Valentim
O osso de uma perna quebrado, pulmões perfurados por vários tiros de fuzil e um buraco no meio da testa destacavam-se no corpo estendido — já em estado de decomposição — na minha frente. Se não fosse pelas tatuagens espalhadas por todo seu corpo, jamais imaginaria que aquele ali era o ex-atirador da polícia que trabalhava para mim desde que perdera tudo para seu vício em drogas e sua enorme dívida com a boca de fumo.— Onde vocês o encontraram? — perguntei, desviando meus olhos da cena e prendendo a respiração para não sentir aquele cheiro podre que vinha do cadáver, mas foi em vão; o fedor apenas se intensificou com o ato.— Dentro de uma caçamba de lixo, na parte mais afastada do morro — Marcelo, meu melhor amigo, disse, cobrindo seu nariz com seu braço esquerdo. — Por que não saímos daqui antes de conversarmos? Não aguento mais ter que sentir e ver essa nojeira.Apenas assenti, ordenando os capangas que haviam trazido o corpo até mim para se livrarem dele em um lugar mais discreto em seguida.— Já tem ideia de quem o matou? — perguntei, já do lado de fora da sala que quase servia como um "necrotério" no galpão que servia como sede da minha facção.— Não — falou, seco. — Para ser sincero, você fez tantos inimigos desde que se tornou o novo dono do morro da Rocinha que é impossível pensar em uma única pessoa por trás deste incidente.— Eu sei disso — murmurei, descontente com sua observação.Fiquei em silêncio por alguns segundos, tentando pensar nas pessoas mais prováveis; tinha o pessoal que eu não havia conseguido matar ou prender do Antônio — o ex-dono —, junto da filha dele também, uma patricinha que nunca teve dificuldade na vida e só usufruiu dos bens adquiridos com a desgraça de muitas pessoas, não que eu pudesse julgar alguma coisa — minhas mãos já estavam sujas demais para condenar os feitos ruins dos outros.Além deles, havia algumas outras facções que me queriam morto depois de toda a algazarra que fiz desde o momento que tomei tudo que pertencia ao desgraçado do Antônio, seja por serem antigos aliados dele ou por apenas desejarem a fortuna que envolvia o tráfico presente na Rocinha.Mas, antes disso tudo, eu tinha que levar em consideração a pessoa encontrada morta. Um filho de uma puta que era um maldito de ótimo atirador, ex-policial e um homem muito endividado não só comigo, como também com várias pessoas que marcaram seu tempo como PM.Ele tinha um alvo nas costas, e era questão de tempo até que uma bala o acertasse. E esse era o maior problema nessa questão toda; quem teria coragem de invadir meu morro e matar uns dos meus melhores capachos? Eu ainda não tinha uma resposta para isso, e deixar essa história para depois não parecia ser uma opção.— Talvez devêssemos procurar testemunhas ou pessoas próximas a ele antes de qualquer coisa — Marcelo sugeriu, me tirando dos meus pensamentos.— Não é uma má ideia — sussurrei, pensativo. — Talvez encontraremos um amigo próximo que saiba dos últimos planos dele antes de sua morte e o que ele pretendia fazer zanzando por aí em vez de fazer seu trabalho direito.Marcelo assentiu, ficando em silêncio por um tempo. Nós dois então começamos a andar até a sala de reuniões onde eu passava a maior parte do meu tempo quando estava ali no galpão. Lá uma confusão roubou minha atenção de uma forma que não pude deixar de me interessar. Era uma cena tão rara que poderia até me fazer esquecer de tudo que pensava e havia visto nas últimas duas horas.— Eu já disse; tragam meu pai para mim agora mesmo! — uma bela mulher, ao lado de um homem negro robusto, gritava para um dos meus homens enquanto mantinha um de seus dedos em riste.— Eu já lhe disse: seu pai não é mais o mandachuva daqui, então não adianta pedir para vê-lo.— Não ouse mentir para mim. Ele é o dono, então como não pode ser mais o maioral nesse lugar? Por favor, não me faça rir!O guarda apenas suspirou, me fazendo crer que aquela conversa já durava há um bom tempo. Fiquei curioso para saber quem era aquela mulher, mas após suas últimas palavras a resposta pareceu ser fácil demais de decifrar.E eu não conseguia acreditar nisso.— O que está acontecendo aqui? — Marcelo perguntou, parando entre a mulher e o guarda. Ela o olhou com um olhar ameaçador, e eu pensei por um segundo que, talvez, meu amigo pudesse tê-la em seu pescoço, esganando-o, em poucos segundos.