Laura
A primeira coisa que notei após ouvir um tiro sendo disparado em minha direção fora o corpo de um dos meus capangas caindo, sem vida, em direção ao chão; a segunda, por sua vez, foi o ferimento em meu braço, que reluzia escarlate em meio à pouca luz; e, por fim, a cruel verdade que se esfregava na minha cara sobre aquele lugar: ele já não era mais meu lar, e minha cabeça realmente estava a prêmio.Olhei para os lados à procura do atirador, mas a única coisa que meus olhos eram capazes de notar era o líquido rubro que começava a escorrer até meus pés e manchava meus sapatos bejes.Não sei dizer ao certo o que senti naquele momento. Era uma onda de fúria que surgia do meu interior e me fazia ficar vermelha; espanto, dor, incredulidade. Sentimentos e emoções diversas que me faziam querer destruir tudo e a todos, até descobrir o que caralhos estava acontecendo ali.— Mas que…Não consegui terminar a frase. Outro disparo foi ouvido e por pouco não acertou minha perna esquerda. Em um rápido movimento, tentei checar se havia mais perdas do meu lado. Por alguma razão, o outro homem que eu havia trazido comigo, desaparecera. Ele não estava no beco, o que me fez perguntar se eu havia sido traída ou ele apenas tentara proteger sua vida acima da de sua chefe. Na verdade, não importava qual motivo fosse; se eu sobrevivesse àquilo tudo, eu com certeza o encontraria e ele iria sentir toda minha fúria.Soltei um pequeno gemido de dor, notando que o sangramento em meu braço esquerdo era maior do que gostaria de acreditar. Eu não tinha muito tempo, se esperasse mais alguns minutos poderia acabar tendo alguma hemorragia, e com certeza isso não era algo que eu queria. Entretanto, o que fazer quando não se tem a visão do inimigo?A resposta não era tão difícil, mas fazê-la não era, nem de longe, algo que eu gostava.Suspirando e sem escolhas, tirei meus sapatos com rapidez, deixando-os em uma direção oposta a minha, e me escondi atrás de uma caçamba de lixo, esperando que o atirador viesse me procurar, reunindo a pouca paciência que me restava para não jogar minha última alternativa fora — uma vez que estava ferida e sem meios de me comunicar com qualquer outra pessoa.Desta forma, aguardei o que pareceu ser horas, fazendo com que nesse curto período um pensamento me ocorresse: o que pensaria meu "amado" pai ao me ver ali, a futura dona e rainha do morro, sendo pressionada por um mero atirador da Rocinha?Ele provavelmente não iria gostar. Nem ele, nem minha falecida mãe. Nem eu mesma gostava. Como a única herdeira de um império criado com sangue, ser forte e lidar com situações como essa deveria ser a coisa mais fácil para mim, afinal não era eu que havia passado os últimos seis anos no exterior para me tornar alguém digna de meu nome?Todo o suor que derramei não poderia ter sido em vão. Se fosse, eu não poderia ser chamada de Laura Martins de Almeida. Não poderia ser quem eu nasci para ser. E isso era, naquele momento para mim, a pior coisa no mundo.Por causa desse pequeno instante de devaneio e distração, não vi quando o atirador entrou no beco, quando notou meu sapato de salto destacando-se em meio a cena deprimente ao nosso redor e, por fim, quando soltou uma risada de escárnio, anunciando que minha hipotética posição já era de seu conhecimento.Só fui notar sua presença quando um terceiro disparo soou na direção do lugar que joguei de forma intencional meus sapatos de salto. Aquele era o aviso, o sinal que eu precisava para começar a agir e enfim fazer meu nome valer a pena, mostrando tudo que aprendi e que estava disposta a fazer para acabar com aquela situação.Sem cerimônias, peguei uma faca afiada que guardava em um coldre na lateral da minha panturrilha e me esgueirei até chegar por trás do atirador. Ele não me viu, e, se viu, fez questão de não demonstrar. Quando a posicionei nas costelas do meu agressor e ele riu de forma irônica, imaginei que talvez estivesse cometendo um erro, mas não era isso. Ele apenas estava debochando da minha suposta incapacidade de machucá-lo com uma arma tecnicamente qualquer.— Uma patricinha mimada com arma de cozinha, é isso que vejo aqui? — disse ele, rindo como se eu não demonstrasse firmeza na mão que segurava a faca rente ao seu corpo.Eu apenas ergui uma sobrancelha, agora curiosa sobre o motivo dele me chamar assim. No entanto, não o respondi, apenas decidi afrouxar o aperto contra sua costela e fingir que realmente tremia. Era uma encenação para descobrir o que caralhos aquele homem queria dizer com tudo aquilo, semelhante a tantas outras que eu já havia feito durante muitos dos meus anos de vida.