinco dias da semana.
É claro que minha companheira de classe não estava de acordo com isso.
— Ele é totalmente gostoso! — Desde o início do ano eu me sentava ao lado de Lorena Machado, ou Lore, como ela gostava de ser chamada. Seu pai era dono de uma rede de academias que monopolizava toda a zona sul da cidade. Lorena, na maioria das vezes, era totalmente o que as pessoas diziam que ela era: Uma garota fútil. Nas outras ela era simplesmente insegura e torpe. Uma combinação que eu preferiria não ter ao lado como companheira de mesa, embora não tivesse escolha.
Aproximou-se mais do meu ouvido enquanto abria o livro na página em que a professora havia indicado.
— Você falou com ele?
— Não. — Respondi abrindo meu próprio livro, tendo o cuidado de não encontrar os olhos dela, arregalados e carregados de uma maquiagem que tenho certeza, ela pensava ser discreta, cravados em mim. Talvez assim ela desistisse.
— Qual é Chloë! Ele agora faz parte da família do seu namorado! Você tem que saber algo!
— Não tenho ido à casa do Jony, as coisas simplesmente... Estão complicadas.
— E você não tem curiosidade? Quero dizer, por saber mais sobre toda essa história?
— Não me interessa. — A encarei irritada. — Jony está sofrendo por isso.
Bufou e encostou na cadeira cruzando os braços sobre os peitos tamanho GG.
— Você é tão estranha!
Observei-a por um momento tentando entender o que tinha de estranho em não me querer meter na vida dos outros e decidi que não me importava o suficiente com o que ela pensava de mim para perder meu tempo tentando. Comecei a resolver as questões do livro e preferi manter a boca fechada. Não queria dar motivos para que Lorena achasse que eu estava interessada no que ela pensava. Porque eu não estava. Nem em mil anos. Suas unhas largas tamborilavam sobre as folhas do caderno, seus pés batiam fora do ritmo enquanto seus lábios cantarolavam baixinho uma canção.
— Algum problema com o exercício senhorita Machado?
Endireitou o corpo na cadeira ao meu lado e abriu um amplo sorriso com seus lábios rosa Tuti-Frutti.
— Claro que não professora Morgan, eu só estava... Fazendo uma pequena consulta a Chloë.
— Pois peço que, por favor, faça seu próprio trabalho. Lembre-se que as provas serão individuais.
Lorena assentiu educadamente enquanto resmungava baixinho insultos que eu prefiro não repetir.
Você acha que ele tem namorada?
Empurrou um pedaço de papel de caderno até o meu lado da mesa e sorriu me cutucando levemente para que eu respondesse.
Eu NÃO sei!
Fez um bico e voltou a escrever rapidamente enquanto observava atentamente as costas da professora Morgan, que agora fazia algumas anotações no quadro.
Mas você pode descobrir. Afinal, você é a cunhada agora 😊
Revirei os olhos e respirei fundo. Não entendia que tipo de sorte horrível tinha me destinado a sentar todo o maldito ano letivo ao lado dela. Eu simplesmente não suportaria por muito tempo e estávamos apenas na metade do ano.
— Por favor, Chloë! — Sussurrou bem perto do meu rosto. Seu perfume era enjoativo e forte. — Você sabe que eu estou um caco desde que terminei com o idiota do Igor! Algo novo me viria super bem. — Arqueou a sobrancelha perfeitamente alinhada na minha direção de forma cumplice enquanto abria um sorriso amigável demais pro meu gosto.
— Senhorita Machado! — A voz da professora Morgan assumiu um tom mais severo e seus olhos escuros pousaram-se sobre Lorena, estreitando-se enquanto sua cabeça maquinava. Logo, como se fosse a ideia mais fabulosa do mundo, seus olhos pousaram-se em mim e seu rosto se iluminou. — Chloë, por favor, troque de lugar com o Thomas.
E assim, como se o destino estivesse embaralhando as peças de uma forma que naquele momento eu não poderia explicar, meus pés me guiaram até a última fileira da sala que para o meu completo desconcerto pertencia ao motivo de toda aquela conversa.
Apoiei minhas coisas na mesa dupla e me sentei sob o olhar atento de Jony algumas mesas a minha frente.
Gabriel observou as duas únicas cores que se repetiam em todos os materiais sobre a mesa que passaríamos a compartir enquanto eu me acomodava no antigo lugar de Thomas ao lado dele.
Branco e negro.
Era assim que eu via as cores antes.
Era assim que eu entendia as pessoas antes dele chegar.
