Capítulo 01

Safira Medeiros

Queria saber exatamente o que dizer para começar isso aqui, mas a verdade é que não sei por onde devo começar a contar minha história. Certamente deveria ser pelo início, mas são anos de uma vida privada por um motivo idiota que, até hoje, não consigo entender por que me permiti viver daquela maneira. Mas, vamos lá. O início de alguma coisa nunca é fácil, e comigo não foi diferente.

Minha família, ou melhor, a família Medeiros, sempre foi uma das mais bem-vistas e apreciadas aqui em Santa Cecília, interior de São Paulo. Sempre participamos das maiores celebrações da cidade, sendo os convidados do prefeito ou os anfitriões de festas celebradas em nossa residência. Para mim, tudo era divertido, tudo virava brincadeira, ainda mais para uma menina espoleta de oito anos. E foi assim, em uma brincadeira, que tudo mudou da água para o vinho.

Eu brincava de bola com Daniel, meu vizinho e melhor amigo, na época. Ele já tinha uns doze anos, mas como só havia nós dois na vizinhança toda (que também não era tão grande assim), nós brincávamos juntos praticamente todos os dias, a mansão com o jardim enorme na parte de trás dela, ficava pequena perto da algazarra que nós fazíamos. Nesse dia em específico, a gente brincava de gol a gol, dentro da minha casa, pois chovia torrencialmente do lado de fora.

Os empregados passavam por nós, desviando dos chutes para não derrubarem as louças que estavam sendo realocadas para o salão onde aconteceria o tão prestigiado Baile do Amor. Ernesto era um dos nossos empregados mais antigos, passava por mim com uma bandeja repleta de taças em variados tamanhos. Daniel sorriu, fazendo suas covinhas sobressaírem em suas bochechas e chutou antes mesmo de olhar por onde Ernesto passava.

A bola acertou em cheio a bandeja que estava nas mãos de Ernesto. A bola quicou sobre as taças, estraçalhou os vidros e rebateu no rosto de Ernesto, quebrando seus óculos e fazendo-o derrubar todo aquele vidro quebrado sobre mim, que encarava o desastre que aconteceu bem na minha frente.

A casa ficou uma loucura. Pessoas gritando, meu pai comigo no colo, minha mãe chorando e meu rosto todo cortado com aqueles cacos de vidro que explodiram sobre mim. Me levaram para o hospital, retiraram os cacos superficiais e limparam meu rosto inteiro. Mas um pedaço um pouco maior quase atingiu meus olhos. E foi assim que ganhei uma cicatriz que vai do canto do olho perto do nariz até a outra ponta, onde termina o olho, formando uma meia-lua.

Quando saí do hospital uns dias depois, minha vida havia virado de cabeça para baixo. Aulas particulares e domiciliares, perdi o único amigo que eu tinha e minha casa outrora grande, espaçosa, alegre e divertida, agora não passava de um mero amontoado de cômodos.

Desde aquele fatídico dia, sou desprezada por minha família pelo simples fato de ter uma cicatriz horrenda perto de um dos olhos. “Seus olhos azuis eram tão lindos, agora são um verdadeiro desperdício, uma pena mesmo!” A frase que ouço há uma vida de minha mãe.

Meu pai quase não fala comigo, além do trivial por educação. Meu melhor amigo foi embora da minha vida sem nem dar tchau, e hoje minha companhia diária são filmes e séries de romance adolescente que não condizem em nada com a minha realidade, e há também Betina, que é a empregada que meus pais contrataram para que ficasse à minha disposição.

Ela é mais do que isso para mim. Tem sido meu ombro amigo há quase cinco anos, quando veio trabalhar aqui aos 18. Eu tinha acabado de me tornar uma adolescente cheia de perguntas sobre a vida. Betina, assim como eu, não tem muita experiência com rapazes (eu, no caso, tenho zero experiência) e desde que veio para cá, sua vida social foi pelo ralo. Por isso que quando o novo vizinho chegou, há duas semanas, não deixou de me informar o quanto ele é bonito e quanto ele parece ser um cara inteligente, visto que está sempre lendo ou estudando, carregando seu bloco de notas.

— Safir, o que vamos fazer para chamar a atenção dos seus pais no baile?

— Não vou ao baile, Tina. Você sabe que não sou bem-vinda.

— Ah, não, Safir. Você precisa dar um basta nisso, minha amiga. Já passou da hora de seus pais te liberarem dessa vida de prisioneira. — Betina acariciou meus cabelos, enquanto eu me observava em frente ao espelho da penteadeira. Suspirei frustrada e a encarei pelo espelho.