— Está com medo, não está? Da mesma forma que estava curiosa para poder sentar no trono que seu pai construiu com os ossos e suor de muitas pessoas que viveram e morreram aqui no morro — ele disse, e tentou se virar para mim. Nesse momento, percebi que a imagem que as pessoas tinham de mim no morro não condizia com a realidade, ou, pelo menos, era tão distante quanto.E isso soava uma ótima oportunidade para ser usada por mim.— Eu não… — Não consegui terminar de falar, pois uma forte cotovelada atingiu meu estômago bem antes que pudesse entender que eu havia cometido um erro. Eu havia abaixado minha guarda, e o atirador era mais esperto do que aparentava. Uma combinação que só serviu para me desorientar.— Você é uma mulher tão bonita. É mesmo uma pena que deva morrer aqui para que eu possa pegar o dinheiro que vale sua cabeça e assim conseguir voltar mais uma vez para a Zona Sul do Rio — ele revelou, me causando novo. Ergui meus olhos para ele, tentada a lhe gritar verdades bem amargas e cruéis sobre sua vinda inútil até ali.— Você não terá esse prazer — apenas murmurei, recuperando o fôlego perdido com o golpe. Minha faca havia caído longe e agora eu estava na mira de um fuzil carregado. Não parecia haver escapatória. Se não pensasse em algo, logo meus miolos estariam estourados pelo chão em uma cena que ninguém gostaria de ver.LauraEu queria afirmar com toda a certeza que não estava preocupada com a situação em que me encontrava naquele momento. Queria dizer que isso era fichinha e, por mais complicado que parecesse aos olhos de quem me visse assim, era só uma questão de tempo para que eu estivesse livre e com as informações que tanto desejava.Mas, não, nunca era tão simples assim.Eu estava ferrada, se considerasse meu machucado, a falta de armas ao meu dispor e o atirador bem experiente em minha frente. Claro, tudo tinha um jeito, e para aquela situação não seria diferente. Só bastava começar a pensar com calma, algo bem difícil de se fazer.Suspirando, olhei para os lados, tentando considerar todas minhas alternativas — que não eram muitas — e me deparei com meu antigo esconderijo. Ali talvez houvesse algo que poderia me ajudar; um singelo e nojento saco de lixo. Para qualquer outra pessoa em minha situação, isso não seria nada, mas para mim era uma oportunidade que não eu iria ousar desperdiçar, e só
ValentimO osso de uma perna quebrado, pulmões perfurados por vários tiros de fuzil e um buraco no meio da testa destacavam-se no corpo estendido — já em estado de decomposição — na minha frente. Se não fosse pelas tatuagens espalhadas por todo seu corpo, jamais imaginaria que aquele ali era o ex-atirador da polícia que trabalhava para mim desde que perdera tudo para seu vício em drogas e sua enorme dívida com a boca de fumo.— Onde vocês o encontraram? — perguntei, desviando meus olhos da cena e prendendo a respiração para não sentir aquele cheiro podre que vinha do cadáver, mas foi em vão; o fedor apenas se intensificou com o ato.— Dentro de uma caçamba de lixo, na parte mais afastada do morro — Marcelo, meu melhor amigo, disse, cobrindo seu nariz com seu braço esquerdo. — Por que não saímos daqui antes de conversarmos? Não aguento mais ter que sentir e ver essa nojeira.Apenas assenti, ordenando os capangas que haviam trazido o corpo até mim para se livrarem dele em um lugar mais
ValentimJá era a terceira vez que ouvia um som de grito agoniado vindo do corredor, formando uma melodia grotesca acompanhada de ossos sendo quebrados e pedidos de misericórdia. Eu sorri, sentado em uma poltrona confortável, de frente para outra cena que se destacava muito mais para mim do que a primeira.A mulher de cabelos castanhos longos, olhos cor de avelãs, arrogantes, vestida com uma blusa lisa azul-marinho e calças jeans clara, tentava a todo custo ignorar o barulho quase ensurdecedor, enquanto batia seus pés calçados com sapatos de salto alto de grife no chão de forma impaciente; me deixando tentado a ordenar que intensificassem a tortura sobre o homem que havia aparecido ali com ela só para vê-la entrar em desespero completo bem diante de mim.Mas eu não fiz isso. Não porque tive pena do homem — isso eu nunca teria —, mas, sim, por imaginar que, se o fizesse, não seria a forma mais fácil de obter as respostas que queria. Não era, se eu continuasse levando em consideração qu
