Vi que uma sombra de culpa passou em seus olhos e isso mexeu com algo em meu peito. Era um sentimento novo e diferente, sem dúvidas despertado pela nossa velha amizade e toda a lembrança do que éramos quando crianças. Daniel segurou minha mão e depositou um beijo em seu dorso, afastando os lábios lentamente.
— Bom, agora que você já sabe das minhas razões — falei, quebrando aquele silêncio que havia se instaurado — preciso saber se vai me ajudar. Pois, senão, tenho que pensar em outra solução. — Te ajudo, sim, mas com uma condição. — Dani! — Desferi um leve tapa em seu ombro, e ele riu. — Depois de tudo que te contei, ainda vai impor uma condição? — Claro! Não posso ficar sem ganhar nada! — Você vai ganhar uma amiga grata por todo apoio. — Hum... É pouco. Preciso de mais ganhos. — Seu tom brincalhão me fazia rir espontâneamente. — Você é um péssimo amigo! Diga logo o que quer, antes que eu me arrependa. — Bom, você me disse que tem o hábito de assistir comédias românticas, certo? — Certíssimo! — Então, voltei a morar aqui, mas meu trabalho está sendo afetado, pois é difícil ler e fazer o relatório de um livro quando se está preocupado com um mundo de coisas, além do seu trabalho. — Você trabalha com o que exatamente? — Trabalho em uma editora importante em Goiânia. Adiantei minhas férias para vir até Santa Cecília, tentar arrumar um comprador para essa casa, mas meu chefe disse que preciso cumprir com algumas coisas que ficaram pendentes lá. E alguns livros estão acumulados. — Vai direto ao ponto, Dani. Ainda não entendi bem o que quer de mim. — Ok, desculpe. Gostaria que lesse alguns dos manuscritos originais e ressaltasse o que for bom e o que você acredita não ser algo interessante para a história. Enquanto eu te ajudo a participar do Baile, você me ajuda a adiantar algumas leituras que estão atrasadas. — É só isso? — indaguei, e ele confirmou balançando a cabeça. — Tem certeza? — Sim, é bem simples. Minha condição é começarmos a ler alguns mais curtinhos para você se acostumar e pegar o ritmo. E se precisar, estarei aqui para tirar qualquer dúvida sua. — Ele colocou uma mexa do meu cabelo, que estava solto, atrás de minha orelha e seu indicador deslizou perto da minha cicatriz, me afastei bruscamente dele, ficando em pé e mexendo na bolsa pendurada em meu ombro. — Me parece muito suspeito tudo isso. — Olhei nervosa para meus pés, ajeitei o banco, chegando-o para frente e o olhei pelo canto dos olhos, Dani tentava esconder um sorriso frouxo. — Tudo bem, ler não arranca pedaço. Qual será o primeiro? — Bom, vai ser um romance em que a mocinha quer se vingar do ex e acaba ficando com o pai dele. — Meus Deus, que horror! — É um pouco peculiar mesmo, porém, dependendo de como é construída a linguagem do casal, funciona muito e vende bem. — Então, que eu consiga fazer essa análise certa. — Vai se sair bem! — Ouvimos a campainha tocar e me lembrei que Betina estava lá fora à minha espera. — Deve ser minha amiga. Preciso ir. — Me levantei e ele me acompanhou até a porta. Seu braço pesava sobre meus ombros enquanto andávamos até a saída. Era esquisito e familiar ao mesmo tempo. Paramos em frente ao cômodo que me recordo ter sido seu antigo quarto e ele entrou, pegou um aparelho semelhante a um tablet e me entregou. — O livro está aqui. Isso é um Kindle, um aparelho feito especialmente