Longe dali, uma jovem empregada, esforçava-se em carregar pesados baldes de água do poço. Era pequena, praticamente uma adolescente ainda, mas mesmo assim, não reclamava de seu destino, afinal, era melhor do que morrer de fome. Ergueu os olhos para o céu e viu que os raios de sol ainda nem haviam surgido no horizonte.
Era assustador trabalhar naquele horário, como se a qualquer momento, alguma criatura da noite pudesse aproveitar aqueles resquícios de escuridão para pegá-la.
Tentou conter seu medo, e continuou seu caminho em direção ao poço. Na verdade, aquele era o trabalho que mais desejava não fazer, por medo, estar naquela parte da fazenda a aterrorizava.
E todos sabiam disso, mas a tarefa continuava sendo sua.
“Rápido. Termine isso, Charlotte”, pensou consigo mesma. Amarrou a corda na alça do balde, e desceu até a água, quase no fundo do poço.
Para a sua felicidade, inicialmente nada aconteceu. Carregando os baldes na cabeça, encheu os dois primeiros potes da carroça, suspirou, sentindo dor no pescoço, e então, voltou-se ao poço, para encher o último.
Ainda com a cabeça baixa, amarrando a corda no balde, começou a ouvir o som das moedas caindo na água. Todos seus pelos se arrepiaram e suas pernas endureceram, como se pesassem toneladas. Quando finalmente sentiu que conseguia respirar, ergueu a cabeça com lentidão e então, a viu: a mulher do poço.
O corpo estava quase inteiramente submerso, mas conseguia ver suas mãos pálidas segurando a borda de pedra do poço, contando as moedas que caiam na água.
“ Uma, duas, três…”, ela dizia, baixinho.
Charlotte ao deparar-se com tal cena, não esperou para ver o que aconteceria, correu de volta para a caroça e gritou com o burro, que logo começou a correr de volta à fazenda, tão assustado quanto ela.
Quando finalmente chegou ao hall, seu coração batia tão acelerado que parecia prestes a sair pela boca. Contudo, nem teve tempo de se recuperar do susto, pois, já estava recebendo os olhares de reprovação das outras empregadas por fazer barulho. Isso porque, felizmente, não haviam visto que a moça havia deixado um dos potes vazios.
– O banho da senhora está quase pronto. – disse uma das empregadas, um pouco mais velha.
Ao ouvir isso, Charlotte balançou a cabeça concordando assustada e rapidamente, correu para o primeiro andar, prendendo os cabelos, pois sabia que a senhora detestava vê-lo soltos. Subiu as escadas, sentindo seus joelhos tremerem, e respirou fundo antes de entrar no banheiro do casal, checou a água e esperou a senhora vir, para limpar suas unhas.
Tentou manter a cabeça baixa. Afinal, não era apenas os cabelos que ela odiava, seus olhos cor de esmeralda também. Respirou fundo, colocando cuidadosamente os pés da mulher na toalha sobre suas pernas e começou a cortar e limpar suas unhas.
E tudo teria saído bem se, de repente, o lenço não tivesse se soltado, caindo sobre seus olhos, apressou-se em tentar arrumá-lo, porém viu que acidentalmente havia machucado um dos dedos da patroa. Um corte minúsculo, mas que foi o suficiente para que a mulher ficasse furiosa.
Encarou a pobre serva – olhos cheios de ódio – e sem piedade, a chutou no rosto, tão forte que o sangue escorreu de seu nariz e boca.
– Suma daqui, sua imprestável – gritou, jogando objetos na moça.
As outras empregadas ouviram a comoção e rapidamente a tiraram dali, deixando outra moça para terminar o trabalho. E assim, abruptamente, Charlotte se viu sendo jogada na rua apenas com sua pequena bolsa e lágrimas nos olhos.
Sem ter para onde voltar, e com quase dinheiro nenhum em sua posse, caminhou tristemente pela estrada de terra, sua mente divagando enquanto se imaginando morrendo de fome.
“Que morte horrível”, pensou consigo mesma, mesmo que ao seu ver, ainda era melhor que cair na prostituição.
Contudo, depois de horas caminhando em meio à poeira, de repente, viu uma carroça parada na estrada. Aproximou-se tímida e curiosa, observou as moças sentadas no feno, que pareciam esperar os cavalos serem abastecidos com a água para continuar a viagem.
– Para onde estão indo? – perguntou depois de tomar coragem.
– Para a fazenda O'Neel – explicou uma delas. – A irmã do dono vai reabrir e precisa de empregadas novas.
– Será que não tem uma vaga para mim? – Charlotte gaguejou a pergunta, seus olhos enchendo-se de esperança.
