A vida é diferente quando você faz o que gosta.
Eu tinha um bom emprego em Massan. Meu salário era ótimo, não tinha dívidas, meu apartamento era espaçoso, meus casacos e bolsas eram caros, e os homens se interessavam por uma advogada que sempre andava por aí de salto alto. Mas minha vida era diferente, e eu não via mais graça em nada daquilo.
Meu novo emprego em compensação aparentava ser uma terrível bagunça. Nada de salto altos, e muito menos roupa de marca durante o expediente. Meus colegas de trabalho não pareciam ser muito bons do juízo. Mas eu estava tão feliz.
Aprendi a fazer pão. Confesso que treinei em casa no fim de semana, mas isso não vem ao caso.
— Wendy, você pode fazer aquela torta de chocolate branco outra vez? — Nádia, a recepcionista, disse depois de entrar na cozinha. — Ela acabou muito rápido. As pessoas gostam dos seus doces!
— Ah, sério? — me aproximei empolgada.
— Por que você diz essas coisas para ela? — Daniel reclamou amassando uma massa. — Ela vai ficar se achando agora!
— Eu vou mesmo! - pisquei para ele.
Nádia começou a rir e me apressei em juntar os ingredientes para fazer a torta. Eu me sentia bem, num nível que era permitido cantar em todos os momentos.
No início minha tarefa era apenas ajudar a fazer pães, mas durante meus tempos livres comecei a fazer doces para preencher as vitrines, e muito rápido ganhei reconhecimento do meu chefe.
— Wendy, não brinque muito com o Daniel, ele tem um coração frágil — o chefe, que fez minha entrevista, surgiu parecendo divertido. — Ele está todo exibido desde que você chegou!
— Entendo — respondi rindo. — Mas Daniel, sinto muito, não estou interessada.
Daniel mordeu o lábio inferior parecendo ofendido e os demais riram da cara dele. Meu colega de trabalho era jovem e atraente, tinha músculos aparentes em sua pele escura e usava tranças nagô no cabelo. Eu podia ser chamada de tola, mas talvez ainda tivesse uma queda pelo meu ex-namorado esquisito, e a verdade é que eu não conseguia pensar em outra pessoa.
— Você tem namorado, Wendy? — Nádia perguntou enquanto eu arrumava as coisas para começar.
— Claro que ela tem! — Jonas bradou. Fiz uma careta mirando para meu chefe e ele esmoreceu me observando. — Quero dizer, uma garota como ela, não deve estar solteira.
— Bem... — sorri. — Eu não tenho um namorado. Mas obrigada por me chamar de garota.
— Não se preocupe! — Nádia piscou para mim. — Logo o cara certo vai aparecer. E se não, eu deixo você ficar com o Daniel.
Acabei rindo. Meu conceito de "cara certo" já pertencia a uma pessoa.
Os dias no trabalho eram divertidos, e a pequena equipe me acolheu muito bem. Nádia trabalhava no caixa, Daniel era um dos confeiteiros e sobrinho de Jonas, o qual era o dono e confeiteiro. Havia também um garoto que trabalhava meio período no atendimento às mesas, o Victor, era uma gracinha.
— Alguém precisa de carona? — perguntei pegando as chaves do carro na bolsa. O expediente havia acabado e sorri em ver as vitrines praticamente vazias.
Jonas e seu sobrinho moravam no apartamento em cima da confeitaria. Nádia e Victor às vezes aceitavam uma carona.
Depois de negarem minha carona, saí checando as mensagens. Mamãe queria saber se eu teria tempo sábado à tarde, e Sara pediu para ligar assim que eu pudesse. Disquei para ela quando entrei no carro.
— Vem cá, por que você consegue sumir morando na mesma cidade? — ela disse assim que atendeu.
— Consegui um emprego, eu te disse — falei ligando o carro e o colocando em movimento, transferi a ligação para o painel. — Aconteceu alguma coisa?
— Briguei com o Jacob — suspirou e fiz uma careta depois de olhar rapidamente para o painel. — Teria um tempinho para conversar comigo?
— Onde você está?
— Em casa — suspirou outra vez. — Ele disse que chegaria tarde.
