Laura
Eu não imaginava que o novo dono do morro era um maldito de um filho da puta. Sinceramente, pensei que houvesse um pouco de esperança quando ele apareceu diante de mim e se manteve alheio ao meu showzinho gratuito. Mas, não, era só uma falsa impressão minha. O desgraçado era mais fodido do que todos os homens que eu havia visto durante minha vida inteira, talvez até mais do que meu pai, que já não era um bom exemplo desde o começo.E, para piorar, eu não conseguia entender o que passou pela minha cabeça durante os minutos que estive com ele. Uma hora ela parecia não funcionar direito, presa no calor que aquele homem me causava em partes que nem ouso comentar; já em outras fazia-me sentir tão irritada que apenas desejava acabar com toda aquela farsa e encenação ali mesmo, desconsiderando todos os esforços gastos para chegar até ali.Mas não me deixei levar por isso. Eu precisava ser digna da imagem que tinham de mim, ser a patricinha mimada — mesmo me considerando velha demais para o papel —, a filha que larga o pai e some, e depois volta apenas quando a conta seca e nenhum centavo lhe resta para manter seus luxos desnecessários.Arrogante, mandona e incrivelmente irritante; essas eram as características que me tornaria mais próxima da pessoa que eu buscava ser enquanto estivesse ali, dentro do covil do meu maior inimigo. Mesmo que isso fosse difícil no começo, eu esperava conseguir e assim destruir a facção daquele falso dono do morro de dentro para fora; de um jeito que ele jamais iria se reerguer de novo.Suspirei, saindo de meus devaneios e tomando coragem para empurrar a porta que me separava de um ferido Lopes. Eu sabia que ele não estaria bem fisicamente dado aos gritos de dor que ouvi durante o tempo que fiquei ao lado do dono do morro. Talvez alguns membros houvessem sido deslocados, junto de dedos quebrados e possíveis furos na parte de seus braços.Enfim, não seria uma cena bonita. E não fora; Lopes estava sentado em uma cadeira de plástico, sem ninguém por perto, destacando-se na sala quase vazia. Uma mesa com alguns utensílios de tortura — como alicates, facas e outras armas que não me recordava o nome — e alguns itens para tratar ferimentos jazia largada em sua frente, manchada com um líquido vermelho que supus ser seu sangue.Seus dedos estavam retorcidos, com certeza quebrados, e seu rosto estava inchado. Sangue seco brilhava em seus pés, peito e braços, escondendo os pequenos furos feitos com o que me pareceu ser uma faca afiada. Meu peito se apertou com a cena, e senti uma onda de arrependimento atravessar todo o meu corpo por fazê-lo me acompanhar até aquele lugar e passar por tudo aquilo. Não era responsabilidade dele, mesmo que Lopes jurasse que tudo que fizera — e faria — por mim, no fim, era apenas o cumprimento das últimas ordens que meu pai havia dado a ele antes de ser destronado.Para qualquer outra pessoa que vivia minha realidade isso poderia não importar, mas para mim era algo que não havia como não pensar sobre. Eram vidas sendo arriscadas e perdidas por meus caprichos, gente como eu que estava na pior, muitas vezes vivendo dessa forma por falta de escolha e nada mais que isso.Respirei fundo, tentando focar nas prioridades que aquela situação demandava. Me aproximei de Lopes, vendo seus olhos negros se abrirem e me encararem com curiosidade, embora também estivessem atordoados, como os de quem tenta entender uma situação mesmo sabendo que demoraria muito mais tempo do que o desejado para fazê-lo.— E aí? Como foi minha atuação? — ele perguntou, abrindo um sorriso ladino para mim quando arredei os itens sobre a mesa à sua frente e me sentei. Balançando minha cabeça de um lado para o outro, espantei o resto de culpa que me restava por colocá-lo naquela situação. Ele ainda não merecia minha total compaixão.— Exagerada, como sempre — cantarolei, sem esconder meus sentimentos quanto a sua extravagante encenação.