Capítulo 3

Valentim

O osso de uma perna quebrado, pulmões perfurados por vários tiros de fuzil e um buraco no meio da testa destacavam-se no corpo estendido — já em estado de decomposição — na minha frente. Se não fosse pelas tatuagens espalhadas por todo seu corpo, jamais imaginaria que aquele ali era o ex-atirador da polícia que trabalhava para mim desde que perdera tudo para seu vício em drogas e sua enorme dívida com a boca de fumo.

— Onde vocês o encontraram? — perguntei, desviando meus olhos da cena e prendendo a respiração para não sentir aquele cheiro podre que vinha do cadáver, mas foi em vão; o fedor apenas se intensificou com o ato.

— Dentro de uma caçamba de lixo, na parte mais afastada do morro — Marcelo, meu melhor amigo, disse, cobrindo seu nariz com seu braço esquerdo. — Por que não saímos daqui antes de conversarmos? Não aguento mais ter que sentir e ver essa nojeira.

Apenas assenti, ordenando os capangas que haviam trazido o corpo até mim para se livrarem dele em um lugar mais discreto em seguida.

— Já tem ideia de quem o matou? — perguntei, já do lado de fora da sala que quase servia como um "necrotério" no galpão que servia como sede da minha facção.

— Não — falou, seco. — Para ser sincero, você fez tantos inimigos desde que se tornou o novo dono do morro da Rocinha que é impossível pensar em uma única pessoa por trás deste incidente.

— Eu sei disso — murmurei, descontente com sua observação.

Fiquei em silêncio por alguns segundos, tentando pensar nas pessoas mais prováveis; tinha o pessoal que eu não havia conseguido matar ou prender do Antônio — o ex-dono —, junto da filha dele também, uma patricinha que nunca teve dificuldade na vida e só usufruiu dos bens adquiridos com a desgraça de muitas pessoas, não que eu pudesse julgar alguma coisa — minhas mãos já estavam sujas demais para condenar os feitos ruins dos outros.

Além deles, havia algumas outras facções que me queriam morto depois de toda a algazarra que fiz desde o momento que tomei tudo que pertencia ao desgraçado do Antônio, seja por serem antigos aliados dele ou por apenas desejarem a fortuna que envolvia o tráfico presente na Rocinha.

Mas, antes disso tudo, eu tinha que levar em consideração a pessoa encontrada morta. Um filho de uma puta que era um maldito de ótimo atirador, ex-policial e um homem muito endividado não só comigo, como também com várias pessoas que marcaram seu tempo como PM.

Ele tinha um alvo nas costas, e era questão de tempo até que uma bala o acertasse. E esse era o maior problema nessa questão toda; quem teria coragem de invadir meu morro e matar uns dos meus melhores capachos? Eu ainda não tinha uma resposta para isso, e deixar essa história para depois não parecia ser uma opção.

— Talvez devêssemos procurar testemunhas ou pessoas próximas a ele antes de qualquer coisa — Marcelo sugeriu, me tirando dos meus pensamentos.

— Não é uma má ideia — sussurrei, pensativo. — Talvez encontraremos um amigo próximo que saiba dos últimos planos dele antes de sua morte e o que ele pretendia fazer zanzando por aí em vez de fazer seu trabalho direito.

Marcelo assentiu, ficando em silêncio por um tempo. Nós dois então começamos a andar até a sala de reuniões onde eu passava a maior parte do meu tempo quando estava ali no galpão. Lá uma confusão roubou minha atenção de uma forma que não pude deixar de me interessar. Era uma cena tão rara que poderia até me fazer esquecer de tudo que pensava e havia visto nas últimas duas horas.

— Eu já disse; tragam meu pai para mim agora mesmo! — uma bela mulher, ao lado de um homem negro robusto, gritava para um dos meus homens enquanto mantinha um de seus dedos em riste.

— Eu já lhe disse: seu pai não é mais o mandachuva daqui, então não adianta pedir para vê-lo.

— Não ouse mentir para mim. Ele é o dono, então como não pode ser mais o maioral nesse lugar? Por favor, não me faça rir!

O guarda apenas suspirou, me fazendo crer que aquela conversa já durava há um bom tempo. Fiquei curioso para saber quem era aquela mulher, mas após suas últimas palavras a resposta pareceu ser fácil demais de decifrar.

E eu não conseguia acreditar nisso.

— O que está acontecendo aqui? — Marcelo perguntou, parando entre a mulher e o guarda. Ela o olhou com um olhar ameaçador, e eu pensei por um segundo que, talvez, meu amigo pudesse tê-la em seu pescoço, esganando-o, em poucos segundos.

— Esta merda de guarda que não me deixa ver meu pai, alegando que ele não é mais o dono dessa espelunca! — ela gritou, com os olhos em chamas.

— E ele não é mais — o guarda retrucou, cruzando seus braços em discordância.

