Imprecisão

                                                              Chloë

A semana não foi nada menos que intrigante e certamente desconcertante de muitas maneiras. Fingíamos não nos conhecer, e de fato era assim, embora eu soubesse exatamente quem ele era.  Era o caos e a tempestade que havia caído inesperada e torrencialmente sobre a família de Jony. Ele era a pessoa que estava fazendo com que meu namorado estivesse passando por um momento difícil, era o segredo que sua família havia ocultado tão bem durante anos e que veio à tona da forma mais explosiva possível, ameaçando terminar com um casamento de anos. A senhora Sullivan havia suportado a traição do marido, havia concordado com o registro do filho ilegítimo e havia até mesmo estado de acordo com o dinheiro que o marido enviava ao exterior para o estudo do menino. Mas suportá-lo em sua casa compartilhando os momentos em família era demais.

A família de Jony caía como quem se deixa levar por uma rampa inclinada em direção ao vazio. Um destino completamente desconhecido. Carente de conversas que esclarecessem as coisas e que explicassem como cada membro daquela família se sentia, eles pareciam se fechar em sua própria bolha. Aparentando uma normalidade fria mesmo quando tudo havia mudado.

Por outro lado, Gabriel também sabia quem eu era, embora isso não parecesse importar o mais mínimo. Toda aquela situação parecia diverti-lo e desagradá-lo ao mesmo tempo e eu simplesmente não conseguia decifrar sua falta de interesse e seu comportamento tão neutral em meio a todo aquele caos.

                                                      ღ ♥ ღ ♥ ღ ♥ ღ ♥

Apoiei meu material na mesa, olhando para a frente como um soltado em posição de alerta, enquanto tirava o caderno, canetas, marcadores e livro da mochila.

Jony me lançou um olhar insatisfeito por cima do ombro algumas cadeiras à frente e eu tentei forçar meu melhor sorriso, embora tivesse sido um completo fracasso. Eu não sabia dissimular. E Jony também não. Éramos bem similares nisso. Aquele seria o início de outra semana muito estranha onde eu basicamente tentava fingir que a pessoa ao meu lado não existia enquanto tentava em silencio tranquilizar um Jony furioso lançando olhares de alerta na minha direção.

Movi-me inquieta acomodando-me na cadeira, embora me esforçasse ao máximo para que meus movimentos fossem quase imperceptíveis. Observei de soslaio como sua caneta corria furiosa sobre o papel branco do caderno.

Cores.

Muitas. Demasiadas. Confusas. Contraditórias.

Eu jamais usaria combinações assim.

Eu não suportava tantas cores. O mundo não deveria ser tão complicado.

As formas também não tinham sentido, mas algo me dizia que eu conhecia aquele lugar... Sua mão movia-se com uma velocidade desconcertante. Não pude quitar meus olhos dela. Suas linhas não eram precisas, não havia técnica, era tão imperfeito e desconcertante...

Quis pausá-lo. Quis pedir que parasse. Quis dizer que se equivocava e que isso não estava certo, que era impossível construir bases sólidas sobre linhas tortas. Que era impossível ser racional quando tudo parecia explodir em um caos de cores confusas, mas seus olhos encontraram os meus.

Congelei.

Azul, preto, branco...

— Muy Bien! Muy bien ya basta... — A voz da professora de espanhol me liberou do universo de cores difusas no qual os olhos dele haviam me aprisionado. Engoli em seco e me endireitei na cadeira. Postura firme, olhos fixos a minha frente como se meu mundo dependesse do simples fato de manter meus olhos longe daquele desenho confuso.

Mas por que diabos eu ainda sentia os olhos dele sobre mim?

Apertei o tecido da calça jeans que estava usando até sentir meus dedos queimarem enquanto lutava por permanecer impassível no meu lugar.

— Abran los cuadernos y hagan silencio por favor. No quiero tener que enviar a nadie de visita a la dirección.

Senti seus olhos queimando sobre mim. Como se me tocassem com apenas uma mirada. Fechei os olhos por breves segundos desejando que aquilo terminasse. E terminou. De pronto, já não estava sendo observada, como se tudo não tivesse passado de algo da minha cabeça.

Meu coração voltou a bater normalmente no momento em que a professora chamou meu nome e me pediu para ler um parágrafo do livro.

Jamais agradeci tanto a Soledad por me fazer passar vergonha nas aulas de espanhol.

Abri a página indicada do livro e pronunciei torpemente cada palavra. Eu era ótima em todas as matérias, mas era quase medíocre nas aulas da Soledad. Não por que eu não pudesse pronunciar "Nuestra canción sonó tristemente en la noche fria..." senão porque Soledad era exigente demais e todas as minhas excelentes notas não a convenceriam de pegar mais leve comigo.

— Creo que podrías hacer mejor señorita Dantas. Inténtalo nuevamente, por favor.

Revirei os olhos dissimuladamente e apertei o livro com as mãos enquanto sentia o olhar fixo dos meus companheiros de classe sobre mim. Essa era uma das poucas oportunidades que tinham de ver a melhor aluna da classe em apuros em uma matéria.

Bando de estúpidos.

— "Si vas a intentarlo, ve hasta el final. De otra forma ni siquiera comiences..." — Minha pronunciação estava beirando a calamidade, minhas mãos começaram a transpirar. Eu não tinha pânico do público. Geralmente lidava com esse tipo de situação como se tivesse sozinha em meu quarto falando comigo mesma. Mas agora não podia tirar aquelas malditas cores da cabeça. Desconexas, inexatas... Estava distraída por todos aqueles tons e o absurdo caótico que conformavam quando juntos.

Quando Soledad permitiu finalmente que eu parasse, minhas pernas falharam e senti um estranho desejo de me tornar invisível.

Esse era o efeito de um mundo com demasiadas matizes.

Ele te confunde, te absorve e logo, nada mais volta a ser como antes.

— Gab. — Soledad pousou os olhos escuros por trás dos óculos de armação barata e sem graça na cadeira ocupada ao meu lado. — Podrías continuar, por favor?

Seu braço roçou levemente no meu quando ele se moveu para alcançar a mochila e pegar seu livro. Sinais de alerta foram enviados desde muitos lugares diferentes de mim, de dentro para fora, como uma corrente elétrica insuportável e inoportuna.

Sendo seu idioma natal, Gabriel se sentia total e completamente relaxado com as palavras que vieram a seguir...

— "La soledad es un regalo. Los demás son una prueba de tu insistencia, o

de cuánto quieres realmente hacerlo. Y lo harás, a pesar del rechazo y de las desventajas, y será mejor que cualquier cosa que hayas imaginado..."

Fechei os olhos e vi as cores.

Tantas cores, infinitas e incorretas em seus tons.

E sua voz estava feita de cores, assim como seus olhos, assim como tudo ao seu redor.

Ele era o que não podia, o que não deveria ser.

"Llevarás la vida directo a la perfecta carcajada.

Es la única buena lucha que hay"

*Trecho de um texto de Charles Bukowski

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