E ao entrar no ginásio, nossas vidas se separariam inevitavelmente, porque era muito provável que nossos pais nos colocassem em escolas diferentes. A essas alturas, depois da segunda série, eu decidi que fugiria do cabeleireiro e minha mãe não cortaria mais meu cabelo com um cogumelo ridículo que fazia com que eu parecesse estar com um capacete. O problema é que apesar das reclamações no início, ela cedeu facilmente, e eu não cortei mais o meu cabelo, o que significa que ele estava um tanto comprido agora, e que ao entrar nessa nova escola, um magrelo como eu poderia ser ridicularizado como menina. Isso já seria mais um problema, eu pensava. Mesmo assim, eu já tinha me acostumado com a parte chata de deixar o meu cabelo crescer, que era o fato de ter que cuidar dele, não que um cabelo liso desse problema, mas demorava pra secar depois do banho, e eu me recuso a usar um secador de cabelos como a minha mãe, isso é coisa de mulher, e provavelmente o manteria assim.
Havia se criado na minha antiga escola um costume, entre as professoras e alunos, quando queriam me chamar, que era me chamar pelo sobrenome. A adaptação de esse costume militar à minha vida foi útil, porém isso não excluía o fato de que os alunos sabiam o meu nome. Nessa nova escola eu não sabia o que iria acontecer. Pelo menos havia uma vantagem nesse novo lugar, que não fazia muita diferença na minha vida na verdade, foi só um pensamento que me ocorreu, naquela hora, de que era muito menos ridículo o fato de que os uniformes da minha escola agora fossem num tom cinza cor de rato.
Estava aguardando no meio da multidão de alunos conferindo as suas salas para ver a minha, e fiquei feliz por ter visto alguns nomes conhecidos nela, e outros nem tanto. Pelo menos, graças à proximidade geográfica, meus antigos amigos ficaram na mesma sala que eu, os três, algumas das pessoas que gostavam de me importunar com piadinhas também, e vários desconhecidos, que logo provavelmente se comportariam como todos sempre faziam, achando que eu dava azar, que eu era algum tipo de problema, ou algo similar a isso. Certo é que eu já tinha aprendido que raramente se consegue amigos na escola.
Lembro-me de ter ouvido algo a respeito de que no último ano do primário, quando Marianna ficou mais próxima de nós, que a sua mãe tinha falecido, e que seu pai tinha alguns primos distantes que foram morar no oriente, e provavelmente devem ter se casado por lá, o que fazia de um dos alunos do penúltimo ano, um menino com alguns traços orientais, mas não tão marcantes, um primo em segundo grau de Marianna. Eu não tinha perguntado, mas tinha quase certeza de que o pai dela tinha se convertido a alguma religião oriental, e eu esperava que essa coisa nova não tivesse mais algum tipo de superstição dizendo que eu era amaldiçoado, porque eu já tinha bastantes problemas com a sociedade ocidental. Porém, pelo que parecia, ela não tinha mais problemas em poder ser nossa amiga, e passamos a integrar um grupo mais abertamente.
Algumas das meninas me olharam de um modo estranho quando eu entrei na sala. Eu cumprimentei meus amigos e escolhi meu lugar. Alguns dos meninos cochichavam algo, provavelmente sobre o meu cabelo, o meu andar desajeitado ou o grupo estranho em que estávamos no geral. Luís continuava sendo gordinho, Ricardo continuava com óculos maiores que a sua cara, e Mariana continuava com aquela cara sardenta e cabelos cacheados revoltosos, e eu, bom, eu continuava com o azar de tropeçar do nada, derrubar e quebrar coisas que não deveriam ser quebradas, e agora, com o cabelo quase abaixo da altura dos ombros, provavelmente "como uma garota" é o que diriam.
Depois da chamada, e depois de eu instintivamente me encolher ao ouvir meu nome, era como se a turma tivesse medo de mim, e aparentemente, mais ainda do restante das pessoas que estava comigo. Alguns olhavam estranho, as professoras de todos os períodos limitaram-se logo a me chamar pelo sobrenome, ao que eu agradeci, mas agradeceria mais ainda se elas não chamassem meu nome na chamada. Pelos olhares de alguns, eu poderia supor que seriamos importunados, afinal, porque não? Mesmo assim, haviam alguns olhares estranhos para Marianna, que eu não sabia definir, e os antigos olhares de algumas meninas em mim tinham um tipo de tom diferente agora. Bom, tinha começado mais um pequeno inferno.
No intervalo das aulas estávamos conversando enquanto lanchávamos, não que isso em si fosse um problema, mas para alguns de nossos colegas, aparentemente, a nossa existência era um problema. E pelo visto, eles contavam no máximo que eu fosse querer alguma briga por isso, o cara estranho, ou seja, eu. Marianna era uma menina, eles não a contavam, e Luís, bom, aparentemente na visão deles ele era só mais um nerd, juntamente com Ricardo e seus óculos chamativos no meio de seu rosto magro.
