Laura
Eu queria afirmar com toda a certeza que não estava preocupada com a situação em que me encontrava naquele momento. Queria dizer que isso era fichinha e, por mais complicado que parecesse aos olhos de quem me visse assim, era só uma questão de tempo para que eu estivesse livre e com as informações que tanto desejava.Mas, não, nunca era tão simples assim.Eu estava ferrada, se considerasse meu machucado, a falta de armas ao meu dispor e o atirador bem experiente em minha frente. Claro, tudo tinha um jeito, e para aquela situação não seria diferente. Só bastava começar a pensar com calma, algo bem difícil de se fazer.Suspirando, olhei para os lados, tentando considerar todas minhas alternativas — que não eram muitas — e me deparei com meu antigo esconderijo. Ali talvez houvesse algo que poderia me ajudar; um singelo e nojento saco de lixo. Para qualquer outra pessoa em minha situação, isso não seria nada, mas para mim era uma oportunidade que não eu iria ousar desperdiçar, e só precisava de um pouco mais de enrolação para poder usufruir dela.— O que você tanto pensa? — o homem perguntou, e eu me virei para ele. Em seus olhos pude ver um desejo límpido de querer ver meu desespero, o medo que qualquer presa tem antes de encontrar seu fim.Eu não queria dar este gostinho a ele, mas soou tão bem aos meus ouvidos a ideia de criar uma "personagem" que pudesse entrar nesse papel que não pude evitar; encolhi os ombros e forcei meu corpo a tremer. Olhos arregalados, boca levemente aberta e uma leve expressão de pavor tomava meu rosto aos poucos, mesmo que fosse a mais falsa possível.Ele sorriu ao ver minha reação. E eu arrepiei de verdade ao ver o quão louco aquele homem era.— Você não vai me matar de verdade, né? — perguntei, erguendo meu corpo e começando a andar de forma lenta até a caçamba de lixo, sem tirar meus olhos dos dele.Ao ouvir minhas palavras, ele soltou uma risada estrondosa.— Desculpe, gracinha, mas é a única opção — disse, e balançou a cabeça de um lado para o outro, como se lamentasse o fato de ter que fazer aquilo comigo. — Como eu já disse, preciso do dinheiro, e sua cabeça vale muito a essa altura para eu deixá-la partir assim, sem mais nem menos.Sorri de forma torta diante de suas palavras. Não queria continuar ouvindo aquela voz feia e aguda, mas precisava só de mais alguns passos para alcançar meu objetivo final.Quando enfim encostei minhas costas na caçamba, levei uma das minhas mãos da forma mais discreta possível apenas para apalpar um saco de lixo — mesmo sentindo nojo do que poderia ter ali — e ri ao tocar em algo ainda mais interessante, que, com certeza, poderia ser usado por mim. O atirador me olhou como se fosse uma louca por um mero segundo, e eu decidi abrir o jogo, uma vez que ele estava bem perto de terminar.Já era hora de acabar com o meu teatrinho.— Sabia que detesto homens que menosprezam mulheres sem saber direito seu lugar? — falei, e ele apenas ergueu as sobrancelhas, confuso. — Você se enquadra direitinho nesse caso. Um porco que quer voltar a viver uma vida de luxo como bicho de estimação da sociedade, mesmo tendo que matar para isso. Nojento, não é? Se vai acabar com uma vida, que seja por um motivo mais justo.— Olha só quem fala — ele retrucou —, a filha de um homem louco coberto de sangue de inocentes.— Pois é, para você ver minha hipocrisia. Mas eu posso, já você… — Fiz uma pausa, balançando minha cabeça e apertando minha mão direita em volta do objeto que havia encontrado no saco de lixo. — Bem, esse questionamento fica para você pensar em outra vida, se houver uma para você, é claro.