Dois

Sara conseguiu encontrar um apartamento legal num preço aceitável para mim. Isso que era amiga! Comecei a ter certeza de que voltar para Chaves tinha sido a melhor coisa que fiz. 

Ainda tinha um dinheiro guardado e estava procurando um emprego nas confeitarias da cidade. Meus pais ficaram um pouco relutantes quando falei que iria me mudar. Eu os entendia perfeitamente e por isso estava aguentando tudo sem reclamar. Se sua filha aparecesse quase com 30 anos dizendo que largou tudo e queria tentar algo extremamente arriscado? 

— Devíamos chamar pessoas para ajudar, sabe? — Sara disse enquanto eu empurrava o sofá marrom pela casa. 

Foi uma luta trazer meus móveis de Massan para a nova casa, e tive que pagar caro, mas melhor do que comprar tudo novo. Estava cogitando sinceramente vender o carro se as coisas ficassem muito complicadas. Quando voltei para casa percebi que meus pais se acostumaram a ficar sem mim, e eu me acostumei a ter meu próprio espaço.

— E o empoderamento feminino? — coloquei as mãos na cintura a observando. — Garotas também conseguem!

— É... — suspirou. — Mas no momento sou gestante — alisou a barriga com uma expressão fofa. — Posso ligar para o Jacob e pedir para ele vir dar uma mãozinha, quem sabe ele não trás mais alguém? 

— Não faça isso! — neguei procurando um prendedor de cabelo nos bolsos do meu short jeans para controlar meus cachos. — Da última vez meu ex-namorado apareceu sem saber que eu estaria lá.

— Seu ex-namorado é um dos meus melhores amigos, Wendy — Sara se sentou no sofá atravessado na sala. — Quando você foi embora, nós ficamos aqui, então não reclame! 

— Eu sei — suspirei desistindo do prendedor. — Mas não me sinto pronta para encarar o Kevin. Não que eu deva explicações a ele, mas você lembra de tudo, então...

Sara me encarou parecendo entediada. Ela estava terrivelmente determinada em nos colocar no mesmo lugar. Na semana anterior  tinha marcado um jantar e eu quase tropecei quando vi o Kevin sentado na mesa pelo vidro da porta do restaurante. É lógico que eu acabei fugindo sem motivos lógicos.

— Ele perguntou de você — ela disse olhando para suas unhas. 

— Perguntou? — lhe lancei um olhar surpresa. — Perguntou o quê?

— Está curiosa agora? — levantou depois de um suspiro. — Há alguns segundos atrás nem queria ouvir o nome dele.

— Aff! — dei de ombros. — Eu não quero saber mesmo! Vou pagar alguém para montar os móveis. 

Continuei tentando organizar as coisas sentindo seus olhos em mim. 

— Ele queria saber se você estava bem — Sara disse me fazendo olhar para ela. — Se tinha voltado permanentemente para Chaves. 

— Você contou que larguei meu emprego? — perguntei me sentindo confusa.

— Mandei ele te perguntar! — cruzou os braços. — Vocês dois hein! 

Eu não me sentia a mesma garota de 5 anos atrás, mas o passado estava me atormentando um pouco, me fazendo ver e presenciar coisas parecidas com minhas memórias. 

✴✴✴

Jacob parecia tão perdido em ser pai que chegava a ser engraçado. Sara ganhou acessórios para o quarto do bebê de sua mãe e acabei indo junto para buscar, pois minha amiga fazia questão de ocupar os horários vagos da minha agenda de desempregada. Jacob ainda se sentia desconfortável na casa da sua sogra, mesmo depois do casamento, embora eu entendesse, porque aquela mulher era realmente difícil.

Quando chegamos na casa deles com várias caixas, Sara se sentiu um pouco enjoada e Jacob a levou para dentro. Pedi as chaves do carro para adiantar o trabalho, e comecei a tirar as caixas do porta-malas.

 Empilhei algumas e alonguei meus braços. A sorte que tinha me vestido para aquilo, o que apenas fazia parte do meu estilo pessoal. Quando não estava usando terninhos e saltos altos, apostava no jeans, camisetas confortáveis e tênis. Quase tudo em mim era mediano, a minha altura, o comprimento dos meus cabelos cacheados, o tom da minha pele,

— O que a gente não faz pelos amigos — murmurei pegando as caixas. — Já volto para pegar vocês! — pisquei para as que ficaram. 

Eu nem conseguia enxergar nada a minha frente e acabei sendo barrada.

— Precisa de ajuda? — alguém disse do outro lado, e eu soube que era o Kevin, até porque era impossível confundir sua voz. 