ChloëA semana não foi nada menos que intrigante e certamente desconcertante de muitas maneiras. Fingíamos não nos conhecer, e de fato era assim, embora eu soubesse exatamente quem ele era. Era o caos e a tempestade que havia caído inesperada e torrencialmente sobre a família de Jony. Ele era a pessoa que estava fazendo com que meu namorado estivesse passando por um momento difícil, era o segredo que sua família havia ocultado tão bem durante anos e que veio à tona da forma mais explosiva possível, ameaçando terminar com um casamento de anos. A senhora Sullivan havia suportado a traição do marido, havia concordado com o registro do filho
GabInsossa, insípida, maçante. Era absolutamente frustrante passar todas essas horas, cinco dias da semana, sentado ao lado de alguém que tinha absoluto fanatismo pela perfeição, alguém que não enxergava nada além de tons básicos.Observei sua camisa do uniforme perfeitamente passada, seu jeans caro na medida certa, seus cabelos soltos, dourados, longos e retos. Eles cheiravam a frutas e a shampoo.Seu gloss brilhava transparente sobre seus lábios cor de rosa. Seus olhos esverdeados lutavam por manter uma distância prudente de mim. Era engraçado observar como seu corpo tencionava diante de qualquer ínfimo movimento meu a
ChloëAcomodei a calça apenas para ocupar as mãos enquanto caminhava a sua frente visivelmente perturbada. Arrumei o moletom e subi seu zíper até o pescoço enquanto as nuvens cinza assomavam-se sobre nossas cabeças como si se aproximassem mais a cada passo.Não ousei olhar para trás para comprovar se ele estava seguindo meus passos. Eu desejava fortemente que não estivesse. Que tivesse desistido ou se distraído pelo caminho.Meu celular apitou no bolso do moletom pela quadragésima vez. Observei preocupada o histórico de mensagens que havia trocado com Jony desde o momento em que havia despertado aquele mesmo dia. Não podia culp&aa
ChloëPressionei o botão invisível na minha cabeça que me desligava, que respondia a comandos quase instintivos e que me levava para longe dali, mesmo que eu não estivesse me movendo em absoluto.Um quadro, uma estátua, uma obra de arte inerte que perderia sua beleza no futuro.Sua testa franziu e seus lábios formaram um meio sorriso curioso enquanto os flashes me cegavam e eu mantinha a expressão quase nula no rosto pintado. Havia uma mescla de dúvida e diversão em sua expressão que me fez sentir ainda mais incômoda enquanto ele se apoiava na parede e cruzava os braços sobre o peito, me observando sem dissimular.En
GabNão havia cor em seu rosto e a calça de moletom um pouco grande demais com o casaco que fazia jogo indicava sua falta de disposição para aquele dia.Eu também não me encontrava exatamente feliz. Espera ansiosamente que as horas passassem com a velocidade da luz e que jamais ocorresse a nenhum outro professor uma tarefa sem sentido como aquela.Se tivesse que passar por isso de novo no futuro reprovaria.Observei seu tênis Nike branco e o capuz por cima dos cabelos despenteados e ela me olhou como se pudesse atravessar meu crânio com tão somente uma mirada.— Você é um maldito galo? — Perguntou enquant
ChloëCores...Tantas... Tão brilhantes... pareciam infinitas. Como se ao mesclar uma com a outra eu pudesse continuar criando cores novas que ainda não tinham nome, que ainda não tinham sido descobertas.Observei aquele pequeno lugar no mundo e uma sensação de nostalgia que jamais havia sentido antes me invadiu por completo. Era como se já tivesse estado ali antes, embora estivesse bastante segura de nunca ter pisado em um lugar assim.Minhas mãos estavam sujas de tinta, meus tênis abrigavam todo o tipo de mesclas e tons que eu jamais tinha usado antes. O pincel pendia entre meus dedos enquanto eu observava com estranheza aquela paisagem tão reconfortante a minha frente.
ChloëEu estava tremendo e não saberia dizer se era pela febre que obviamente começava a se apoderar do meu corpo ou se era o torpor que essa pergunta havia causado em ambos.— O que...— Sua expressão de desconcerto me atemorizou, como se não pudesse entender ou não quisesse entender tal pergunta. Seu semblante, até então ameno, se tornou sombrio e distante.Neguei antes que seus lábios pudessem completar a frase. O que eu tinha acabado de dizer? De onde tinha surgido essa sensação absurda?Gab me segurou pelo pulso e me arrastou até o quartinho nos fundos do restaurante a fim de evitar que nossa conver
GabNão sei por quanto tempo estive observando o teto do quarto como se ele contivesse a resposta do por que o cheiro do shampoo dela havia ficado impregnado em mim.Sei que foi tempo demais. Tanto tempo que a briga do meu pai com a esposa cessou. Tanto tempo que o som do Rip Rop rebelde vindo do quarto de Jony parou. Tanto tempo e eu ainda não tinha as respostas...Desfiz-me da roupa como se pudesse me livrar daquele cheiro a shampoo caro e entrei no chuveiro como se pudesse esquecer seus dedos trêmulos segurando o meu pulso naquele quarto escuro.Agradeci porque esse trabalho tão absurdo tinha terminado.Adormeci confiando nisso.