— Confesso que estou cansada disso, também. Queria poder ter a chance de viver um romance como o da Lara Jean e do Peter Kavinsky. Ou ficar dividida entre dois gatos, como a Bela em “O verão que mudou minha vida”... — falei reflexiva.

— Triângulo amoroso não, Safir. — Ela andou até a janela do meu quarto que tinha vista da lateral da casa do meu vizinho e abriu as cortinas. — E é por isso que digo mais uma vez: você precisa fazer alguma coisa. Já é uma mulher, não pode ficar aqui sonhando acordada e fazendo a vontade deles.

— Para eu ir ao baile, preciso ou de uma permissão ou de um par. — Me levantei da cadeira e me joguei na cama dramaticamente, com a barriga voltada para cima e os braços caindo sobre meus olhos. — E eu não tenho nenhum dos dois.

Ficamos em silêncio por um tempo. Meus pensamentos intrusos me obrigando a concordar com qualquer loucura que Betina fosse sugerir me deixavam inquieta. Senti o coração acelerar na mesma hora.

— E se você contratar alguém, sei lá, ou então pedir para algum empregado ser seu par, o que acha? — Tina começou a falar animadamente, ainda parada na janela.

— Não tem ninguém da minha idade do sexo oposto que trabalhe aqui. E contratar alguém está fora de cogitação, seria humilhante demais, além do mais, isso iria requerer um dinheiro que não tenho justificativa para pedir aos meus pais. — Virei o corpo sobre a cama, me sentia derrotada e esmagada pela realidade que me rondava. Encarei minha amiga, que sorriu presunçosamente.

— Eu tenho uma outra ideia — Tina falou, o sorriso esperto me deixando preocupada. — E se a gente falasse com o vizinho gato, para te ajudar?

— Ah, não, Tina. A gente nem conhece o sujeito. E se ele for um psicopata? Ou serial killer? Tá doida? Ele acabou de se mudar, não sabemos nada sobre ele.

— Ele não acabou de se mudar! Já está aqui há algumas semanas. As flores do seu aniversário de 18 anos, foi ele quem mandou. E… — Tina sentou-se ao meu lado. — ... jamais saberíamos se ele fosse um assassino em série.

— Não sei, Tina. Parece arriscado demais. — Me sentei na cama, a ideia me deixava animada, mas ao mesmo tempo era aterrorizante ter que ir falar com alguém completamente estranho.

— Olha, ele sempre foi educado — ela começou a pontuar, e meu nervosismo aumentava gradativamente. — Todas as vezes que passamos por ele em nossas caminhadas matinais, ele nos cumprimentava, você se escondia e mesmo assim ele insistia em falar com a gente. Foi assim que ele soube que era seu aniversário.

Eu e Betina tínhamos a permissão dos meus pais, para dar uma volta pelo quarteirão da mansão uma vez ao dia. Geralmente andávamos bem devagar para ficarmos fora de casa por mais tempo, mas sabíamos que estávamos sendo sempre vigiadas.

O que me consolava e acabava aliviando meu lado, era que Betina me ajudava a me aproximar de praticamente todos os funcionários que viam como eu era tratada constantemente por meus pais, e quando passava um pouco do horário, eles não relatavam e faziam vista grossa.

— Eu lembro que travei quando você parou para falar com ele. Minha vontade era de te enforcar, mas só de pensar que ele poderia ver meu rosto, não me atrevi a levantar os olhos.

— Eu sei, você se encolhe toda vez que alguém passa por nós durante as caminhadas. — Tina me encarou. — Não deveria se esconder de ninguém, Safir. Você é linda. E eu sei que o vizinho tem curiosidade sobre você. Toda vez ele fica encarando, esperando que você o note.

— Pois eu duvido. Sinto que ele me olha, mas por pura curiosidade. Não sei de onde você tira essas ideias.

— Eu observo as coisas, Safir. — Tina se aproximou novamente. — Vamos tentar, por favor. — Minha amiga juntou as mãos como se fosse orar e me olhou nos olhos. — Você não tem nada a perder mesmo, e, além do mais, só se vive uma vez, não dá para viver assim, enclausurada para sempre.

— Vou jogar uma moeda. Se der cara, a gente tenta, se der coroa, deixa para a próxima.

Levantei-me da cama, abri a primeira gaveta da cômoda, peguei um porta-joias e tirei de lá uma moedinha. Olhei para Tina, que aguardava o fim dos meus movimentos, e joguei para cima a pequena moeda de cobre, lançando minha sorte.

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