— Ora, seu…

— Já chega — falei, me posicionando ao lado de Marcelo. — Você… Me responda, quem é seu pai? — perguntei apenas para confirmar o óbvio. 

Ela apenas olhou para mim por alguns segundos, quase como se cogitasse se deveria ou não responder minha pergunta. Isso me irritou muito, me fazendo querer pegá-la pelo braço e mostrar que não podia me olhar daquele jeito tão arrogante e sair impune.

— Antônio de Almeida, o dono de toda esta porra aqui — ela respondeu por fim, fazendo uma risada estrondosa sair de minha garganta.

Jamais imaginaria que a filha do homem que eu mais odiei iria aparecer diante de mim por livre e espontânea vontade, mesmo com uma grande recompensa por sua cabeça correndo por aí. E a melhor parte nem era essa; tudo indicava que ela não sabia o que estava acontecendo — que seu pai havia sido destronado e que agora era meu refém — e, acima de tudo, que a enrascada que ela havia acabado de se meter era muito maior do que parecia.

Ah, eu não poderia pedir presente melhor como recompensa por todos os anos que trabalhei para o velhote sem ganhar nada em troca. Tê-la ali era a oportunidade perfeita para acabar de uma vez com minha vingança contra Antônio e conseguir o apoio dos inimigos que também desejavam sua queda por completo.

Era fácil, bastava dar uma ordem ou apenas eu mesmo apontar uma arma para ela e atirar, no entanto, não pareceu ser a melhor coisa para mim. Eu queria vê-la sofrer, queria ver seu pai sofrer, e ainda tinha coisas que precisava ouvir, segredos que precisava descobrir e mistérios que pareciam impossíveis de decifrar sem a ajuda de alguém da família Almeida. Além disso, que graça teria apenas matá-la aqui? Não parecia ter nenhuma para mim.

— O que você está achando engraçado? — ela perguntou, me olhando de cara feia.

Por um momento, imaginei quais outras expressões poderia obter de seu rosto durante um hipotético tempo que permanecesse aqui comigo. Eram tantas e tantas que me obrigaram a tomar uma decisão jamais pensada por mim antes. Uma escolha que iria decidir o rumo da minha vida dali em diante, de um jeito que não teria mais volta — e eu poderia facilmente morrer por isso.

— Garota, você acaba de sentenciar a pior coisa que poderia acontecer contigo. Tem noção disso? — perguntei, sorrindo malicioso e tentando pensar num jeito de pôr meu plano em prática. — A partir de agora, se quiser ver seu pai, terá que se submeter a mim ou sumir daqui. Eu sou o novo dono, mesmo que "provisório", e minha palavra é lei. Não quero te dar o que deseja, e você não o terá.

Ao ouvir minhas palavras, Marcelo olhou para mim estupefato. Tanto em seus olhos quanto nos do guarda pude ver confusão predominando em meios aos outros sentimentos que os envolviam naquele momento. Não me importei com isso, afinal, depois poderia explicar a eles tudo nos maiores detalhes e com calma, se conseguisse concluir meu objetivo.

— Você só pode estar delirando — ela murmurou, fazendo uma careta desgostosa. Depois disso, balançou sua cabeça de um lado para o outro, como quem tenta reorganizar seus pensamentos após ouvir uma ótima piada.

— Não acredita? Que tal, então, deixar que meu capanga leve esse homem que você trouxe como enfeite para uma salinha que dedico carinhosamente aos meus mais azarados convidados como prova de que quem manda aqui sou eu? Tenho certeza que mudará de ideia após isso.

O homem, que permanecia observando tudo em silêncio, voltou seus olhos negros para mim, apático a minha fala e quase que me desafiando a cumprir com minhas palavras. Apesar disso, não me intimidei. Ordenei em alto e bom som para que o guarda chamasse outros capangas armados e indiquei o grandão parado ao lado da mulher. Este não resistiu, pois parecia também não entender direito o que eu pretendia com aquilo tudo.

Azar o dele.

— O que pensa que fará com o Lopes? — ela perguntou, mostrando pela primeira vez uma emoção que não fosse desprezo desde o momento que me notou ali. Desejei, então, ver várias outras reações serem esboçadas em seu rosto delicado.

— Você verá e não vai gostar, pode ter certeza disso — avisei, deixando um sorriso sombrio tomar meu rosto. — Agora me acompanhe, se não quiser que as coisas acabem piores para seu guardinha de chumbo.

Ela não disse nada, muito menos fez questão de me acompanhar. No entanto, Marcelo inclinou seu corpo em direção ao dela e sussurrou algo que eu não pude entender. Em um piscar de olhos, a patricinha já estava me seguindo, acompanhada de meu amigo e de alguns dos meus capangas que haviam ficado ali para vigiar qualquer um de seus movimentos e obedecer qualquer ordem que eu viesse a dar da forma mais eficiente possível.

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