Valentim
Já era a terceira vez que ouvia um som de grito agoniado vindo do corredor, formando uma melodia grotesca acompanhada de ossos sendo quebrados e pedidos de misericórdia. Eu sorri, sentado em uma poltrona confortável, de frente para outra cena que se destacava muito mais para mim do que a primeira.A mulher de cabelos castanhos longos, olhos cor de avelãs, arrogantes, vestida com uma blusa lisa azul-marinho e calças jeans clara, tentava a todo custo ignorar o barulho quase ensurdecedor, enquanto batia seus pés calçados com sapatos de salto alto de grife no chão de forma impaciente; me deixando tentado a ordenar que intensificassem a tortura sobre o homem que havia aparecido ali com ela só para vê-la entrar em desespero completo bem diante de mim.Mas eu não fiz isso. Não porque tive pena do homem — isso eu nunca teria —, mas, sim, por imaginar que, se o fizesse, não seria a forma mais fácil de obter as respostas que queria. Não era, se eu continuasse levando em consideração que vê-la a minha mercê soava muito mais tentador do que qualquer outra coisa. E era essa tentação que prometia me pôr em risco.Então, apenas por isso, fiz sinal para um dos meus capangas pararem a tortura, mesmo que fosse apenas por enquanto.— Já está convencida? — perguntei, levando uma de minhas mãos até meu rosto e acariciando minha barba rasa e por fazer de uma forma bem provocante. Ela sorriu sem mostrar os dentes e esfregou uma de suas mãos em seu braço oposto, desviando o olhar esverdeado dos meus.— De quê você é louco? — replicou, parecendo forçar-se a virar o rosto em minha direção para me encarar. Vê-la daquela forma, tão afetada em comparação a como a vi a poucos minutos atrás, me deixava excitado. Algo que poucos acontecimentos tinham o poder de fazer.— Não — respondi, ignorando a ofensa. — Espero que tenha entendido que eu não estou para brincadeira aqui.— Eu não vou mudar o que disse, se é isso que você está esperando que eu faça — ela disse, voltando a sua postura arrogante e mimada. — Eu não aceito um não como resposta, e este é o lugar onde morei minha vida toda. Por que tenho que sair daqui ou me submeter a você para continuar tendo o que já é meu? É sem lógica.— Parece que ainda não entendeu a situação — constatei, balançando minha cabeça de um lado para o outro, fingindo frustração. Me ergui da poltrona em que estava e caminhei até ficar bem perto dela, curvando meu corpo de forma lenta para alcançar seu ouvido direito. — Você não tem escolha.Senti seu corpo estremecer diante do meu, e, ao me afastar, suas pupilas estavam dilatadas, seus olhos arregalados e sua expressão perdida, como se seu cérebro ainda estivesse tentando processar o que saíra da minha boca e como isso lhe afetava.— Eu…— Você só tem uma opção — a interrompi, sorrindo malicioso. — Ou você fica aqui no morro e me entretenha o suficiente para valer sua estadia ou aceite que não verá seu pai tão cedo e terá que sair daqui para sempre, se não quiser permanecer com nenhum dos luxos que lhe restaram, é claro.— Por que essa parece uma ameaça tão vazia? — murmurou baixinho, me fazendo bufar.Senti um calor invadir meu corpo nesse momento e quase pensei que seria melhor acabar com aquele joguinho que estava fazendo com ela ali mesmo, mas não o fiz. Eu queria ver a patricinha vivendo no morro, indo a baile funk e tendo que comer o mesmo que todos os que ela chamava de favelados comiam.Queria tê-la na mesma casa que eu, provocá-la e descobrir seus podres. Desbravar todos os segredos que ela escondia por baixo de sua postura arrogante, e parte disso até chegava a me assustar. Tais desejos eram novos para mim, embora eu tivesse a oportunidade de colocá-los como um "teste" de diversão para evitar qualquer pensamento indevido. Como o ditado popular, eu tinha a faca e o queijo na mão, e estava disposto a aproveitar ambos da melhor forma possível.Sorri, lembrando que, além disso, mantê-la viva não teria que ser para sempre. Dessa forma, eu poderia até suportar aquela arrogância por um bom entretenimento, mas ela tinha que colaborar primeiro. Se não, o resultado não seria muito bom para ela e seu pai, que estava em minha posse, prestes a morrer a qualquer momento; um mero detalhe que eu manteria escondido dela para evitar que minha diversão fosse frustrada mais cedo do que eu pretendia.— Ok. Se acha que o que estava acontecendo no final do corredor era mentira e que eu não posso expulsar você daqui a pontapés se esse for meu desejo, dê meia volta e suma daqui. Só não me responsabilizo se uma hipotética bala perdida te acertar bem no meio da tua testa quando pisar fora desse lugar — ameacei, do jeito mais sutil que consegui. A vi engolir em seco e isso fez meu dia ficar dez vezes mais divertido.