— Bem, não fui eu que fiz curso de teatro, não é? — me provocou, erguendo-se com certa dificuldade da cadeira e aproximando-se de mim.Ao ouvir aquelas palavras, fiquei em silêncio, não querendo entrar naquele assunto complicado que me fazia lembrar do meu passado nada feliz. Não era ali — muito menos agora — que voltaria a anos no tempo só para pensar sobre as escolhas que me custaram mais do que eu gostaria de lembrar.— Esqueça isso — pedi, desviando meus olhos dos dele.— Como quiser, Laura.Levantei meus olhos e ergui uma sobrancelha. Quis, por um segundo, brincar com a forma como Lopes havia falado aquelas palavras, mas não o fiz. Não estava no clima para isso.— Acho que devo enrolar quanto tempo aqui até ter uma resposta para dar aquele desgraçado que roubou o morro do meu pai? — perguntei apenas para mudar de assunto. Eu já tinha uma resposta na ponta da minha língua, embora também quisesse saber a opinião do meu braço direito sobre isso.— Talvez meia hora? — Ele ergueu os ombros, como quem não quer nada, e soltou um gemido de dor por causa do gesto.— Pouco tempo para mim.— Então duas horas?— Não acho que ele vá esperar tudo isso.— Se é assim, qual a quantidade de tempo que você deseja?— Entre cinquenta minutos e uma hora e vinte. De preferência com um número irregular que ele não esteja esperando.— Sinceramente, o que você quer com algo tão específico? — ele questionou, fazendo uma careta engraçada. Soltei uma pequena risada e ergui minha cabeça para o teto. Percebi, então, que havia uma pichação de uma rosa atravessando um coração coberto de sangue sobressaindo-se em relação ao fundo enegrecido.— Irritar e atrair a atenção do fodido, é claro.— Ele tem nome, Laura — me repreendeu, cruzando os braços e se esquecendo por alguns segundos dos ferimentos que haviam ali. Não demorou muito tempo para que seu rosto se contorcesse em uma carranca de dor. — Valentim, para ser exato. Você tem noção disso, não é?— Tenho o suficiente para não querer gastar palavras dizendo esse nome por aí em sua ausência.— Teimosa como sempre — resmungou, revirando os olhos. Voltou, então, a se sentar na cadeira de plástico. Aproveitei esse momento para me aproximar dele e começar a cuidar de suas feridas com os materiais que haviam para este fim ali. — Laura, você pode me dizer o porquê de estar fazendo isso? Afinal, não seria mais fácil dar um jeito de infiltrar ou subornar alguém aqui de dentro para matar aquele homem e salvar seu pai?Olhei pensativa para Lopes, imaginando a quanto tempo ele estava suprimindo seu desejo de fazer aquela pergunta para mim. Não parecia ser pouco, uma vez que desde o momento que apresentei àquele plano a ele e meus outros capangas — há uma semana atrás —, sua expressão era cheia de dúvidas e questionamentos. No entanto, não saíra nada de sua boca em relação a isso. Talvez por lealdade cega a mim, ou por apenas pensar que eu não diria meus motivos a ele. Fosse o que fosse, era óbvio que Lopes estava tentando aproveitar aquele momento para conseguir a resposta que queria.E eu não sei se gostava disso.— Se fosse você — comecei, tentando escolher as melhores palavras para expor o que pensei quando tive a ideia de me infiltrar ali —, o que faria? Apenas mataria o manda chuva e deixaria para lá aqueles que dão poder a ele? — Lopes ficou em silêncio, e eu não vi escolha a não ser prosseguir com meu raciocínio: — Não podemos matar esse tal de Valentim sem antes descobrir quem e porquê o colocaram aqui. Como ele conquistou o morro em tão pouco tempo, e, principalmente, quem são seus aliados e como eliminá-los de uma vez por todas.— Eu compreendo, mesmo achando que é demais pôr sua vida em risco no processo — disse, e depois suspirou. — Mas nesse ramo opinião é opinião; muito se tem e pouco se compartilha.