– Você foi demitida porque? – outra delas perguntou.
Era baixinha, tinha seus cabelos pretos trançados e havia algo em seus olhos que deixava a recém-chegada incomodada.
– Pode subir – disse uma voz masculina, interrompendo a conversa.
Charlotte, ao ouvir essas palavras, quase chorou sem acreditar no que estava acontecendo e seus olhos chegaram a marejar, ainda mais quando ele lhe ofereceu água e um lenço para limpar o sangue em seu rosto. Chegaram à fazenda e notou que ainda havia certo sentimento de luto no ar. Mas todos trabalhavam conversando normalmente, sem medo em seus olhos.
O que a fez perceber que talvez aquele fosse seu dia de sorte.
Uma mulher jovem as guiou até um quarto adjacente à cozinha, usado como alojamento para as empregadas. Era amplo e não cheirava a mofo como estava acostumada, mas o que realmente a impressionou, eram as pequenas camas com colchões de enchimento – não de palha.
– Troquem-se e voltem para a sala – disse a mulher, apontando os uniformes que estavam sobre as camas.
A recém-chegada balançou a cabeça, concordando e correu para fazer o que era mandado. Quando chegou à sala foram apresentados à patroa. Uma mulher que à primeira vista parecia ser severa mas que, para a sua surpresa não as maltratou, ao invés disso, explicou calmamente sobre o salário, dia de folga e alguns outros direitos que teriam. Incluídos enviar cartas para seus parentes e dormir fora da fazenda.
Ela nem sabia que isso era possível.
– Temos muito trabalho a fazer – a patroa disse por fim, e então, deu-lhes as costas, pronta para deixar a sala.
Foi quando Charlotte notou o que tanto lhe chamava a atenção: ela estava usando calças largas, não um vestido como era de costume na época.
Os últimos raios de sol sumiam no horizonte quando o caçador finalmente chegou, estava acompanhado de seu fiel escudeiro, ambos carregando malas e equipamentos pesados para a confecção das armadilhas. Eslen parou diante da casa da fazenda e observou o ambiente ao redor, estudando onde poderia fazer seu trabalho.Foi quando se deu conta dos fazendeiros que o encaravam.– Podem ir para suas casas, resolvemos daqui – ele praticamente mandou, não deixando espaço para questionamentos.E então, prontamente, começou a preparar o alicerce do que parecia ser um andaime de metal, revestido com madeira resistente. De dentro da casa, Rosely conseguia ver o quão grande a estrutura se tornava ao passo que escurecia, se assemelhando a uma fortaleza. Havia um espaço deixado no meio, onde a ovelha machucada foi presa enquanto os dois homens trabalhavam sem trocar uma única palavra. No fim, ambos sentaram-se na parte de cima, montando uma tocaia, porém, estranhamente, Eslen era o único arm*do.Ao pass
Eslen não lhe deu uma resposta mais satisfatória, permanecendo com seu sorriso de canto enigmático e no fim, todos recolheram-se para dormir depois de dar um fim adequado àquela coisa. Porém, por mais cansada que estivesse, Rosely não conseguiu adormecer, encarando o teto com seus olhos arregalados por causa de um estranho pássaro que insistia em destelhar o telhado de seu quarto. Quando conseguiu enfim dormir, já era dia. Levantou-se por volta do meio-dia e encontrou as empregadas apressadas enquanto preparavam a refeição para a patroa e os convidados. Parou na sala, com o ombro apoiado no umbral da porta e encarou Charlotte, a jovem empregada da noite anterior, gentilmente preparando a mesa. – Bom dia, senhora – ela murmurou tímida.Seguiu com os olhos a mulher que sentava-se à mesa e se apressou para lhe servir uma xícara de chá. – Bom dia! – Rosely respondeu enquanto encarava seu reflexo no líquido. – Onde estão os convidados?– Sairam cedo, mas acredito que voltarão – explic
Depois disso, uma espécie de calmaria se instalou no vilarejo. Os caçadores seguiram seu caminho, com os bolsos cheios de moedas de ouro, e os moradores tentaram retomar suas vidas também, afinal, havia muito trabalho a ser feito para reparar a destruição deixada por aquela criatura.E no fim, tirando o pássaro que insistia em destruir o telhado do casarão, Rosely conseguiu enfim, ter uma boa noite de sono.Naquela manhã, enquanto descia a escadaria de pedra, observou os trabalhadores ocupados na produção dos queijos e retirada da lã. Não era segredo para ninguém que precisava fazer uma boa venda para recuperar todo o dinheiro gasto para contratar os caçadores. Contudo, foi tirada de seus devaneios quando viu Millan se aproximando.– Estive em Dublin e aproveitei para checar o correio – ele explicou, entregando um bolo de cartas à mulher.Ela as aceitou e começou a ler o conteúdo enquanto caminhavam pela fazenda, parando a poucos metros do penhasco que dava para o oceano, sentindo o