— Eu… posso pensar antes? — pediu, deixando visível, talvez até sem querer, uma fagulha de medo em meio a sua voz aveludada.Apenas assenti, fazendo um sinal com minhas mãos para que ela sumisse da minha frente enquanto isso. Assim que ela saiu, possivelmente indo até à sala de tortura onde o "amigo" dela estava, soltei um suspiro pesado e olhei para Marcelo, que me encarava perplexo.— Por que está fazendo isso? — ele perguntou, antes mesmo que eu pudesse abrir minha boca para saber o porquê da sua cara de cu.— Por diversão, é claro. Por que mais faria?— Isso não é certo, Valentim. Ela é só uma garota na flor da juventude. Tem no máximo vinte anos. Se pretende matar ela para o bem da sua vingança, o faça logo. Não brinque com alguém de uma maneira tão descarada assim.— Você é muito politicamente correto para um traficante, Marc — resmunguei, não dando ouvidos para seu sermão. — Para o bem da nossa amizade, não se meta nos meus assuntos. Eu quero brincar com aquela vadia, e eu farei isso. Quero destruir seu mundo de dentro para fora, enquanto planto uma sementinha da discórdia. — Fiz uma pausa, imaginando tudo que aconteceria se ela ficasse aqui no morro, tudo que eu faria para acabar com seu psicológico. — Realmente não posso esperar por isso.— Você é um maldito de um fudido — ele murmurou, curvando os ombros em desistência enquanto suspirava.Apenas sorri. Ele não imaginava o quanto.LauraEu não imaginava que o novo dono do morro era um maldito de um filho da puta. Sinceramente, pensei que houvesse um pouco de esperança quando ele apareceu diante de mim e se manteve alheio ao meu showzinho gratuito. Mas, não, era só uma falsa impressão minha. O desgraçado era mais fodido do que todos os homens que eu havia visto durante minha vida inteira, talvez até mais do que meu pai, que já não era um bom exemplo desde o começo.E, para piorar, eu não conseguia entender o que passou pela minha cabeça durante os minutos que estive com ele. Uma hora ela parecia não funcionar direito, presa no calor que aquele homem me causava em partes que nem ouso comentar; já em outras fazia-me sentir tão irritada que apenas desejava acabar com toda aquela farsa e encenação ali mesmo, desconsiderando todos os esforços gastos para chegar até ali.Mas não me deixei levar por isso. Eu precisava ser digna da imagem que tinham de mim, ser a patricinha mimada — mesmo me considerando velha demais pa
LauraSe alguém me dissesse, há um mês atrás, que teria que me submeter a esse tipo de situação — onde deveria fingir ser aquilo que mais odiei — era bem provável que iriam ouvir minha risada em alto e bom som. Talvez acabasse levando um tiro no pé ou, na melhor hipótese, seria chutado em suas partes baixas como punição pela ousadia.Eu jamais poderia pensar que após voltar para o Brasil depois de uma viagem para a Itália, que durara mais de seis anos, encontraria meu lar — por mais conturbado que fosse — de ponta cabeça e nas mãos de um homem que até então era um desconhecido para mim. Sem falar que meu pai estava preso sabe-se lá onde, vivo ou até morto, e sem nenhuma chance de escapar inteiro dali sem minha ajuda.Uma ajuda que não estava tão disposta assim a dar.Pelo menos não antes de ser alvo de um ex-policial que desejava minha cabeça acima de tudo. Antes disso, mesmo com minha família envolvida, aquela situação parecia irreal demais. Portanto, não acreditei até o momento que
ValentimEu me sentia irritado comigo mesmo. Talvez fosse por ter achado aquela vadia muito sedutora e sexy, algo que poderia muito bem atribuir ao fato de estar há muito tempo sem uma foda decente. Em contrapartida, também poderia ser por ter que deixar minha vingança para escanteio por um curto período de tempo. Era bem provável que fosse uma combinação dos dois, e isso deixava meu humor péssimo ao ponto de ninguém — nem mesmo meu melhor amigo — querer ficar ao meu lado no banco traseiro do carro em que eu estava.Soltei um suspiro de frustração, focando minha atenção na paisagem da favela que passava pela janela do carro que Marcelo dirigia. Não tinha muito tempo que nós dois havíamos saído do galpão que usávamos como base, mesmo assim, não demoraria muito mais que vinte minutos para chegarmos até nosso destino final.No percurso, os veículos que passavam por nós eram, em sua maioria, de mototaxistas que levavam consigo pessoas amedrontadas, por motivos