para leitura de livros digitais. Só tem um livro aí, que é o que você precisa ler. — Está bem. Agora vamos, pois a Tina vai achar que você me matou e está pretendendo sumir com todas as pistas e indícios do crime. — Dani gargalhou e voltou a passar seu braço por meus ombros. Paramos em frente a porta. Daniel me virou de frente para ele em um movimento sutil com suas mãos em minha cintura, minha respiração se alterou e meus olhos passearam de suas covinhas para seus lábios entreabertos e convidativos. Perceber que agora ele era um homem feito e muito bonito, mexeu comigo mais do que realmente deveria. Deslizei a língua por meus lábios e desviei o olhar para a porta de madeira de um tom claro, logo atrás dele. — Quando terminar de ler, procure-me. E depois me diga o que teremos que fazer nesse baile. Ok? Se tivermos que dançar, precisaremos marcar ensaios, pois eu não sou muito bom nisso. — Está bem. Vou ver com a Tina um cronograma e marcar com você os horários para eu conseguir vir aqui. Não pense em aparecer lá em casa. Meus pais não podem sonhar que estou encontrando alguém. — Tudo bem. Será nosso segredo. — Ele me lançou uma piscadela, e eu sorri espontaneamente. — Vou começar a ler hoje mesmo. Obrigada pela ajuda e estou muito feliz que você tenha voltado para Santa Cecília. Espero que da próxima vez que você partir, consigamos nos despedir. — Não vamos falar em despedidas por agora. Tome cuidado ao voltar para casa e me mande uma mensagem para me avisar de que está tudo bem. Trocamos o contato no celular e ele depositou um beijo no dorso da minha mão mais uma vez e um em meu rosto. Abriu a porta e reparamos quando Betina respirou aliviada ao me ver inteirinha em sua frente. — Safira, da próxima vez você fica e eu converso. Achei que você tinha morrido. — Não falei? — Olhei para Daniel e ele gargalhou mais uma vez. O som de sua gargalhada me fazia cócegas na barriga. — Agora virei palhaça de circo, é? — Vem, vamos embora que eu te conto tudo. Obrigada mais uma vez, Dani. — Aguardarei sua mensagem ansiosamente. Tchau, Tina. Minha amiga se estremeceu ao ouvi-lo chamar seu apelido e sorriu envergonhada. O efeito do sorriso galante e o olhar conquistador do meu ex-melhor amigo afetando-a, assim como me afetava. Agora era oficial: Daniel Albuquerque acabara de voltar para minha vida. E suas covinhas também.Estou em choque com esse livro. A cada página e capítulo que eu terminava, a trama me deixava mais curiosa e muito envolvida. Eu passei a noite em claro, pois precisava de respostas urgentemente. Só me dei conta de que não tinha dormido, quando Betina entrou em meu quarto para avisar que o café estava para ser servido. Ela achou esquisito eu já estar acordada e sentada na cama, mas não disse mais nada e saiu de fininho. No geral, eu não gostava de participar das refeições em conjunto com a minha família. É sempre indigesto. Mas hoje estava de bom humor, acho que encontrei um hobby novo que me faz ir a lugares sem sair de casa. Nota mental: agradecer ao Daniel por me apresentar à leitura. Por isso, quando me aproximei de meus pais na sala de jantar onde fazemos todas as refeições, carregava um sorriso idiota no rosto, como não tinha há muito tempo. — Está atrasada, Safira! — meu pai disse, antes mesmo que eu os cumprimentasse. — Sente-se logo. — Bom dia para o senhor, também!