— O que…Não deixei que ele terminasse de falar, puxei o objeto de dentro da caçamba — que era um caco afiado de vidro — e lancei em direção aos olhos do meu agressor. Por ter uma pontaria ao qual me orgulhava, nem esperei para ver se o objeto tinha acertado seus olhos. Apenas gemi com a dor que senti com o corte ocasionado pelo vidro em meus dedos e com a ardência que vinha do ferimento em meu braço esquerdo, que voltou a doer com toda a força que usei na mão oposta para executar meu plano.Mas ainda não tinha acabado, pelo contrário, aquilo era só o começo. Por isso, cambaleei até o atirador, e me preparei para dar o fim merecido àquilo tudo. Nesse momento, quando a adrenalina no meu corpo estava no auge, percebi então que ele me xingava enquanto gemia de dor. O fuzil jazia no chão, me indicando ser hora perfeita para chutá-lo para longe ou aproveitar a chance e pegá-lo para mim. Com certeza fiz a segunda opção.— Parece que nossos papéis se inverteram — cantarolei, apontando a arma em sua direção. Ele virou o rosto coberto de sangue para mim, e eu senti uma excitação me envolver por finalmente vê-lo em seu devido lugar.— Sua desgraçada! — gritou, e tentou vir para cima de mim, mas eu apenas desviei, atirando com o fuzil em sua perna esquerda. Uma dor atingiu meu braço ferido, entretanto não deixei de sorrir de satisfação.— Agora estamos quase quites. — Ri, debochada. — Uma perna por um braço. Nada mau, não é?Ele não disse nada, apenas tentou conter um grito de dor quando me aproximei e pisei em sua ferida. Aquilo era uma ótima forma de apagar o fato de ter me submetido a um teatrinho de merda somente para seu bel-prazer e umas migalhas de informações.— Por que não me mata logo, vadia?— Não se preocupe, farei isso agora — disse, com um sorriso diabólico brilhando em meu rosto. — Mas antes quero te perguntar: quem é a gracinha agora?Ele não respondeu, me deixando cansada da brincadeira. Arrumei o fuzil em meus braços, apontei para sua cabeça e murmurei um "te vejo no inferno" da forma mais doce que consegui. No entanto, não tive tempo de atirar. Antes que pudesse finalizar meu inimigo, senti meu braço direito sendo puxado para trás.Com um olhar que queimava a ódio, me virei para a pessoa que me segurava. Me surpreendi ao ver que era Lopes quem havia acabado de chegar ali — meu braço direito e o único com quem pude contar depois que cheguei no Brasil após os seis anos fora.— Que caralhos pensa que está fazendo? — gritei, indignada com sua interrupção.Ele não disse nada, apenas sorriu. Um sorriso torto que me alcançou como um soco no estômago. Eu soube o que ele pretendia sem precisar ouvir sua voz em meio a todas as conversas paralelas dos outros capangas que ele havia trazido consigo. Naquele momento, com tantas pessoas em um lugar só, já era óbvio que toda aquela situação despertaria mais atenção do que qualquer um de nós gostaríamos de aceitar, se já não tivesse.— Temos que sair daqui, Laura. Não adianta querer acabar com ele e sofrermos com um testemunho de qualquer pessoa que nos veja aqui — Lopes disse, me deixando irritada, apesar de saber que ele estava certo.Em um sobressalto, soltei meu braço de seu aperto e novamente arrumei minha postura e o fuzil em minhas mãos. Dessa forma, atirei várias vezes na direção dos pulmões do homem abaixo de mim, ouvindo com prazer o grito estrondoso de dor que saiu de sua garganta. Após esse meu pequeno deleite, me virei e sorri para Lopes; um sorriso frio e ameaçador.— Não se meta nos meus negócios.Lopes ficou em silêncio, e eu apenas joguei a arma de fogo nos braços do capanga que imaginei ser aquele que havia me deixando sozinha no beco apenas para chamar reforços — que não era tão ruim assim — e o ordenei a dar um fim mais rápido ao atirador e cuidar do corpo frio de seu companheiro esquecido no chão. Ele apenas assentiu, me vendo ir pegar meus sapatos bejes que estavam a alguns metros de distância de mim, saindo dali com a minha cabeça erguida e toda a arrogância que aprendi a ter para sobreviver.Não sabia exatamente o que estava acontecendo no morro da Rocinha, o que havia acontecido com meu pai e quem era o responsável pelo dinheiro que estava sendo oferecido pela minha cabeça, no entanto, fosse quem fosse, eu iria fazer uma visitinha íntima assim que me recuperasse por completo.E ele com certeza não iria gostar.ValentimO osso de uma perna quebrado, pulmões perfurados por vários tiros de fuzil e um buraco no meio da testa destacavam-se no corpo estendido — já em estado de decomposição — na minha frente. Se não fosse pelas tatuagens espalhadas por todo seu corpo, jamais imaginaria que aquele ali era o ex-atirador da polícia que trabalhava para mim desde que perdera tudo para seu vício em drogas e sua enorme dívida com a boca de fumo.