Abaixei o braço e consegui vê-lo por cima das caixas. Ele ergueu as sobrancelhas, mas tomou as caixas das minhas mãos. 

— Obrigada! — falei com os braços livres. 

Kevin sorriu sem mostrar os dentes e entrou levando as caixas. Respirei fundo pegando as caixas que ficaram e entrei tentando organizar meus pensamentos. 

Sara continuou enjoada e fazia careta sentada no sofá quando entrei. Jacob estava angustiado tentando fazê-la melhorar. 

— Sua careta te deixa ainda mais feia — Kevin disse com as mãos nos bolsos a observando. 

Ela lhe lançou um olhar chateado e foi surpreendida quando ele jogou alguma coisa, o que ela pegou numa cena engraçada. Fiquei receosa de me aproximar enquanto ela desembrulhava uma bala e colocava na boca. 

— Obrigada! — ela o agradeceu e Jacob soltou um suspiro de alívio.

— Dou isso aos cachorros no consultório — Kevin disse me fazendo rir. Seu senso de humor não tinha mudado aparentemente. 

— Os cachorros gostam de bala de gengibre? — Sara espremeu os olhos. — Por que você me perturba tanto? Eu vou ter um bebê!

— Espero que ele não seja chato como você — Kevin falou e acabei rindo de novo da implicância. 

— O que está fazendo aqui afinal? — Sara reclamou e depois abriu a boca como se lembrasse. — Hoje é quinta-feira!

— O que tem quinta-feira? — me aproximei tentando ser normal.

— Nos reunimos toda quinta para beber e jogar conversa fora — Jacob respondeu sorrindo. — Ah, com você aqui parece que voltamos aos anos da faculdade!

Sorri sem graça e Kevin me olhou rapidamente sem muita expressão. 

— Você vai ficar, certo? — Sara perguntou juntando as mãos. — Por favor!

Confirmei com um sorriso. Eu deveria vencer aquela barreira, afinal de contas tínhamos os mesmos amigos. 

Pedimos comida e a Sara fez um suco para ela, já que não podia beber nada alcoólico. 

Quando a comida chegou sentamos na sala e evitei ao máximo ficar encarando o Kevin. Não queria que ele pensasse que eu tinha voltado para atormentar sua vida ou coisa do tipo. Sara e Jacob ficaram juntos no sofá, enquanto eu me sentei na poltrona e Kevin se espalhou pelo tapete.

— Qual a novidade da semana? — Sara perguntou abrindo a conversa enquanto calçava meias. 

— Tratei de uma corujinha hoje — Kevin contou. — Fui chamado no zoológico. 

Sorri orgulhosa. Ele tinha mesmo se tornado um veterinário e parecia bem feliz com aquilo. Balancei a cabeça ao lembrar das cenas da faculdade.

— Nós descobrimos o sexo do bebê! — Jacob empolgado. — Vai ser um menino.

— Sua chata! — reclamei enquanto ela ria. — Você nem contou nada!

— Foi ontem — Sara alisou a barriga. — Estou amando todos nós juntos hoje. Estou tão feliz em te ter de volta, Wendy!

Sorri um pouco. Parecia que eu tinha deixado muitas coisas e quando voltei fui percebendo como as pessoas a minha volta tiveram suas rotinas afetadas pela minha partida. Sara era como uma irmã para mim, e mesmo que no início conversássemos quase todos os dias, com os anos fomos nos afastando até que achei que tinha perdido todos eles. Eu não fui ao casamento da Sara e do Jacob, porque tive uma viagem de trabalho, e ela nem me contou quando engravidou.

Kevin não disse nada. Talvez me ter de volta não fosse tão bom assim para ele.

— Queríamos falar com vocês — Jacob falou depois de limpar a garganta. Ele e Sara se entreolham um segundo e ela assentiu alguma coisa que eu não fazia ideia. — Queremos que sejam os padrinhos do nosso bebê!

Arregalei os olhos e fiquei apenas sendo observada com expectativa pelos dois.

— Eu vou ser o pior padrinho de todos! — Kevin disse fazendo Jacob rir.

— E você, Wendy? — ela me perguntou preocupada.

— Claro que serei! Que pergunta! — respondi sorrindo.

Conversamos um tempo sobre coisas aleatórias e Kevin não se conteve muito pela minha presença.

— Você não falou de você, Wendy — Jacob disse já na segunda taça de vinho.

— Ah, ultimamente não tenho feito muito — contei sem graça.

Sara estava alternando o olhar entre mim e Kevin sem disfarçar. Ele me observou um tempo, mas não manifestou nada imediatamente.

— Você voltou mesmo? — perguntou sério e concordei com a cabeça. — Você está bem?