Valentim— Está se divertindo muito, Fábio? — perguntei, cruzando meus braços assim que fiquei diante dele. O homem de meia-idade, alto, moreno e de olhos castanhos escuros, virou-se para mim como quem não quer nada, e isso só aumentou minha irritação, mesmo que tentasse não demonstrar.— O suficiente para uma semana toda, como você vê — falou, docemente. Revirei meus olhos, lembrando que Fábio era um empresário de uma empresa ligada a produção de vinho e que gostava de agir como um maldito de um ricaço mesmo em boates assim.— Não me diga — falei, sarcástico. Ele voltou seu corpo todo para mim, entregando sua bebida para um dos caras que haviam próximo a si.— Você está aqui pela minha ligação, não é?— Não, eu só vim curtir um pouco mesmo tendo muito a resolver — ironizei, revirando meus olhos. Ele balançou sua cabeça de um lado para o outro, logo seguindo com sua fala como se a minha nunca tivesse sido dita:— O que eu tenho q
LauraO som que meus sapatos de salto alto fizeram no piso de porcelanato da casa de Valentim assim que entrei, não foi a coisa que mais atraiu minha atenção quando pude visualizar com calma o local que seria minha morada nos próximos meses.Diante de uma sala ampla, com teto rebaixado e luzes indiretas, não consegui esconder minha surpresa e euforia. Todo aquele luxo, que ia de uma cozinha com eletrodomésticos de primeira linha em aço escovado, mesas de vidro e passa pratos giratórios, era a última coisa que eu imaginava ver em uma casa na Rocinha, embora a fachada já fosse, por si só, chamativa o suficiente comparada a qualquer outra construção que havia ao seu redor.Pela localização, aquele lugar estava bem longe de ser simples ou modesto. Nos poucos minutos que fiquei zanzando de cômodo em cômodo, vi que havia não só amplos quartos, banheiros com hidromassagem, aparelhos de ar-condicionado e TVs de LCD em quase todos os cômodos, como também uma piscin
Laura— Eu sei quem é você — a irmã de Valentim afirmou, agora indo até ele. — Henrique, não é?Ao ouvir seu primeiro nome, o rosto do meu amigo se contorceu em uma careta de desaprovação. Lopes não gostava de ser chamado pelo seu primeiro nome, que lhe foi dado por sua mãe um ano antes de lhe deixar nas mãos de seu pai — ainda bebê —, um homem que morrera injustamente pela bala de um PM quando meu amigo tinha míseros quatorze anos.— Me chame de Lopes, por favor — pediu, educado. Mas ela simplesmente ignorou.— Henrique Lopes… Eu sabia! — disse, vitoriosamente. Voltou-se em minha direção, como quem quer confirmar algo. — Então, você é mesmo a filha do Antônio e ele é o cachorrinho fiel dele — constatou, batendo uma mão na outra. Apesar do movimento e da alegria demonstrada em sua voz, ela não se esforçou em aparentar estar feliz diante de nós.— Eu te peço de novo, não me chame pelo meu primeiro nome — Lopes pediu novamente, ignorando a
ValentimO relógio marcava duas horas da manhã quando finalmente pisei no chão marmorizado da minha casa. Estava exausto, boa parte sendo pela energia gasta com discussões e acordos que firmei — ou pelo menos tentei firmar — com as pessoas mais importantes presentes naquela boate; um lugar muito badalado, que funcionava quase vinte e quatro horas por dia.Não podia afirmar que eu estava no meu juízo completo, afinal, a bebida que eu havia ingerido na presença de Fábio ainda parecia vívida demais na minha boca, me fazendo questionar o motivo de tê-la bebido apenas uma vez.Não era como se houvesse alguém para me impedir de ficar bêbedo, embora eu soubesse, bem lá no fundo, que se arriscasse perder minha capacidade de impor respeito a qualquer um que me visse, os boatos que se formariam sobre mim acabariam sendo algo terrível demais para eu simplesmente ignorar, o que poderia resultar em mais pessoas mortas ou feridas do que eu estava realmente disposto a pr
ValentimAntes do meu celular marcar sete da manhã eu já estava sentado em volta de uma das mesas de vidro que haviam na cozinha, saboreando as maravilhas que minha irmã havia preparado para mim naquele dia — já que Dona Heloísa, nossa empregada doméstica, estava de férias por tempo indeterminado.Laura e seu capacho, que durante a conversa com Isabel eu descobri se chamar Henrique, vulgo Lopes, ainda permaneciam em seus respectivos quartos — o dele no início do corredor e o dela bem próximo ao meu, por coincidência, talvez — sem nem dar um mísero sinal de vida, quase me levando a acreditar que haviam fugido depois do sono não muito prolongado que tive após chegar daquela festa onde me encontrei com Fábio no dia anterior.Suspirei, já não gostando daquela mordomia que os dois estavam tendo em meu lar. Depois, quando os visse, expulsaria o homem para que situações como a que havia acontecido horas antes não pudessem se repetir de novo, e, acima de tudo, inf