entrei em meu quarto. Chorei deitada em minha cama, com os fones de ouvido berrando: No time To Die, da Billie Eilish, até pegar no sono. Não era sempre que isso acontecia, afinal, depois de anos, eu já havia me acostumado com os insultos tanto de meu pai como de minha mãe. Mas dessa vez tinha sido diferente, não por suas palavras, mas porque eu sentia algo em mim diferente. Havia uma esperança de as coisas serem diferentes, e ver que meu pai só pensa em mim para usar em seu próprio benefício, me doeu. Muito! Ainda dentro da banheira, estiquei os braços e alcancei uma toalha de rosto, enxuguei as mãos e a face, e peguei o celular que estava na bandeja ao lado. Era uma mensagem de Daniel. Abri um enorme sorriso assim que li seu nome no visor do aparelho. Cliquei e abri a mensagem: (Dani) “Esse negócio de te ver de longe é uma droga. Me deixa subir aí.” (Eu) “Não tem como. Estão marcando em cima.” (Dani) “Tenho um presente para você. Quero te ver. Estou aqui embaixo. Se você abrir a janela, eu subo.” (Eu) “Você tá doido!”, pensei, olhei pela janela do banheiro, voltei a encarar a tela do telefone e sorri antes de digitar a próxima mensagem. (Eu) “Já vou abrir. Estou saindo do banho.” Rapidamente, me levantei, me sequei e vesti o roupão. Meu quarto estava um pouco gelado, mas a adrenalina de tudo que estava por acontecer me deixava quente. Sequei o cabelo com uma toalha e o deixei solto com um ar despojado e meio úmido. Corri até a janela, mas não o vi em lugar algum. Peguei o celuCapítulo 06
Daniel AlbuquerqueTrês semanas antes do BaileEra bom poder voltar para Santa Cecília depois de dez anos sem pisar os pés sequer em São Paulo. Tenho muitas lembranças boas desse lugar e sempre quis saber como andavam as pessoas que ficaram por aqui. Safira é uma delas. Lembro da minha infância com carinho, principalmente por causa dela. Éramos crianças alegres e vivíamos aprontando pela mansão dos Medeiros. Algumas vezes, meus pais pediam para que ela fosse até nossa casa, e assim como em qualquer lugar, nós nos divertíamos com coisas simples. Ela era uma boa amiga. E por isso voltar aqui e saber como ela está hoje em dia, me deixa bem ansioso. Mas minha vinda para cá não é com esse propósito. A verdade é que preciso pôr minha antiga casa à venda. Minha mãe descobriu um câncer de mama há dois anos e meio, na época, meu pai ainda era vivo e nós dois cuidamos dela. Ela apresentou melhora e então descansamos. Seus cabelos voltaram a crescer, mas da noite para o dia, meu pai se senti
Safira Medeiros Queria saber exatamente o que dizer para começar isso aqui, mas a verdade é que não sei por onde devo começar a contar minha história. Certamente deveria ser pelo início, mas são anos de uma vida privada por um motivo idiota que, até hoje, não consigo entender por que me permiti viver daquela maneira. Mas, vamos lá. O início de alguma coisa nunca é fácil, e comigo não foi diferente. Minha família, ou melhor, a família Medeiros, sempre foi uma das mais bem-vistas e apreciadas aqui em Santa Cecília, interior de São Paulo. Sempre participamos das maiores celebrações da cidade, sendo os convidados do prefeito ou os anfitriões de festas celebradas em nossa residência. Para mim, tudo era divertido, tudo virava brincadeira, ainda mais para uma menina espoleta de oito anos. E foi assim, em uma brincadeira, que tudo mudou da água para o vinho. Eu brincava de bola com Daniel, meu vizinho e melhor amigo, na época. Ele já tinha uns doze anos, mas como só havia nós dois na viz
Safira Medeiros Aparentemente, segundo a Tina, sou uma pessoa de sorte e é o meu destino conhecer meu novo vizinho, mas sinto que meu estômago vai se dar por vencido a qualquer minuto. Nosso plano era bem simples: ir até a casa dele, sorrir, ser simpática e perguntar se ele gostaria de participar do Baile do Amor, organizado pela minha família, uma tradição na cidade, sendo o meu par. Caso ele diga que não, terei que implorar por sua ajuda e era exatamente isso que me preocupava. Não gostava de pedir favores e isso se dava a uma personalidade trabalhada no orgulho. Já era ruim ter que aguentar meus pais me olhando com pena, pedir ajuda é ter mais um olhar piedoso de alguém e acho que não suportaria. Olhei por cima dos ombros para minha fiel escudeira e toquei a campainha da casa ao lado da minha. Betina estava escondida e só iria interferir caso eu gritasse ou fizesse nosso sinal de perigo, que nada mais era que um cruzar de dedos atrás ou acima da cabeça.Respirei e inspirei três