Essa era uma escola grande, havia muitas turmas e muitos alunos, então, era normal que ninguém viesse em nosso socorro, afinal, que importância isso teria para desconhecidos. Mesmo assim, sem saber de onde isso veio, aqueles garotos que nos atormentavam foram derrubados, levaram uma rasteira, e de trás deles eu via levantar-se um garoto um tanto magro, mais alto que eu um pouco, que era, junto com Ricardo, o mais alto do grupo, esse garoto tinha um sorriso branco reluzente em sua pele escura, e trancinhas com contas coloridas no cabelo que era pouca coisa mais comprido que o meu, parecia não estar dando a mínima para aqueles importunadores, e nos cumprimentou normalmente. Assim foi que conhecemos Jamal. Ele não parecia dar a mínima para a minha pessoa, até me achava um pouco idiota, tudo bem que as minhas notas eram medianas, comparadas com as dele e as de Ricardo, mas era como se ele esperasse que por isso eu tivesse alguma habilidade mais interessante, personalidade ou coisa do tipo. Ele era estranho na escola, afinal, não há muitas pessoas que chegaram com um português de forte sotaque, vindo de uma família moçambicana que chegou ao país recentemente.
O primo em seja lá qual grau de Marianna, Shizuo, estava no último ano do colegial ali, e era uma pessoa muito educada. Ele era o tipo de pessoa que intimidava os outros alunos naturalmente de perto de nós, afinal, ele era da "turma dos grandes" e parecia não se importar nem um pouco comigo também, apesar de dizer que eu dava azar, coisa a que eu me acostumei.
Os anos seguintes sem Shizuo foram pouco complicados. Nós seguíamos a política de não nos metermos em brigas inúteis, apesar de Jamal ser um capoeirista excelente, e eu e Mariana estarmos desde o meio do nosso primeiro ano de ginasial no mesmo dojo, por indicação de Shizuo, Luís ser um aficcionado por boxe que finalmente começava a ficar menos gordinho, mais alto que eu e severamente mais assustador. Ricardo aparentemente sempre continuou sendo somente o inteligente do grupo, e nós que tínhamos notas medianas, tínhamos nossos clubes e outras coisas, enquanto não sabíamos se imaginávamos Ricardo com algum tipo de videogame da NASA ou treinando algum tipo de habilidade secreta.
Por nos metermos em problemas com frequência e mesmo que nunca reagíssemos sempre sermos culpados, nos tornamos mais amigos ainda. Não que conhecêssemos a família de nossos amigos, porque raramente eles iam até a escola, eles simplesmente ligavam para a direção e enchiam a diretora de ossos. E me pergunto seriamente se algum deles andaria comigo se vissem a mãe estranha que eu tenho.
Estávamos na primeira semana de férias de verão. No ano seguinte começaria o colegial. Tinham decidido que todos nós ficaríamos na mesma escola, o que eu fiquei feliz de saber. Aproveitamos o sábado à tarde para irmos à sorveteria.Todos iriamos ter três meses de férias em viagem, então, até o ano seguinte, essa seria a última vez que nos veríamos.- Porque está com essa cara desanimada, Jamal? Perguntou Marianna depois de alguns minutos.- Por que... - começa ele tristemente - não tinha mais sorvete de morango! Fala ele decidido. Ah, sim, Jamal era aficcionado por bolinhos, doces, geleias e sorvetes de morango.Eu estava pensando que apesar de tudo, nos últimos trimestres nossas notas tinham melhorado consideravelmente, e os ferimentos de brigas de que não participávamos somente aumentavam. Eu estava com um cur
Vimos Mari chegando. Aparentemente os alunos novos colocaram os olhos nela avidamente demais, Luís fez uma careta para isso. Ela era realmente muito bonita, com o tempo as sardas do seu rosto ficaram mais delicadas, e ela continuava usando aquelas chiquinhas no cabelo que ficava cacheado ao redor do seu rosto, mas ele estava mais comprido e pelo peso não fazia mais com que ela parecesse uma bola de cabelos vermelhos, caindo para trás dos seus ombros. Ela foi uma das que deve ter pensado que o uniforme da escola era prático. Estava de tênis, com a blusa branca de botões e o colete preto do uniforme desleixadamente aberto, afinal, pra quê diabos o uniforme tinha que ter um colete, mas enfim... E a saia rodada do uniforme, que antes mesmo de eu comentar, Luís perguntou quando ela chegou e tomou seu lugar atrás dele.- Ei... Mari... Tu encurtou a saia do uniforme? Ele realmente não tinha vergonha de perguntar uma
