Chloë
A semana não foi nada menos que intrigante e certamente desconcertante de muitas maneiras. Fingíamos não nos conhecer, e de fato era assim, embora eu soubesse exatamente quem ele era. Era o caos e a tempestade que havia caído inesperada e torrencialmente sobre a família de Jony. Ele era a pessoa que estava fazendo com que meu namorado estivesse passando por um momento difícil, era o segredo que sua família havia ocultado tão bem durante anos e que veio à tona da forma mais explosiva possível, ameaçando terminar com um casamento de anos. A senhora Sullivan havia suportado a traição do marido, havia concordado com o registro do filho ilegítimo e havia até mesmo estado de acordo com o dinheiro que o marido enviava ao exterior para o estudo do menino. Mas suportá-lo em sua casa compartilhando os momentos em família era demais.
A família de Jony caía como quem se deixa levar por uma rampa inclinada em direção ao vazio. Um destino completamente desconhecido. Carente de conversas que esclarecessem as coisas e que explicassem como cada membro daquela família se sentia, eles pareciam se fechar em sua própria bolha. Aparentando uma normalidade fria mesmo quando tudo havia mudado.
Por outro lado, Gabriel também sabia quem eu era, embora isso não parecesse importar o mais mínimo. Toda aquela situação parecia diverti-lo e desagradá-lo ao mesmo tempo e eu simplesmente não conseguia decifrar sua falta de interesse e seu comportamento tão neutral em meio a todo aquele caos.
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Apoiei meu material na mesa, olhando para a frente como um soltado em posição de alerta, enquanto tirava o caderno, canetas, marcadores e livro da mochila.
Jony me lançou um olhar insatisfeito por cima do ombro algumas cadeiras à frente e eu tentei forçar meu melhor sorriso, embora tivesse sido um completo fracasso. Eu não sabia dissimular. E Jony também não. Éramos bem similares nisso. Aquele seria o início de outra semana muito estranha onde eu basicamente tentava fingir que a pessoa ao meu lado não existia enquanto tentava em silencio tranquilizar um Jony furioso lançando olhares de alerta na minha direção.
Movi-me inquieta acomodando-me na cadeira, embora me esforçasse ao máximo para que meus movimentos fossem quase imperceptíveis. Observei de soslaio como sua caneta corria furiosa sobre o papel branco do caderno.
Cores.
Muitas. Demasiadas. Confusas. Contraditórias.
Eu jamais usaria combinações assim.
Eu não suportava tantas cores. O mundo não deveria ser tão complicado.
As formas também não tinham sentido, mas algo me dizia que eu conhecia aquele lugar... Sua mão movia-se com uma velocidade desconcertante. Não pude quitar meus olhos dela. Suas linhas não eram precisas, não havia técnica, era tão imperfeito e desconcertante...
Quis pausá-lo. Quis pedir que parasse. Quis dizer que se equivocava e que isso não estava certo, que era impossível construir bases sólidas sobre linhas tortas. Que era impossível ser racional quando tudo parecia explodir em um caos de cores confusas, mas seus olhos encontraram os meus.
Congelei.
Azul, preto, branco...
— Muy Bien! Muy bien ya basta... — A voz da professora de espanhol me liberou do universo de cores difusas no qual os olhos dele haviam me aprisionado. Engoli em seco e me endireitei na cadeira. Postura firme, olhos fixos a minha frente como se meu mundo dependesse do simples fato de manter meus olhos longe daquele desenho confuso.
Mas por que diabos eu ainda sentia os olhos dele sobre mim?
Apertei o tecido da calça jeans que estava usando até sentir meus dedos queimarem enquanto lutava por permanecer impassível no meu lugar.
— Abran los cuadernos y hagan silencio por favor. No quiero tener que enviar a nadie de visita a la dirección.
Senti seus olhos queimando sobre mim. Como se me tocassem com apenas uma mirada. Fechei os olhos por breves segundos desejando que aquilo terminasse. E terminou. De pronto, já não estava sendo observada, como se tudo não tivesse passado de algo da minha cabeça.