— Sim — respondi me sentindo angustiada. Ele era assim, sem jogos. Enquanto eu não conseguia ser tão sincera quanto queria. — Você está bem?

Acenou com a cabeça e nosso contato visual se desfez.

Mesmo que eu o chamasse para conversar e desse todas as explicações que não dei a ninguém, o que iria mudar de fato? Talvez eu apenas precisasse me dispersar daquela culpa.

— Você bem que poderia fazer uns doces para nós qualquer dia! — Jacob sugeriu animado. — Sinto falta das suas tortas!

— Ah, sério? — perguntei emocionada e mais ainda quando o casal concordou animado. — Deixem comigo!

Kevin não disse nada. Ele vivia dizendo que amava minhas invenções. Observei quando ele tomou um pouco de vinho e sua boca ficou levemente avermelhada.

Quando decidimos que era hora de ir embora, caminhei para a estação de metrô. Jacob se ofereceu para me dar uma carona, embora a estação fosse bem perto. No final das contas Kevin acabou me acompanhando, para Jacob não deixar a Sara sozinha. Era pouco mais das dez horas da noite.

Ele colocou as mãos nos bolsos e apenas caminhou ao meu lado. Meu ex-namorado era um homem muito estiloso, ele realmente gostava de roupas e pensava nelas, aquilo era só um detalhe da sua personalidade nada convencional. Naquele dia ele usava apenas uma camiseta sobre um jeans folgado, parecia que tínhamos combinado.

Ótimo dia para deixar meu carro em casa. Na verdade, Sara e Jacob apareceram na minha casa naquela tarde e apenas me levaram.

— Você mora por aqui? — perguntei tentando quebrar o silêncio.

— Sim — respondeu. — Acabei sendo vizinho do casal alegria.

Ri um pouco e quando olhei rapidamente para seu rosto peguei o momento do sorriso que o deixava parecendo um gatinho.

Ele não perguntou. Talvez ele não quisesse saber por que voltei de repente.

O estranho é que antigamente Kevin era o meu melhor amigo e agora eu não conseguia mais falar com ele. Meu elfo favorito, e com seu novo corte de cabelo ele parecia ainda mais.

— Você mora muito longe? — perguntou depois de coçar o nariz.

— Não muito — respondi. — Uns quinze minutos de metrô.

— Você não quis ficar com seus pais? — encarei seu rosto buscando suas expressões, ou talvez eu só quisesse continuar olhando para descobrir se algo tinha mudado.

— É... Acho que nos acostumamos a ficar cada um em seu canto — Kevin concordou com a cabeça. — Sua família está bem?

Ele sorriu um pouco e suspirou olhando para a frente.

— Meu pai faleceu há dois anos.

Parei de andar e abri a boca assustada. Meu peito foi acertado por uma agulhada. Kevin olhou para trás e tentei conter meu pesar.

— Sério? — indaguei magoada. Ele concordou com a cabeça. — Sinto muito!

— Obrigado! — voltou a andar.

Fiquei realmente triste naquele momento. O pai dele sempre foi maravilhoso comigo e nem pude dizer adeus.

— Sua mãe está bem? — me apressei para acompanhá-lo.

— Ela se mudou para o interior — contou e pressionei os lábios. — Mas estamos bem!

Kevin parou de andar na entrada do metrô e me encarou.

— Boa viagem — disse se afastando.

— Obrigada por ter vindo! — falei o observando, mas recebi apenas um aceno de cabeça.

Fui todo caminho me sentindo estranha. Lembrando de coisas e querendo chorar. O pai dele se foi, a sua mãe ficou muito triste, e eu nem queria pensar no quanto o Kevin sofreu.

Tive o sentimento de ter feito tudo errado.

Tomei um susto quando do caminho da estação para minha casa senti algo gelado tocar minha perna. Depois de um pulo percebi um cachorro tentando chamar minha atenção. Ele era grande e com a cor de um caramelo.

— Oi! — falei ainda receosa em me aproximar. — Você está perdido?

O cachorro se aproximou pedindo carinho e acabei alisando seu pelo. Ele foi me seguindo todo o caminho.

— Você também está triste? — perguntei o observando caminhar ao meu lado. — Fez as escolhas erradas?

Suspirei quando cheguei no prédio e o cachorro ficou me encarando com um chorinho.

Não havia nenhuma proibição no prédio contra animais. Na verdade, o vizinho tinha três gatos.

— Te deixo passar a noite — me abaixei e ele correu para mim me acertando com uma lambida. — Você tem nome? — empurrei seu pescoço.

Subimos juntos e continuei o observando tentando pensar num nome.

— Vou te chamar de Legolas! — falei nas escadas. — Em homenagem a um elfo que gosto muito.

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