— Onde vocês o encontraram? — perguntei, desviando meus olhos da cena e prendendo a respiração para não sentir aquele cheiro podre que vinha do cadáver, mas foi em vão; o fedor apenas se intensificou com o ato.— Dentro de uma caçamba de lixo, na parte mais afastada do morro — Marcelo, meu melhor amigo, disse, cobrindo seu nariz com seu braço esquerdo. — Por que não saímos daqui antes de conversarmos? Não aguento mais ter que sentir e ver essa nojeira.Apenas assenti, ordenando os capangas que haviam trazido o corpo até mim para se livrarem dele em um lugar mais
ValentimJá era a terceira vez que ouvia um som de grito agoniado vindo do corredor, formando uma melodia grotesca acompanhada de ossos sendo quebrados e pedidos de misericórdia. Eu sorri, sentado em uma poltrona confortável, de frente para outra cena que se destacava muito mais para mim do que a primeira.A mulher de cabelos castanhos longos, olhos cor de avelãs, arrogantes, vestida com uma blusa lisa azul-marinho e calças jeans clara, tentava a todo custo ignorar o barulho quase ensurdecedor, enquanto batia seus pés calçados com sapatos de salto alto de grife no chão de forma impaciente; me deixando tentado a ordenar que intensificassem a tortura sobre o homem que havia aparecido ali com ela só para vê-la entrar em desespero completo bem diante de mim.Mas eu não fiz isso. Não porque tive pena do homem — isso eu nunca teria —, mas, sim, por imaginar que, se o fizesse, não seria a forma mais fácil de obter as respostas que queria. Não era, se eu continuasse levando em consideração qu
LauraEu não imaginava que o novo dono do morro era um maldito de um filho da puta. Sinceramente, pensei que houvesse um pouco de esperança quando ele apareceu diante de mim e se manteve alheio ao meu showzinho gratuito. Mas, não, era só uma falsa impressão minha. O desgraçado era mais fodido do que todos os homens que eu havia visto durante minha vida inteira, talvez até mais do que meu pai, que já não era um bom exemplo desde o começo.E, para piorar, eu não conseguia entender o que passou pela minha cabeça durante os minutos que estive com ele. Uma hora ela parecia não funcionar direito, presa no calor que aquele homem me causava em partes que nem ouso comentar; já em outras fazia-me sentir tão irritada que apenas desejava acabar com toda aquela farsa e encenação ali mesmo, desconsiderando todos os esforços gastos para chegar até ali.Mas não me deixei levar por isso. Eu precisava ser digna da imagem que tinham de mim, ser a patricinha mimada — mesmo me considerando velha demais pa
LauraSe alguém me dissesse, há um mês atrás, que teria que me submeter a esse tipo de situação — onde deveria fingir ser aquilo que mais odiei — era bem provável que iriam ouvir minha risada em alto e bom som. Talvez acabasse levando um tiro no pé ou, na melhor hipótese, seria chutado em suas partes baixas como punição pela ousadia.Eu jamais poderia pensar que após voltar para o Brasil depois de uma viagem para a Itália, que durara mais de seis anos, encontraria meu lar — por mais conturbado que fosse — de ponta cabeça e nas mãos de um homem que até então era um desconhecido para mim. Sem falar que meu pai estava preso sabe-se lá onde, vivo ou até morto, e sem nenhuma chance de escapar inteiro dali sem minha ajuda.Uma ajuda que não estava tão disposta assim a dar.Pelo menos não antes de ser alvo de um ex-policial que desejava minha cabeça acima de tudo. Antes disso, mesmo com minha família envolvida, aquela situação parecia irreal demais. Portanto, não acreditei até o momento que