Meu coração voltou a bater normalmente no momento em que a professora chamou meu nome e me pediu para ler um parágrafo do livro.
Jamais agradeci tanto a Soledad por me fazer passar vergonha nas aulas de espanhol.
Abri a página indicada do livro e pronunciei torpemente cada palavra. Eu era ótima em todas as matérias, mas era quase medíocre nas aulas da Soledad. Não por que eu não pudesse pronunciar "Nuestra canción sonó tristemente en la noche fria..." senão porque Soledad era exigente demais e todas as minhas excelentes notas não a convenceriam de pegar mais leve comigo.
— Creo que podrías hacer mejor señorita Dantas. Inténtalo nuevamente, por favor.
Revirei os olhos dissimuladamente e apertei o livro com as mãos enquanto sentia o olhar fixo dos meus companheiros de classe sobre mim. Essa era uma das poucas oportunidades que tinham de ver a melhor aluna da classe em apuros em uma matéria.
Bando de estúpidos.
— "Si vas a intentarlo, ve hasta el final. De otra forma ni siquiera comiences..." — Minha pronunciação estava beirando a calamidade, minhas mãos começaram a transpirar. Eu não tinha pânico do público. Geralmente lidava com esse tipo de situação como se tivesse sozinha em meu quarto falando comigo mesma. Mas agora não podia tirar aquelas malditas cores da cabeça. Desconexas, inexatas... Estava distraída por todos aqueles tons e o absurdo caótico que conformavam quando juntos.
Quando Soledad permitiu finalmente que eu parasse, minhas pernas falharam e senti um estranho desejo de me tornar invisível.
Esse era o efeito de um mundo com demasiadas matizes.
Ele te confunde, te absorve e logo, nada mais volta a ser como antes.
— Gab. — Soledad pousou os olhos escuros por trás dos óculos de armação barata e sem graça na cadeira ocupada ao meu lado. — Podrías continuar, por favor?
Seu braço roçou levemente no meu quando ele se moveu para alcançar a mochila e pegar seu livro. Sinais de alerta foram enviados desde muitos lugares diferentes de mim, de dentro para fora, como uma corrente elétrica insuportável e inoportuna.
Sendo seu idioma natal, Gabriel se sentia total e completamente relaxado com as palavras que vieram a seguir...
— "La soledad es un regalo. Los demás son una prueba de tu insistencia, o
de cuánto quieres realmente hacerlo. Y lo harás, a pesar del rechazo y de las desventajas, y será mejor que cualquier cosa que hayas imaginado..."Fechei os olhos e vi as cores.
Tantas cores, infinitas e incorretas em seus tons.
E sua voz estava feita de cores, assim como seus olhos, assim como tudo ao seu redor.
Ele era o que não podia, o que não deveria ser.
"Llevarás la vida directo a la perfecta carcajada.Es la única buena lucha que hay"
*Trecho de um texto de Charles Bukowski
GabInsossa, insípida, maçante. Era absolutamente frustrante passar todas essas horas, cinco dias da semana, sentado ao lado de alguém que tinha absoluto fanatismo pela perfeição, alguém que não enxergava nada além de tons básicos.Observei sua camisa do uniforme perfeitamente passada, seu jeans caro na medida certa, seus cabelos soltos, dourados, longos e retos. Eles cheiravam a frutas e a shampoo.Seu gloss brilhava transparente sobre seus lábios cor de rosa. Seus olhos esverdeados lutavam por manter uma distância prudente de mim. Era engraçado observar como seu corpo tencionava diante de qualquer ínfimo movimento meu a
ChloëAcomodei a calça apenas para ocupar as mãos enquanto caminhava a sua frente visivelmente perturbada. Arrumei o moletom e subi seu zíper até o pescoço enquanto as nuvens cinza assomavam-se sobre nossas cabeças como si se aproximassem mais a cada passo.Não ousei olhar para trás para comprovar se ele estava seguindo meus passos. Eu desejava fortemente que não estivesse. Que tivesse desistido ou se distraído pelo caminho.Meu celular apitou no bolso do moletom pela quadragésima vez. Observei preocupada o histórico de mensagens que havia trocado com Jony desde o momento em que havia despertado aquele mesmo dia. Não podia culp&aa