— Esta merda de guarda que não me deixa ver meu pai, alegando que ele não é mais o dono dessa espelunca! — ela gritou, com os olhos em chamas.— E ele não é mais — o guarda retrucou, cruzando seus braços em discordância.— Ora, seu…— Já chega — falei, me posicionando ao lado de Marcelo. — Você… Me responda, quem é seu pai? — perguntei apenas para confirmar o óbvio. Ela apenas olhou para mim por alguns segundos, quase como se cogitasse se deveria ou não responder minha pergunta. Isso me irritou muito, me fazendo querer pegá-la pelo braço e mostrar que não podia me olhar daquele jeito tão arrogante e sair impune.— Antônio de Almeida, o dono de toda esta porra aqui — ela respondeu por fim, fazendo uma risada estrondosa sair de minha garganta.Jamais imaginaria que a filha do homem que eu mais odiei iria aparecer diante de mim por livre e espontânea vontade, mesmo com uma grande recompensa por sua cabeça correndo por aí. E a melhor parte nem era essa; tudo indicava que ela não sabia o que estava acontecendo — que seu pai havia sido destronado e que agora era meu refém — e, acima de tudo, que a enrascada que ela havia acabado de se meter era muito maior do que parecia.Ah, eu não poderia pedir presente melhor como recompensa por todos os anos que trabalhei para o velhote sem ganhar nada em troca. Tê-la ali era a oportunidade perfeita para acabar de uma vez com minha vingança contra Antônio e conseguir o apoio dos inimigos que também desejavam sua queda por completo.Era fácil, bastava dar uma ordem ou apenas eu mesmo apontar uma arma para ela e atirar, no entanto, não pareceu ser a melhor coisa para mim. Eu queria vê-la sofrer, queria ver seu pai sofrer, e ainda tinha coisas que precisava ouvir, segredos que precisava descobrir e mistérios que pareciam impossíveis de decifrar sem a ajuda de alguém da família Almeida. Além disso, que graça teria apenas matá-la aqui? Não parecia ter nenhuma para mim.— O que você está achando engraçado? — ela perguntou, me olhando de cara feia.Por um momento, imaginei quais outras expressões poderia obter de seu rosto durante um hipotético tempo que permanecesse aqui comigo. Eram tantas e tantas que me obrigaram a tomar uma decisão jamais pensada por mim antes. Uma escolha que iria decidir o rumo da minha vida dali em diante, de um jeito que não teria mais volta — e eu poderia facilmente morrer por isso.— Garota, você acaba de sentenciar a pior coisa que poderia acontecer contigo. Tem noção disso? — perguntei, sorrindo malicioso e tentando pensar num jeito de pôr meu plano em prática. — A partir de agora, se quiser ver seu pai, terá que se submeter a mim ou sumir daqui. Eu sou o novo dono, mesmo que "provisório", e minha palavra é lei. Não quero te dar o que deseja, e você não o terá.Ao ouvir minhas palavras, Marcelo olhou para mim estupefato. Tanto em seus olhos quanto nos do guarda pude ver confusão predominando em meios aos outros sentimentos que os envolviam naquele momento. Não me importei com isso, afinal, depois poderia explicar a eles tudo nos maiores detalhes e com calma, se conseguisse concluir meu objetivo.— Você só pode estar delirando — ela murmurou, fazendo uma careta desgostosa. Depois disso, balançou sua cabeça de um lado para o outro, como quem tenta reorganizar seus pensamentos após ouvir uma ótima piada.— Não acredita? Que tal, então, deixar que meu capanga leve esse homem que você trouxe como enfeite para uma salinha que dedico carinhosamente aos meus mais azarados convidados como prova de que quem manda aqui sou eu? Tenho certeza que mudará de ideia após isso.O homem, que permanecia observando tudo em silêncio, voltou seus olhos negros para mim, apático a minha fala e quase que me desafiando a cumprir com minhas palavras. Apesar disso, não me intimidei. Ordenei em alto e bom som para que o guarda chamasse outros capangas armados e indiquei o grandão parado ao lado da mulher. Este não resistiu, pois parecia também não entender direito o que eu pretendia com aquilo tudo.Azar o dele.— O que pensa que fará com o Lopes? — ela perguntou, mostrando pela primeira vez uma emoção que não fosse desprezo desde o momento que me notou ali. Desejei, então, ver várias outras reações serem esboçadas em seu rosto delicado.