— Já estou indo!
Sara encolheu os ombros quando abriu a porta para mim, ela realmente parecia triste. A segui até a sala, onde se sentou no sofá e abraçou uma almofada.
— Por que brigaram? — perguntei me sentando na poltrona ao seu lado.
— Pedi que ele fosse ao casamento da minha prima comigo — contou sem me encarar e pressionei os lábios em ver a lágrima escorrendo pelo seu rosto. — Eu sei o quanto Jacob odeia minha família e o quanto ela dificulta para ele , mas apenas pedi que ele fosse comigo e ficasse comigo. Ele pediu que não fôssemos. Acabamos discutindo.
Sara me olhou triste e passei o polegar em seu rosto para enxugar a lágrima. Sorri um pouco e saí da poltrona, me ajoelhei no tapete e a abracei.
— Dissemos coisas que não deveríamos — murmurou em meio ao choro.
Nos balancei de um lado para o outro e alisei suas costas. Sara gostava do Jacob muito antes dele enxergá-la como pessoa.
— Você já comeu? — perguntei me afastando.
— Não. Estou sem fome.
— É, mas alguém talvez esteja com fome — coloquei a mão em sua barriga. — Vamos! Eu sei cozinhar comida também.
Puxei minha amiga para a cozinha. Fazia muito tempo que não tínhamos um momento assim. Eu queria acreditar que havíamos crescido e nos tornamos adultas, mas na verdade não era nada disso.
— E ninguém pediu desculpas? — perguntei abrindo a geladeira.
Sara se sentou perto da bancada e se esticou pela superfície enquanto alisava sua barriga.
— Bem, ele parecia realmente irritado — murmurou.
— Ah, o Jacob deve estar se sentindo pressionado, mas tenho certeza que ele te ama e vai vir correndo se desculpar!
Enquanto eu cozinhava uma sopa, Sara contou sobre a discussão, e embora ela parecesse muito magoada, eu sabia que um pedido de desculpa resolveria tudo. Provavelmente o Jacob estava em algum lugar reunindo a coragem para tomar a iniciativa.
— Você e o Kevin não conversaram? — ela perguntou já segurando a colher para comer.
— Acho que ele está muito ocupado — empurrei o pote de sopa para ela e fiquei de pé do outro lado da bancada a observando.
— Não precisamos de homens! — reclamou mexendo na sopa.
— Vocês farão as pazes logo — sorri apoiando o rosto nas mãos. — Tenho certeza que ele vai chegar em breve.
Enquanto ela tomava a sopa, resolvi limpar a bagunça que deixei. Fiquei escutando-a contar sobre todas as vezes que reataram e pouco tempo depois já estava me perguntando sobre minha vida sexual... Essa era Sara.
— Porque em toda minha vida eu só dormi com um homem — me encarou com os olhos bem abertos. — Você pegou outros em Massan?
— Bem... — sorri sem graça. — Dois?
— E quem era melhor? — sorriu empolgada. — O Kevin vence deles?
Entortei o pescoço com uma careta. Eu não costumava fazer esse tipo de avaliação, ou melhor, eu não lembrava muito de como eram meus relacionamentos casuais. Namorei sério apenas uma vez.
— Acho que sim — falei e ela soltou um gritinho. Deslizei os dedos pelos meus cabelos vendo-a bater as mãos, animada. — Mas eram relacionamentos diferentes. Acho que as coisas são diferentes quando é com a pessoa que você ama.
— E é por isso que eu não aceito que você tenha esquecido ele! — apontou para mim.
— Tudo bem! Eu me rendo — levantei as mãos num sinal de paz. — Tenho pensado nele.
Abaixei a cabeça quando ela começou a festejar. O barulho da porta batendo fez nós duas entrar em modo alerta. Jacob apareceu na cozinha poucos segundos depois, e Kevin estava com ele.
— Podemos conversar? — ele disse olhando apenas para a Sara.
Kevin fez um gesto para que eu saísse. Passei a mão no cabelo da Sara rapidamente antes de sair. Peguei minha bolsa no sofá e segui o Kevin para fora.
— Ele está bem? — perguntei pensando na fisionomia séria do Jacob.