— Ainda bem que sabe disso.Sorri, voltando a olhar o teto belíssimo da sala, aproveitando os últimos momentos ali antes de ter que voltar e encarar a verdadeira tentação em formato de homem, tanto pelo lado bom quanto negativo.LauraSe alguém me dissesse, há um mês atrás, que teria que me submeter a esse tipo de situação — onde deveria fingir ser aquilo que mais odiei — era bem provável que iriam ouvir minha risada em alto e bom som. Talvez acabasse levando um tiro no pé ou, na melhor hipótese, seria chutado em suas partes baixas como punição pela ousadia.Eu jamais poderia pensar que após voltar para o Brasil depois de uma viagem para a Itália, que durara mais de seis anos, encontraria meu lar — por mais conturbado que fosse — de ponta cabeça e nas mãos de um homem que até então era um desconhecido para mim. Sem falar que meu pai estava preso sabe-se lá onde, vivo ou até morto, e sem nenhuma chance de escapar inteiro dali sem minha ajuda.Uma ajuda que não estava tão disposta assim a dar.Pelo menos não antes de ser alvo de um ex-policial que desejava minha cabeça acima de tudo. Antes disso, mesmo com minha família envolvida, aquela situação parecia irreal demais. Portanto, não acreditei até o momento que
ValentimEu me sentia irritado comigo mesmo. Talvez fosse por ter achado aquela vadia muito sedutora e sexy, algo que poderia muito bem atribuir ao fato de estar há muito tempo sem uma foda decente. Em contrapartida, também poderia ser por ter que deixar minha vingança para escanteio por um curto período de tempo. Era bem provável que fosse uma combinação dos dois, e isso deixava meu humor péssimo ao ponto de ninguém — nem mesmo meu melhor amigo — querer ficar ao meu lado no banco traseiro do carro em que eu estava.Soltei um suspiro de frustração, focando minha atenção na paisagem da favela que passava pela janela do carro que Marcelo dirigia. Não tinha muito tempo que nós dois havíamos saído do galpão que usávamos como base, mesmo assim, não demoraria muito mais que vinte minutos para chegarmos até nosso destino final.No percurso, os veículos que passavam por nós eram, em sua maioria, de mototaxistas que levavam consigo pessoas amedrontadas, por motivos
Valentim— Está se divertindo muito, Fábio? — perguntei, cruzando meus braços assim que fiquei diante dele. O homem de meia-idade, alto, moreno e de olhos castanhos escuros, virou-se para mim como quem não quer nada, e isso só aumentou minha irritação, mesmo que tentasse não demonstrar.— O suficiente para uma semana toda, como você vê — falou, docemente. Revirei meus olhos, lembrando que Fábio era um empresário de uma empresa ligada a produção de vinho e que gostava de agir como um maldito de um ricaço mesmo em boates assim.— Não me diga — falei, sarcástico. Ele voltou seu corpo todo para mim, entregando sua bebida para um dos caras que haviam próximo a si.— Você está aqui pela minha ligação, não é?— Não, eu só vim curtir um pouco mesmo tendo muito a resolver — ironizei, revirando meus olhos. Ele balançou sua cabeça de um lado para o outro, logo seguindo com sua fala como se a minha nunca tivesse sido dita:— O que eu tenho q
LauraO som que meus sapatos de salto alto fizeram no piso de porcelanato da casa de Valentim assim que entrei, não foi a coisa que mais atraiu minha atenção quando pude visualizar com calma o local que seria minha morada nos próximos meses.Diante de uma sala ampla, com teto rebaixado e luzes indiretas, não consegui esconder minha surpresa e euforia. Todo aquele luxo, que ia de uma cozinha com eletrodomésticos de primeira linha em aço escovado, mesas de vidro e passa pratos giratórios, era a última coisa que eu imaginava ver em uma casa na Rocinha, embora a fachada já fosse, por si só, chamativa o suficiente comparada a qualquer outra construção que havia ao seu redor.Pela localização, aquele lugar estava bem longe de ser simples ou modesto. Nos poucos minutos que fiquei zanzando de cômodo em cômodo, vi que havia não só amplos quartos, banheiros com hidromassagem, aparelhos de ar-condicionado e TVs de LCD em quase todos os cômodos, como também uma piscin