— Você verá e não vai gostar, pode ter certeza disso — avisei, deixando um sorriso sombrio tomar meu rosto. — Agora me acompanhe, se não quiser que as coisas acabem piores para seu guardinha de chumbo.Ela não disse nada, muito menos fez questão de me acompanhar. No entanto, Marcelo inclinou seu corpo em direção ao dela e sussurrou algo que eu não pude entender. Em um piscar de olhos, a patricinha já estava me seguindo, acompanhada de meu amigo e de alguns dos meus capangas que haviam ficado ali para vigiar qualquer um de seus movimentos e obedecer qualquer ordem que eu viesse a dar da forma mais eficiente possível.ValentimJá era a terceira vez que ouvia um som de grito agoniado vindo do corredor, formando uma melodia grotesca acompanhada de ossos sendo quebrados e pedidos de misericórdia. Eu sorri, sentado em uma poltrona confortável, de frente para outra cena que se destacava muito mais para mim do que a primeira.A mulher de cabelos castanhos longos, olhos cor de avelãs, arrogantes, vestida com uma blusa lisa azul-marinho e calças jeans clara, tentava a todo custo ignorar o barulho quase ensurdecedor, enquanto batia seus pés calçados com sapatos de salto alto de grife no chão de forma impaciente; me deixando tentado a ordenar que intensificassem a tortura sobre o homem que havia aparecido ali com ela só para vê-la entrar em desespero completo bem diante de mim.Mas eu não fiz isso. Não porque tive pena do homem — isso eu nunca teria —, mas, sim, por imaginar que, se o fizesse, não seria a forma mais fácil de obter as respostas que queria. Não era, se eu continuasse levando em consideração qu
LauraEu não imaginava que o novo dono do morro era um maldito de um filho da puta. Sinceramente, pensei que houvesse um pouco de esperança quando ele apareceu diante de mim e se manteve alheio ao meu showzinho gratuito. Mas, não, era só uma falsa impressão minha. O desgraçado era mais fodido do que todos os homens que eu havia visto durante minha vida inteira, talvez até mais do que meu pai, que já não era um bom exemplo desde o começo.E, para piorar, eu não conseguia entender o que passou pela minha cabeça durante os minutos que estive com ele. Uma hora ela parecia não funcionar direito, presa no calor que aquele homem me causava em partes que nem ouso comentar; já em outras fazia-me sentir tão irritada que apenas desejava acabar com toda aquela farsa e encenação ali mesmo, desconsiderando todos os esforços gastos para chegar até ali.Mas não me deixei levar por isso. Eu precisava ser digna da imagem que tinham de mim, ser a patricinha mimada — mesmo me considerando velha demais pa
LauraSe alguém me dissesse, há um mês atrás, que teria que me submeter a esse tipo de situação — onde deveria fingir ser aquilo que mais odiei — era bem provável que iriam ouvir minha risada em alto e bom som. Talvez acabasse levando um tiro no pé ou, na melhor hipótese, seria chutado em suas partes baixas como punição pela ousadia.Eu jamais poderia pensar que após voltar para o Brasil depois de uma viagem para a Itália, que durara mais de seis anos, encontraria meu lar — por mais conturbado que fosse — de ponta cabeça e nas mãos de um homem que até então era um desconhecido para mim. Sem falar que meu pai estava preso sabe-se lá onde, vivo ou até morto, e sem nenhuma chance de escapar inteiro dali sem minha ajuda.Uma ajuda que não estava tão disposta assim a dar.Pelo menos não antes de ser alvo de um ex-policial que desejava minha cabeça acima de tudo. Antes disso, mesmo com minha família envolvida, aquela situação parecia irreal demais. Portanto, não acreditei até o momento que
ValentimEu me sentia irritado comigo mesmo. Talvez fosse por ter achado aquela vadia muito sedutora e sexy, algo que poderia muito bem atribuir ao fato de estar há muito tempo sem uma foda decente. Em contrapartida, também poderia ser por ter que deixar minha vingança para escanteio por um curto período de tempo. Era bem provável que fosse uma combinação dos dois, e isso deixava meu humor péssimo ao ponto de ninguém — nem mesmo meu melhor amigo — querer ficar ao meu lado no banco traseiro do carro em que eu estava.Soltei um suspiro de frustração, focando minha atenção na paisagem da favela que passava pela janela do carro que Marcelo dirigia. Não tinha muito tempo que nós dois havíamos saído do galpão que usávamos como base, mesmo assim, não demoraria muito mais que vinte minutos para chegarmos até nosso destino final.No percurso, os veículos que passavam por nós eram, em sua maioria, de mototaxistas que levavam consigo pessoas amedrontadas, por motivos