— Está — respondeu trancando o portão. — Ele é o mesmo bobo de sempre.
— Ah — suspirei. — Que alívio!
Ficou estranho quando nosso assunto morreu. Ficamos nos encarando sem dizer nada e ele desviou primeiro. Kevin, meu elfo favorito, estava com a pele bem alva refletida pela luz do poste, e seu cabelo um pouco bagunçado. Suspirei querendo não o achar tão bonito assim.
— E o emprego? — perguntou.
— Ótimo! — respondi olhando para o carro, ou seja, sem passeio até o metrô. — E você? Tem estado muito ocupado?
— Sim.
— Entendo — sorri e busquei pela chaves do carro na bolsa. — Espero que consiga resolver tudo!
Ele estava evasivo, talvez tivesse mudado de ideia sobre conversar. E eu não tinha direito de insistir naquilo.
Comecei a andar para o carro, mas arregalei os olhos quando ele segurou meu pulso. Kevin tocou minha pele, a sua estava gelada.
— Wendy — falou baixinho e se aproximou um pouco sem me encarar diretamente. — Eu quero falar com você, mas não sei como.
— Você sabe como falar comigo — respondi concentrada em nossas mãos tão próximas. Meu coração acelerou só com aquilo, e não sabia se era apenas um nervoso bobo. — Estou disposta a conversar com você.
Kevin franziu o cenho, compondo sua careta confusa, e fofa, é claro. Ele suspirou profundamente, daquele jeito que eu conhecia e pensei que ele diria "vou me arrepender disso, mas" logo depois.
— Talvez eu me arrependa disso, mas — ele disse e sorri, o que lhe desconcertou ainda mais — moro ali! — apontou para uma casa do outro lado da rua. — Você tem algum tempo?
— Tenho — concordei, o que aumentou a velocidade das batidas do meu coração.
Atravessamos a rua em silêncio. Kevin parecia nervoso, daquele jeito que ele transparecia desconforto e me deixava ainda mais ansiosa.Eu não sabia bem o que esperar daquilo. Se abríssemos a caixa do nosso passado seria possível sentir tudo novamente? Eu estava com medo. Não queria ter terminado, mas tudo acabou, e querendo ou não, a culpa era minha. Na verdade, ele premeditou aquilo, fui avisada, ele me conhecia melhor do que eu. Passei na casa dos meus pais no sábado à tarde, como mamãe pediu. Eu estava tendo dias estranhos. Não conseguia parar de pensar na conversa que havia tido com o Kevin. Tínhamos combinado de sair, só não sabia bem se era um encontro, e sinceramente, esperava muito que fosse.Mamãe tinha feito um lanche para aquela tarde, eu estranhei como ela estava gentil, e me perguntou de forma empolgada como estava no trabalho. Papai não disse muito, ele continuou mexendo em seu notebook, e apenas aceitou meu abraço quando cheguei.— Por que eu sinto que a senhora está planejando algo? — perguntei, já sentada, observando ela encher uma xícara de café para mim.Mamãe riu um pouco e apoiou o rosto sobre a mão me analisando. Tomei um gole do café, desconfiada.— Fico feliz que esteja indo bem no trabalho! — disse enchendo umaOito
— Você é advogada? — Daniel perguntou depois de jogar a massa de pão que ele estava sovando na mesma bancada que eu estava usando para bater a massa da minha torta. Sorri um pouco enquanto despejava a massa numa assadeira pequena e redonda. Era engraçado lembrar sobre meu diploma de Direito, e que atuei como uma advogada por cinco anos. Eu não era gestora ou nada tão grandioso, mas participava de uma equipe extremamente responsável, e até resolvi alguns casos sozinha. — Sim, tenho um diploma — respondi sem querer parecer arrogante. Coloquei a assadeira no forno e fui recolher os ingredientes para a próxima etapa. Fingi não ter visto o Daniel me seguindo com os olhos. Deveria ser legal ter uma novidade no trabalho, e provavelmente ele só estava interessado por isso. Se ele soubesse a confusão e caos que eu era, sairia correndo. Talvez eu devesse me apresentar melhor. Daniel era um rapaz bonito, jovem, talvez fosse interessante. Mas eu me sentia presa a