Laura— Eu sei quem é você — a irmã de Valentim afirmou, agora indo até ele. — Henrique, não é?Ao ouvir seu primeiro nome, o rosto do meu amigo se contorceu em uma careta de desaprovação. Lopes não gostava de ser chamado pelo seu primeiro nome, que lhe foi dado por sua mãe um ano antes de lhe deixar nas mãos de seu pai — ainda bebê —, um homem que morrera injustamente pela bala de um PM quando meu amigo tinha míseros quatorze anos.— Me chame de Lopes, por favor — pediu, educado. Mas ela simplesmente ignorou.— Henrique Lopes… Eu sabia! — disse, vitoriosamente. Voltou-se em minha direção, como quem quer confirmar algo. — Então, você é mesmo a filha do Antônio e ele é o cachorrinho fiel dele — constatou, batendo uma mão na outra. Apesar do movimento e da alegria demonstrada em sua voz, ela não se esforçou em aparentar estar feliz diante de nós.— Eu te peço de novo, não me chame pelo meu primeiro nome — Lopes pediu novamente, ignorando a
ValentimO relógio marcava duas horas da manhã quando finalmente pisei no chão marmorizado da minha casa. Estava exausto, boa parte sendo pela energia gasta com discussões e acordos que firmei — ou pelo menos tentei firmar — com as pessoas mais importantes presentes naquela boate; um lugar muito badalado, que funcionava quase vinte e quatro horas por dia.Não podia afirmar que eu estava no meu juízo completo, afinal, a bebida que eu havia ingerido na presença de Fábio ainda parecia vívida demais na minha boca, me fazendo questionar o motivo de tê-la bebido apenas uma vez.Não era como se houvesse alguém para me impedir de ficar bêbedo, embora eu soubesse, bem lá no fundo, que se arriscasse perder minha capacidade de impor respeito a qualquer um que me visse, os boatos que se formariam sobre mim acabariam sendo algo terrível demais para eu simplesmente ignorar, o que poderia resultar em mais pessoas mortas ou feridas do que eu estava realmente disposto a pr
ValentimAntes do meu celular marcar sete da manhã eu já estava sentado em volta de uma das mesas de vidro que haviam na cozinha, saboreando as maravilhas que minha irmã havia preparado para mim naquele dia — já que Dona Heloísa, nossa empregada doméstica, estava de férias por tempo indeterminado.Laura e seu capacho, que durante a conversa com Isabel eu descobri se chamar Henrique, vulgo Lopes, ainda permaneciam em seus respectivos quartos — o dele no início do corredor e o dela bem próximo ao meu, por coincidência, talvez — sem nem dar um mísero sinal de vida, quase me levando a acreditar que haviam fugido depois do sono não muito prolongado que tive após chegar daquela festa onde me encontrei com Fábio no dia anterior.Suspirei, já não gostando daquela mordomia que os dois estavam tendo em meu lar. Depois, quando os visse, expulsaria o homem para que situações como a que havia acontecido horas antes não pudessem se repetir de novo, e, acima de tudo, inf
LauraEu não sabia o que pensar.A partir do momento que pisei naquela casa, tudo que eu considerava certo sobre minha curta estadia no morro havia se tornado obsoleto e irrelevante. Tinha, para começo de conversa e para meu desprazer, encontrado um fantasma do passado há muito tempo esquecido. Algo que, sobretudo, havia balançando minhas estruturas e me deixado à beira de um colapso iminente.Por isso, não consegui dormir e tive que vagar pela casa à noite. Tive que me banhar na água gelada da piscina por tempo considerável e, por fim, tive que tentar encontrar algo para me distrair. E quem seria uma melhor distração do que aquele que me queria presa a ele?Sim, eu fui até Valentim com a desculpa de que queria apenas provocá-lo, mas não era isso. Eu queria achar uma fuga, queria descobrir se a irmã dele já contara tudo que sabia sobre meu passado — algo que conclui que ela não fizera, para minha total confusão.E isso nem era a ponta do