Valentim
Antes do meu celular marcar sete da manhã eu já estava sentado em volta de uma das mesas de vidro que haviam na cozinha, saboreando as maravilhas que minha irmã havia preparado para mim naquele dia — já que Dona Heloísa, nossa empregada doméstica, estava de férias por tempo indeterminado.Laura e seu capacho, que durante a conversa com Isabel eu descobri se chamar Henrique, vulgo Lopes, ainda permaneciam em seus respectivos quartos — o dele no início do corredor e o dela bem próximo ao meu, por coincidência, talvez — sem nem dar um mísero sinal de vida, quase me levando a acreditar que haviam fugido depois do sono não muito prolongado que tive após chegar daquela festa onde me encontrei com Fábio no dia anterior.Suspirei, já não gostando daquela mordomia que os dois estavam tendo em meu lar. Depois, quando os visse, expulsaria o homem para que situações como a que havia acontecido horas antes não pudessem se repetir de novo, e, acima de tudo, infLauraEu não sabia o que pensar.A partir do momento que pisei naquela casa, tudo que eu considerava certo sobre minha curta estadia no morro havia se tornado obsoleto e irrelevante. Tinha, para começo de conversa e para meu desprazer, encontrado um fantasma do passado há muito tempo esquecido. Algo que, sobretudo, havia balançando minhas estruturas e me deixado à beira de um colapso iminente.Por isso, não consegui dormir e tive que vagar pela casa à noite. Tive que me banhar na água gelada da piscina por tempo considerável e, por fim, tive que tentar encontrar algo para me distrair. E quem seria uma melhor distração do que aquele que me queria presa a ele?Sim, eu fui até Valentim com a desculpa de que queria apenas provocá-lo, mas não era isso. Eu queria achar uma fuga, queria descobrir se a irmã dele já contara tudo que sabia sobre meu passado — algo que conclui que ela não fizera, para minha total confusão.E isso nem era a ponta do
LauraEra por volta das quatro da tarde quando uma mulher negra, alta, de cabelos cacheados invadiu meu quarto com uma alegria que não condizia com meu estado de espírito naquele momento. Eu não sabia quem ela era, de onde tinha vindo e o que pretendia fazer ali, na área que tecnicamente deveria ser minha e somente minha. No entanto, uma parte de mim imaginava que tinha dedo daquele fodido do Valentim; o desgraçado só poderia querer me provocar depois de tudo aquilo que aconteceu entre nós depois do café da manhã.— Olá, bela adormecida! — cumprimentou, puxando os lençóis finos que eu usava para me cobrir. Não sei se minha expressão denunciou a irritação que sentia com a invasão dela ou se já estava óbvio desde o começo, mas ela parou por alguns segundos, ponderando, e começou a falar: — Eu já peço desculpas por invadir seu cantinho privado, mas é necessário. Valentim quer que você esteja pronta para o jantar de hoje a noite na casa de um importante parceiro comerc
ValentimEra por volta do meio-dia quando recebi uma ligação de Marcelo dizendo que Fábio queria se encontrar com a filha do Antônio em um jantar após descobrir que ela já estava em minha casa, sob os meus cuidados. Eu não sei se posso dizer o que se passava na cabeça dele quando decidiu que queria vê-la antes do evento na boate. Muito menos se eu poderia dizer que gostava disso. Não, eu não gostava. Havia algo pairando sobre esta situação toda que estava me deixando com os nervos à flor da pele. E olha que, enquanto pensava nisso tudo, estava desconsiderando tudo que havia acontecido entre mim e Laura depois do café da manhã.Suspirei, frustrado por ter tido que aceitar tal "ordem" vindo de alguém que eu não — na teoria, pelo menos — precisava obedecer. Mas não tinha o que ser feito. Minha cabeça estava cheia demais por ter sacado minha arma e atirado com ela somente por uma provocação barata da minha principal inimiga; o que só me fez repensar se valia