ChloëPressionei o botão invisível na minha cabeça que me desligava, que respondia a comandos quase instintivos e que me levava para longe dali, mesmo que eu não estivesse me movendo em absoluto.Um quadro, uma estátua, uma obra de arte inerte que perderia sua beleza no futuro.Sua testa franziu e seus lábios formaram um meio sorriso curioso enquanto os flashes me cegavam e eu mantinha a expressão quase nula no rosto pintado. Havia uma mescla de dúvida e diversão em sua expressão que me fez sentir ainda mais incômoda enquanto ele se apoiava na parede e cruzava os braços sobre o peito, me observando sem dissimular.En
GabNão havia cor em seu rosto e a calça de moletom um pouco grande demais com o casaco que fazia jogo indicava sua falta de disposição para aquele dia.Eu também não me encontrava exatamente feliz. Espera ansiosamente que as horas passassem com a velocidade da luz e que jamais ocorresse a nenhum outro professor uma tarefa sem sentido como aquela.Se tivesse que passar por isso de novo no futuro reprovaria.Observei seu tênis Nike branco e o capuz por cima dos cabelos despenteados e ela me olhou como se pudesse atravessar meu crânio com tão somente uma mirada.— Você é um maldito galo? — Perguntou enquant
ChloëCores...Tantas... Tão brilhantes... pareciam infinitas. Como se ao mesclar uma com a outra eu pudesse continuar criando cores novas que ainda não tinham nome, que ainda não tinham sido descobertas.Observei aquele pequeno lugar no mundo e uma sensação de nostalgia que jamais havia sentido antes me invadiu por completo. Era como se já tivesse estado ali antes, embora estivesse bastante segura de nunca ter pisado em um lugar assim.Minhas mãos estavam sujas de tinta, meus tênis abrigavam todo o tipo de mesclas e tons que eu jamais tinha usado antes. O pincel pendia entre meus dedos enquanto eu observava com estranheza aquela paisagem tão reconfortante a minha frente.
ChloëEu estava tremendo e não saberia dizer se era pela febre que obviamente começava a se apoderar do meu corpo ou se era o torpor que essa pergunta havia causado em ambos.— O que...— Sua expressão de desconcerto me atemorizou, como se não pudesse entender ou não quisesse entender tal pergunta. Seu semblante, até então ameno, se tornou sombrio e distante.Neguei antes que seus lábios pudessem completar a frase. O que eu tinha acabado de dizer? De onde tinha surgido essa sensação absurda?Gab me segurou pelo pulso e me arrastou até o quartinho nos fundos do restaurante a fim de evitar que nossa conver
GabNão sei por quanto tempo estive observando o teto do quarto como se ele contivesse a resposta do por que o cheiro do shampoo dela havia ficado impregnado em mim.Sei que foi tempo demais. Tanto tempo que a briga do meu pai com a esposa cessou. Tanto tempo que o som do Rip Rop rebelde vindo do quarto de Jony parou. Tanto tempo e eu ainda não tinha as respostas...Desfiz-me da roupa como se pudesse me livrar daquele cheiro a shampoo caro e entrei no chuveiro como se pudesse esquecer seus dedos trêmulos segurando o meu pulso naquele quarto escuro.Agradeci porque esse trabalho tão absurdo tinha terminado.Adormeci confiando nisso.  
ChloëNão sei como ele me encontrou ali. Eu não deveria ter saído de casa.Eu não deveria estar ali.Ele também não.Dei um passo incerto em sua direção sem me importar com ar fresco que a manhã levantava, sem me importar com a maquiagem pesada que levava no rosto, sem me importar com o short jeans da nova coleção primavera/verão mais curto do que o normal que deixava minhas pernas a amostra.Outro passo, enquanto os carros rugiam e o mar parecia nos convidar para uma última batalha.Outro passo, e seus olhos tão confusos e relutantes quanto os meus jamais