ValentimEu me sentia irritado comigo mesmo. Talvez fosse por ter achado aquela vadia muito sedutora e sexy, algo que poderia muito bem atribuir ao fato de estar há muito tempo sem uma foda decente. Em contrapartida, também poderia ser por ter que deixar minha vingança para escanteio por um curto período de tempo. Era bem provável que fosse uma combinação dos dois, e isso deixava meu humor péssimo ao ponto de ninguém — nem mesmo meu melhor amigo — querer ficar ao meu lado no banco traseiro do carro em que eu estava.Soltei um suspiro de frustração, focando minha atenção na paisagem da favela que passava pela janela do carro que Marcelo dirigia. Não tinha muito tempo que nós dois havíamos saído do galpão que usávamos como base, mesmo assim, não demoraria muito mais que vinte minutos para chegarmos até nosso destino final.No percurso, os veículos que passavam por nós eram, em sua maioria, de mototaxistas que levavam consigo pessoas amedrontadas, por motivos
Valentim— Está se divertindo muito, Fábio? — perguntei, cruzando meus braços assim que fiquei diante dele. O homem de meia-idade, alto, moreno e de olhos castanhos escuros, virou-se para mim como quem não quer nada, e isso só aumentou minha irritação, mesmo que tentasse não demonstrar.— O suficiente para uma semana toda, como você vê — falou, docemente. Revirei meus olhos, lembrando que Fábio era um empresário de uma empresa ligada a produção de vinho e que gostava de agir como um maldito de um ricaço mesmo em boates assim.— Não me diga — falei, sarcástico. Ele voltou seu corpo todo para mim, entregando sua bebida para um dos caras que haviam próximo a si.— Você está aqui pela minha ligação, não é?— Não, eu só vim curtir um pouco mesmo tendo muito a resolver — ironizei, revirando meus olhos. Ele balançou sua cabeça de um lado para o outro, logo seguindo com sua fala como se a minha nunca tivesse sido dita:— O que eu tenho q
LauraO som que meus sapatos de salto alto fizeram no piso de porcelanato da casa de Valentim assim que entrei, não foi a coisa que mais atraiu minha atenção quando pude visualizar com calma o local que seria minha morada nos próximos meses.Diante de uma sala ampla, com teto rebaixado e luzes indiretas, não consegui esconder minha surpresa e euforia. Todo aquele luxo, que ia de uma cozinha com eletrodomésticos de primeira linha em aço escovado, mesas de vidro e passa pratos giratórios, era a última coisa que eu imaginava ver em uma casa na Rocinha, embora a fachada já fosse, por si só, chamativa o suficiente comparada a qualquer outra construção que havia ao seu redor.Pela localização, aquele lugar estava bem longe de ser simples ou modesto. Nos poucos minutos que fiquei zanzando de cômodo em cômodo, vi que havia não só amplos quartos, banheiros com hidromassagem, aparelhos de ar-condicionado e TVs de LCD em quase todos os cômodos, como também uma piscin
Laura— Eu sei quem é você — a irmã de Valentim afirmou, agora indo até ele. — Henrique, não é?Ao ouvir seu primeiro nome, o rosto do meu amigo se contorceu em uma careta de desaprovação. Lopes não gostava de ser chamado pelo seu primeiro nome, que lhe foi dado por sua mãe um ano antes de lhe deixar nas mãos de seu pai — ainda bebê —, um homem que morrera injustamente pela bala de um PM quando meu amigo tinha míseros quatorze anos.— Me chame de Lopes, por favor — pediu, educado. Mas ela simplesmente ignorou.— Henrique Lopes… Eu sabia! — disse, vitoriosamente. Voltou-se em minha direção, como quem quer confirmar algo. — Então, você é mesmo a filha do Antônio e ele é o cachorrinho fiel dele — constatou, batendo uma mão na outra. Apesar do movimento e da alegria demonstrada em sua voz, ela não se esforçou em aparentar estar feliz diante de nós.— Eu te peço de novo, não me chame pelo meu primeiro nome — Lopes pediu novamente, ignorando a