ValentimLinda não era a palavra que definia a mulher à minha frente. Não, estava bem longe de ser. Laura parecia uma musa grega, ou até mesmo as mais badaladas sambistas das escolas de samba que desfilavam com toda elegância no carnaval. Ela estava deslumbrante, um encanto igual às sereias da mitologia grega; bela e feroz, pronta para arrancar a língua de quem quer que a incomodasse. E isso não era de todo ruim para mim.O vestido preto, de mangas longas e colado parecia se encaixar perfeitamente em seu corpo esbelto, realçando cada curva e cada traço seu. Em contrapartida, a maquiagem não muito forte tornava seu rosto mais angelical, mais leve, como se ela não tivesse nenhuma preocupação tirando sua paz; como se aquilo que aconteceu entre nós de manhã não tivesse lhe atingido de verdade e tudo não passou de um delírio da minha mente perturbada.Se seu vestido não fosse de mangas longas e seus olhos não tivessem hesitado ao me ver, eu até poderia ter acre
LauraTenho que dizer que não consegui entender o que se passava por minha mente durante os momentos que fiquei mais próximo de Valentim. O jeito que ele estava agindo após toda aquela situação complicada que nós vivenciamos após o café da manhã quase me fazia acreditar que ele estava arrependido. Tinha minhas dúvidas, além de saber que tudo também poderia ser um jogo simples onde quem conquistava o outro primeiro ganhava; algo que nem eu e nem ele tínhamos ideia de quem estava liderando.Suspirei, atraindo sua atenção para mim. Ele dirigia a uma velocidade considerável pelas ruas do Rio, em direção a um lugar que me parecia ser um bairro bem chique e badalado.Não imaginava o que esperar daquele jantar. Poderia ser qualquer coisa, qualquer pessoa querendo ver a encrenca que eu havia me metido ou, talvez, alguém que queria me ajudar agora que eu estava aqui? Não seria estranho, muito menos impossível. Graças a Emily, uma tagarela, eu havia descoberto que m
LauraQuando enfim atravessei a porta misteriosa, não consegui esconder meu encanto com o ambiente. Haviam belíssimas pinturas de flores em preto e branco espalhadas pelas paredes, enquanto um sofá lateral preto contornava duas pequenas mesas de mármore branco, dívidas por uma divisória que fazia parte do móvel negro. Sobre elas jaziam, em cada uma, cinco taças vazias e duas garrafas de vinho tinto. Tudo devidamente preparado para trazer o maior conforto e elegância possível.Não nego que meus olhos brilharam, muito menos que nem cheguei a notar a única pessoa que destoava do ambiente com seu terninho azul marinho, elegante e curioso. Sorri para ele, um pouco envergonhada por tê-lo ignorado por um tempo que eu nem sabia o quanto era. Ele simplesmente retribuiu meu sorriso, trazendo para mim aquela sensação de familiaridade.O homem que havia aparecido com Valentim posicionou-se em pé ao lado do homem de meia idade que já estava presente ali. Tentei me forç
ValentimVi quando o rosto de Laura perdeu a cor e seus olhos ficaram tão opacos que pensei, por um segundo, que ela ia desmaiar. Para ser sincero, não consegui entender sua reação até olhar para o conteúdo da maleta que Fábio apresentava com tamanho orgulho.Uma faca tática estava posta com todo cuidado ao lado de alguns documentos; sua lâmina era serrilhada, negra como a noite, e possuía um símbolo que não me era estranho. Eu já o tinha visto em algum lugar, e acabei deduzindo que Laura compartilhava da mesma opinião, uma vez que ela murmurou um "isto é…" acompanhado de um "não é possível" enquanto uma de suas mãos tampava sua boca.— Parece que você reconheceu isso, minha querida — Fábio observou, com um sorrisinho de lado.— É-É claro — ela gaguejou, me causando certa estranheza. Essa era a primeira vez que a via agir de uma forma tão estranha. — Eu morei seis anos na Itália, então é impossível não reconhecer isto.— Realmente. — Ele
Valentim— Algum problema, Valentim? — Vicente perguntou, um tempo depois da saída de Laura e como se nós fôssemos próximos. Virei meu rosto em sua direção, nada feliz com sua falta de senso e noção sobre sua verdadeira posição na hierarquia do morro.— Meu assunto não é com você, capacho — retruquei, o vendo torcer a cara nada contente. No começo, não liguei para isso, apenas dei alguns passos em direção ao meu verdadeiro alvo. — Quero conversar um pouquinho com você a sós, Fábio. Pode mandar esse seu cão de guarda embora para bem longe daqui?— Se é o que meu querido amigo quer, por que não? — Sorriu, falso como uma víbora. — Me deixe sozinho com ele, Vicente.— Mas, senhor…— Tudo bem, nada demais vai acontecer — o tranquilizou, e eu cerrei o meu maxilar, pois ele estava certo, infelizmente.— Ok. Mesmo a contragosto, Vicente saiu da sala, deixando a mim e Fábio a sós.— O que você quer conversar, Valentim?