Valentim— Está se divertindo muito, Fábio? — perguntei, cruzando meus braços assim que fiquei diante dele. O homem de meia-idade, alto, moreno e de olhos castanhos escuros, virou-se para mim como quem não quer nada, e isso só aumentou minha irritação, mesmo que tentasse não demonstrar.— O suficiente para uma semana toda, como você vê — falou, docemente. Revirei meus olhos, lembrando que Fábio era um empresário de uma empresa ligada a produção de vinho e que gostava de agir como um maldito de um ricaço mesmo em boates assim.— Não me diga — falei, sarcástico. Ele voltou seu corpo todo para mim, entregando sua bebida para um dos caras que haviam próximo a si.— Você está aqui pela minha ligação, não é?— Não, eu só vim curtir um pouco mesmo tendo muito a resolver — ironizei, revirando meus olhos. Ele balançou sua cabeça de um lado para o outro, logo seguindo com sua fala como se a minha nunca tivesse sido dita:— O que eu tenho q
LauraO som que meus sapatos de salto alto fizeram no piso de porcelanato da casa de Valentim assim que entrei, não foi a coisa que mais atraiu minha atenção quando pude visualizar com calma o local que seria minha morada nos próximos meses.Diante de uma sala ampla, com teto rebaixado e luzes indiretas, não consegui esconder minha surpresa e euforia. Todo aquele luxo, que ia de uma cozinha com eletrodomésticos de primeira linha em aço escovado, mesas de vidro e passa pratos giratórios, era a última coisa que eu imaginava ver em uma casa na Rocinha, embora a fachada já fosse, por si só, chamativa o suficiente comparada a qualquer outra construção que havia ao seu redor.Pela localização, aquele lugar estava bem longe de ser simples ou modesto. Nos poucos minutos que fiquei zanzando de cômodo em cômodo, vi que havia não só amplos quartos, banheiros com hidromassagem, aparelhos de ar-condicionado e TVs de LCD em quase todos os cômodos, como também uma piscin
Laura— Eu sei quem é você — a irmã de Valentim afirmou, agora indo até ele. — Henrique, não é?Ao ouvir seu primeiro nome, o rosto do meu amigo se contorceu em uma careta de desaprovação. Lopes não gostava de ser chamado pelo seu primeiro nome, que lhe foi dado por sua mãe um ano antes de lhe deixar nas mãos de seu pai — ainda bebê —, um homem que morrera injustamente pela bala de um PM quando meu amigo tinha míseros quatorze anos.— Me chame de Lopes, por favor — pediu, educado. Mas ela simplesmente ignorou.— Henrique Lopes… Eu sabia! — disse, vitoriosamente. Voltou-se em minha direção, como quem quer confirmar algo. — Então, você é mesmo a filha do Antônio e ele é o cachorrinho fiel dele — constatou, batendo uma mão na outra. Apesar do movimento e da alegria demonstrada em sua voz, ela não se esforçou em aparentar estar feliz diante de nós.— Eu te peço de novo, não me chame pelo meu primeiro nome — Lopes pediu novamente, ignorando a
ValentimO relógio marcava duas horas da manhã quando finalmente pisei no chão marmorizado da minha casa. Estava exausto, boa parte sendo pela energia gasta com discussões e acordos que firmei — ou pelo menos tentei firmar — com as pessoas mais importantes presentes naquela boate; um lugar muito badalado, que funcionava quase vinte e quatro horas por dia.Não podia afirmar que eu estava no meu juízo completo, afinal, a bebida que eu havia ingerido na presença de Fábio ainda parecia vívida demais na minha boca, me fazendo questionar o motivo de tê-la bebido apenas uma vez.Não era como se houvesse alguém para me impedir de ficar bêbedo, embora eu soubesse, bem lá no fundo, que se arriscasse perder minha capacidade de impor respeito a qualquer um que me visse, os boatos que se formariam sobre mim acabariam sendo algo terrível demais para eu simplesmente ignorar, o que poderia resultar em mais pessoas mortas ou feridas do que eu estava realmente disposto a pr