Depois daquela conversa, alguns dias se passaram e a tão temida visita dos pais de Rosely realmente aconteceu. Na verdade, sua mãe foi a única a aparecer, acompanhada de suas damas de companhia, e a cada passo dado, desde que passou pela porta, seus olhos fitavam tudo, cheia de julgamento.Ela nunca havia gostado de interiores, logo sua reprovação era evidente.Sentou-se diante da filha, esboçando em seu rosto uma expressão irritada ao vê-la usando calças, mas tentou manter sua postura enquanto provava o chá servido pela empregada.– Pensei que a essa altura você já teria desistido da ideia estúpida de deixar seu noivo – ela disse depois de um tempo, erguendo seus olhos em direção à filha. E ao ouvir isso, o espanto no rosto de Rosely foi claro. – Eu jamais voltarei para ele! – ela exclamou firme, o rancor claro em seus olhos.– Mas, Rosely… – a mãe tentou argumentar, mas foi interrompida pela filha.– Já chega. Não vamos mais falar sobre isso – Rosely pediu num tom mais ameno, mes
Enquanto via o arroz cozinhando, com a poção que agora parecia temperos, Eleonore pensava no dia em que havia se confessado para o marido. Naquela época, havia feito uma simpatia boba para ficar com ele, submergindo um papel com seu nome no leite adocicado. E agora, estava fazendo isso novamente. Voltou sua atenção à carne de frango que estava quase pronta e lembrando das palavras da xamã, pegou algumas vagens, retirou-as da casca e levou cada uma delas à boca, deixando sua saliva antes de colocá-las dentro da panela, desligando o fogo depois de um tempo.Com o jantar pronto, se banhou e colocou o vestido que havia ganhado, soltou seus cabelos, que escorreram por seus ombros em forma de cascatas ruivas e sorriu satisfeita com o reflexo que via de si mesma.Ouviu um barulho na porta e sentiu seu coração acelerar ao olhar naquela direção e se deparar com o marido irrompendo por ela, estava um tanto inquieto e parecia ter bebido bastante. Ao vê-la, esboçou uma expressão apaixonada, ra
Rosely conseguiu respirar aliviada quando percebeu que seu “casal favorito” estava bem novamente e, inclusive, pareciam ainda mais unidos. Tendo uma remeça de queijo e lã para ser entregue em Dublin, iniciaram a viagem cedo, chegando à cidade ainda com o sol nascendo, e enquanto Millan fazia o serviço, Rosely aproveitou para caminhar um pouco pela cidade. Foi quando seus olhos se focaram numa livraria e, instintivamente, entrou no local, procurando por um livro sobre folclore nas prateleiras. Saiu de lá satisfeita e sentou num café para ler seu novo livro.“Isso, sim, combina com a senhorita!”, uma voz masculina e familiar disse, soando a alguns centímetros de distância. E ao ouvir isso, ela ergueu a cabeça, se deparand
Depois daqueles estranhos acontecimentos, Rosely viu-se sofrendo com uma constante frieza que, não importava o quão quentes fossem suas roupas, nunca passava, deixando sua pele constantemente fria como a de um cadáv*r. E para piorar, o inverno estava se aproximando e os dias ficavam cada vez mais frios e sombrios.Naquela manhã, alguns poucos raios solares irrompiam por entre as nuvens, iluminando a sala através da janela. Vendo isso, Rosely recostou seu corpo contra o vidro aquecido, fechando os olhos enquanto tentava absorver um pouco daquele calor.– Senhora, seu seafood chowder está pronto.A voz de Charlotte soou às suas costas e a mulher virou o pescoço para olhá-la por sobre o ombro, encontrando a moça diante da mesa de jantar, arruma
– O que você está caçando? – Rosely perguntou enquanto se afastavam da caverna a marcha lenta.– Um trol, muito provavelmente – Eslen explicou dando uma olhada por sobre o ombro, para garantir que não seriam surpreendidos. – Esses diabinhos estão atacando o gado de Johan.E como Rosely apenas ouvia, ele continuou:– Você o conhece, é aquele idiota que quase foi morto por um chupa-cabra.– Não fala assim, eu achei que ele morreria – Rosely murmurou, balançando a cabeça negativamente. – Esses goblins são da mesma família dos trasgos?– Algo assim… – Eslen resmungou, dando de ombros, porém, arqueou uma sobrancelha enquanto virava-se para olhá-la. – Mas, me surpreende que eles te deixaram vê-los.Último capítulo