LauraEu não imaginava que o novo dono do morro era um maldito de um filho da puta. Sinceramente, pensei que houvesse um pouco de esperança quando ele apareceu diante de mim e se manteve alheio ao meu showzinho gratuito. Mas, não, era só uma falsa impressão minha. O desgraçado era mais fodido do que todos os homens que eu havia visto durante minha vida inteira, talvez até mais do que meu pai, que já não era um bom exemplo desde o começo.E, para piorar, eu não conseguia entender o que passou pela minha cabeça durante os minutos que estive com ele. Uma hora ela parecia não funcionar direito, presa no calor que aquele homem me causava em partes que nem ouso comentar; já em outras fazia-me sentir tão irritada que apenas desejava acabar com toda aquela farsa e encenação ali mesmo, desconsiderando todos os esforços gastos para chegar até ali.Mas não me deixei levar por isso. Eu precisava ser digna da imagem que tinham de mim, ser a patricinha mimada — mesmo me considerando velha demais pa
LauraSe alguém me dissesse, há um mês atrás, que teria que me submeter a esse tipo de situação — onde deveria fingir ser aquilo que mais odiei — era bem provável que iriam ouvir minha risada em alto e bom som. Talvez acabasse levando um tiro no pé ou, na melhor hipótese, seria chutado em suas partes baixas como punição pela ousadia.Eu jamais poderia pensar que após voltar para o Brasil depois de uma viagem para a Itália, que durara mais de seis anos, encontraria meu lar — por mais conturbado que fosse — de ponta cabeça e nas mãos de um homem que até então era um desconhecido para mim. Sem falar que meu pai estava preso sabe-se lá onde, vivo ou até morto, e sem nenhuma chance de escapar inteiro dali sem minha ajuda.Uma ajuda que não estava tão disposta assim a dar.Pelo menos não antes de ser alvo de um ex-policial que desejava minha cabeça acima de tudo. Antes disso, mesmo com minha família envolvida, aquela situação parecia irreal demais. Portanto, não acreditei até o momento que
ValentimEu me sentia irritado comigo mesmo. Talvez fosse por ter achado aquela vadia muito sedutora e sexy, algo que poderia muito bem atribuir ao fato de estar há muito tempo sem uma foda decente. Em contrapartida, também poderia ser por ter que deixar minha vingança para escanteio por um curto período de tempo. Era bem provável que fosse uma combinação dos dois, e isso deixava meu humor péssimo ao ponto de ninguém — nem mesmo meu melhor amigo — querer ficar ao meu lado no banco traseiro do carro em que eu estava.Soltei um suspiro de frustração, focando minha atenção na paisagem da favela que passava pela janela do carro que Marcelo dirigia. Não tinha muito tempo que nós dois havíamos saído do galpão que usávamos como base, mesmo assim, não demoraria muito mais que vinte minutos para chegarmos até nosso destino final.No percurso, os veículos que passavam por nós eram, em sua maioria, de mototaxistas que levavam consigo pessoas amedrontadas, por motivos
Valentim— Está se divertindo muito, Fábio? — perguntei, cruzando meus braços assim que fiquei diante dele. O homem de meia-idade, alto, moreno e de olhos castanhos escuros, virou-se para mim como quem não quer nada, e isso só aumentou minha irritação, mesmo que tentasse não demonstrar.— O suficiente para uma semana toda, como você vê — falou, docemente. Revirei meus olhos, lembrando que Fábio era um empresário de uma empresa ligada a produção de vinho e que gostava de agir como um maldito de um ricaço mesmo em boates assim.— Não me diga — falei, sarcástico. Ele voltou seu corpo todo para mim, entregando sua bebida para um dos caras que haviam próximo a si.— Você está aqui pela minha ligação, não é?— Não, eu só vim curtir um pouco mesmo tendo muito a resolver — ironizei, revirando meus olhos. Ele balançou sua cabeça de um lado para o outro, logo seguindo com sua fala como se a minha nunca tivesse sido dita:— O que eu tenho q
LauraO som que meus sapatos de salto alto fizeram no piso de porcelanato da casa de Valentim assim que entrei, não foi a coisa que mais atraiu minha atenção quando pude visualizar com calma o local que seria minha morada nos próximos meses.Diante de uma sala ampla, com teto rebaixado e luzes indiretas, não consegui esconder minha surpresa e euforia. Todo aquele luxo, que ia de uma cozinha com eletrodomésticos de primeira linha em aço escovado, mesas de vidro e passa pratos giratórios, era a última coisa que eu imaginava ver em uma casa na Rocinha, embora a fachada já fosse, por si só, chamativa o suficiente comparada a qualquer outra construção que havia ao seu redor.Pela localização, aquele lugar estava bem longe de ser simples ou modesto. Nos poucos minutos que fiquei zanzando de cômodo em cômodo, vi que havia não só amplos quartos, banheiros com hidromassagem, aparelhos de ar-condicionado e TVs de LCD em quase todos os cômodos, como também uma piscin