(Lembrança)Conheci Kevin quando a louca da Sara se apaixonou pelo Jacob. Eu entrei confiante na universidade para cursar Direito, como meus pais desejaram. Me incomodava muito em ver minha amiga sofrendo de amores por um cara que ela nunca havia conversado na vida.Num festival que ocorreu no campus para arrecadação de dinheiro, os cursos elaboraram barracas de diversas coisas legais. Eu arrastei a Sara e ficamos seguindo o Jacob por todo evento. Mas acontece que ele estava com o chato do Kevin, o qual cruzou os braços assim que eu disse o primeiro "oi". Nossa, fui dormir naquele dia irritadíssima com a arrogância daquele garoto. O idiota era branquelo, magricela, tinha uma falha na sobrancelha, e enormes orelhas pontudas. Ridículo.Nem eu mesma acreditei quanto tempo perdi no meu primeiro semestre caçoando dele. Engraçado que nos víamos o tempo inteiro, na cantina
Saudades. Estava morrendo de saudades. Estava definhando em saudades.Minha vida voltou a fazer sentido quando Kevin me abraçou. Trocamos beijos, carícias íntimas, e abraços profundos. Eu sabia que estava sentindo falta de alguma coisa todo o tempo, mas como adulta responsável pelas suas escolhas, eu precisava fingir que não sabia o que era. Mas naquele momento constatei, de forma que eu não podia negar a mim mesma e a ninguém, que era ele, que eu sentia falta de nós.Durante minha adolescência não acreditava muito em romances tão duradouros, em amor de verdade. Quando terminei com Kevin, acreditei que superaria e em algum momento tudo não passaria de uma lembrança. E apesar de suportar bem, não tinha superado completamente.— Wendy... — Kevin riu nervoso tocando minha cintura com as duas mãos.Eu fingi não ter escutado e
(Lembrança)Eu havia me apaixonado pelo orelhudo irritante. Tentei odiá-lo, mas quando estava de frente para ele, meu coração desmanchava. Eu não sabia mais o que fazer para tirar as visões de nossos beijos de mentira da minha cabeça. Droga, Wendy! Com tantos homens por aí, foi querer logo esse?— Ele nunca vai olhar para mim! — Sara reclamou quando nos deparamos com os dois amigos na fila do cinema.Engoli seco querendo tirar os olhos do Kevin, mas ele estava tão bonito com o cabelo partido ao lado, e uma jaqueta jeans. O garoto adorava acessórios, e sempre estava usando alguma pulseira ou colar.— Você deveria falar com o Jacob — falei tentando não parecer embasbacada. — Ele é tão legal!— A gente nem consegue conversar! — ela suspirou. — Se ele pelo menos ele me irritasse como
(Lembrança)Eu saí com os colegas da faculdade quando finalmente chegamos ao último dia de aula do semestre. Todos estavam comemorando o fim das provas e as possíveis aprovações nas disciplinas, então resolvi me enturmar com eles e fomos todos beber. Precisava mesmo sair com outras pessoas e tentar não pensar no orelhudo metido que não deu as caras depois de eu
Acordei com o som de uma buzina, mas tomei um susto em ver que estava em um local diferente da minha casa quando consegui processar a imagem. Me sentei apressada e analisei rapidamente a cama de casal. Passei as mãos em meus cabelos enquanto observava em volta e tentava lembrar o que tinha acontecido. Eu sabia que tinha bebido, e geralmente não esquecia das coisas. Ah! Quero dizer, ah não! Espera, ele não dormiu comigo? Olhei para o outro lado da cama, vazio e sem rastros de outra pessoa além da minha bagunça. Suspirei sem saber o que sentir. Eu acordei na casa do meu ex-namorado, porque dormi depois do terceiro copo. Bonito, Wendy! Eu e Kevin nunca dormimos juntos, não de deitarmos juntos e acordarmos juntos. Era meu sonho de princesa poder acordar ao lado do meu namorado quando eu era mais nova, mas nunca tínhamos a oportunidade, até porque nossos pais sempre estavam por perto, e eram complicadas as vezes que conseguíamos fazer