Lembro-me de quando estávamos na sexta série. Tivemos o maldito dia da profissão, e a comemoração desse dia seria catastroficamente trazer nossos pais para a turma e deixar que eles falassem de suas profissões. Ah, isso foi complicado. Eu só sei que eu simplesmente “esqueci” de avisar a minha mãe. Era menos problemático assim. Foi o que pensei.O pai da Mari tinha muitas fotos bonitas de vários lugares, como piloto de avião, ele tinha chance de viajar pra vários lugares, isso era uma vida agradável, foi o que pensei. O pai do Jamal era auxiliar de alguma coisa no escritóriodiplomático de Moçambique, era uma ocupação chata, foi o que pensei, mexer com papéis sem fim e andar de uma lado a outro atendendo telefonemas. O pai e a mãe do Rick eram ahm... Bom eles disseram tantas coisas difíceis que eu nem lembro direi
Até onde eu poderia supor, o intervalo ia muito tranquilo, não esperava algo muito diferente, afinal, era o primeiro dia.Bom, até surgir a visão do inferno, no meu conceito. Não que a Júlia não seja uma menina linda, uma morena transferida de outra escola. O Jamal achou ela a coisa mais linda do mundo, e realmente, seria perfeito se tudo fosse assim, tão simples, mas a Júlia se apaixonou por outra pessoa.Nesse tempo tranquilo de primeiros dias acabamos ficando amigos da Júlia, afinal, não custa nada criar uma proximidade entre ela e o Jamal, foi o que pensamos, a princípio. E assim, como eventualmente, no antes do início da aula, vimos a Júlia chegando, e sentando-se ao lado de Jamal, lugar que eu cedi, ficando ao lado do Luís, o que não era muito espaçoso com o tamanho dos ombros dele, e eu que já não era tão pequeno como quando
Digamos também que a princípio, eu ter surtado uma vez não foi suficiente para que Rodrigo e nossos colegas achassem que as coisas tinham mudado, mas claro, eles ficaram mais prudentes um pouco, fazendo gracejos em público, pensando que assim nenhum de nós compraria encrenca.Depois de ouvir a Mari resmungando, qualquer um de nós compraria encrenca, afinal, já fomos culpados por tantas que não fazia mais diferença. E possivelmente, se eles vissem que realmente nós não nos importávamos com essas ditas encrencas, se fosse pra fazer eles calarem a boca, talvez eles parassem mesmo. Afinal, isso só se estendeu por tanto tempo por um motivo. Éramos covardes. Ou pelo menos, pacifistas que achávamos que todo mundo seria assim se fossemos.Só que, uma coisa é fato, nesse mundo, nem todas as pessoas sabem seguir o exe
- Então, graças ao Rick, não deu em nada, só uns pontinhos... Disse eu mostrando a mão com oito pontos quando estava contando para os outros sobre isso.- Mas porque tu não registrou uma queixa na polícia? Perguntou o Luís.- Não acho que isso vá ajudar em alguma coisa... O que a polícia quer com brigas de alunos do colegial? Eles têm coisas mais importantes pra fazer que ensinar crianças a se comportarem... Disse eu meio desapontado. Era verdade, ninguém poderia fazer nada.Isso que aconteceu não era necessariamente um problema, pertencia ao passado, o problema era que aquele garoto iria se irritar mais ainda com essa ocorrência. E por algum motivo estranho, ele me detestava mais que aos outros, e francamente, não me interessavam os seus motivos, eu só queria um pouco de paz, e fo
Mas, o que foi mais interessante, excluindo a mãe do Luís tentando escolher nossas roupas ou querendo ficar amiga da Mari, que por pouco não agiria com a velha do Luís como age agora com a Júlia, bom, foi realmente incrível que nós tenhamos conseguido em uma semana naquela garagem ensaiar um repertório pro show de talentos, e que o pai do Luís, apesar da cara amarrada de militar, parecia estar querendo fazer mais bagunça que a gente.Daquela vez, eu me lembro de que a coisa foi muito estranha. A Mari ficou com a bateria, o Jamal com a mixagem eletrônica, afinal ele gostava dessas coisas, então não tivemos problemas com regulagem de som ruim, como em todos os festivais da escola, o Rick tocava violoncelo, o que foi um problema, porque nós não sabíamos como regular o som daquilo de forma eletrônica direito... Francamente, eu pensei que eu era o mais antiquado ali
Vamos dizer assim... A minha mãe provavelmente não gostou da minha cara quando eu nasci. Ou talvez, talvez ela tenha ... ela realmente tem um gosto estranho mesmo. Bom, vamos deixar essa coisa de nome por enquanto...Eu sou um estudante até o momento, terminarei meu ensino médio e começarei uma universidade que não sei por que escolhi. Talvez pensar que não posso ficar um dia inteiro preso dentro de um escritório reduza aumente meus problemas, só que, eu aprendi a lidar com problemas, é isso que eu tenho que fazer. Apesar de que contabilidade é a coisa mais chata do mundo provavelmente eu serei outro tipo de doutor, e isso vai ser um tanto aventureiro pra um cara como eu... A minha mãe queria que eu fosse "doutor" e fizesse medicina. Eu não poderia me sentir mais desconfortável na vida que com uma profissão em que eu teria que lidar incessantemente com público.