— Lívia... — sua voz surgiu para mim como em um sonho
A dormência já tomava todo meu corpo. Meus sentidos já estavam deturpados e eu já tinha dificuldade em me lembrar como se respira. Seus sussurros com meu nome estavam distantes e mesmo que eu quisesse muito abrir os olhos era extremamente difícil.
— Esse é seu nome, certo? — ele insistia e o senti mais perto — Lívia. Seu irmãozinho corajoso me disse... — senti seus dedos tocarem os meus sob a água — Ele está bem, a propósito! Com seus pais... — ouvir aquilo fez meu coração bombear novamente e com força. Alguém me ouviu — Ele me fez prometer que levaria você para ele. Sã e salva... — abri os olhos e encontrei suas íris azuis me encarando cobertas de determinação — Promessas são importantes pra ele. Então você vai ter que me ajudar. Não vamos decepcionar o garoto. Certo?
Concordei com a cabeça e ele sorriu confiante. Mergulhou duas vezes ao que parecia para analisar minha situação. Eu já estava sem muito espaço para respirar. Mas estranhamente sua presença me trazia paz.
— Certo Lívia eis o que vamos fazer... — explica rapidamente, mas com tranquilidade — Vamos mergulhar. Eu vou soltar sua perna e você se agarra em mim pra sairmos daqui. OK?
Só consegui balançar a cabeça quando a água engoliu por completo. Comecei a me debater desesperada, mas ele me abraçou e me segurou para que me acalmasse. Seu corpo junto ao meu foi suficiente para que recobrasse a razão. Ele me soltou lentamente e se abaixou para soltar as rochas. Segurou minha coxa com uma das mãos e com a outra empurrou forte os pedregulhos. Precisou fazer isso três vezes até finalmente me soltar. O vermelho do meu sangue pintou em linhas o esverdeado da água. Meus pulmões já imploravam por ar quando ele agarrou firmemente minha cintura e me puxou dali. Me guiou até a fenda que também já estava quase coberta por água e me suspendeu para atravessá-la.
Minha perna começou a arder e queimar. Os cortes profundos ainda minavam sangue cobrindo partes da tatuagem de tigre que a ocupava quase que por completo. Era como se o animal chorasse gotas de escarlate. Do outro lado da fenda havia mais água. Onde antes eram pedras e areia, agora o mar beijava. O céu, antes azul claríssimo, agora assumia um tom alaranjado e exibia suas primeiras estrelas. As mãos do meu anjo salvador voltaram a envolver meu corpo e o deixei me guiar até contornarmos as rochas. As ondas pesadas nos chocavam contra o paredão, mas ele me mantinha firme em seus braços e nos arrastava com cuidado.
Ao atravessarmos haviam outros bombeiros nos aguardando. Ele me entregou para uma moça que me estendeu a mão e me tirou da água com seu apoio. Senti meu corpo tremer com o toque de suas mãos em meus quadris. O ouvi balbuciar algo como "perdão" ou algo do tipo quando os segurou para me suspender. A garota me amparou pela cintura e me manteve de pé com o auxílio de outro rapaz. Tentei apoiar a perna ferida no chão mas doía muito.
Meu anjo me pegou nos braços ao sair da água e me levou até uma van de paramédicos que nos aguardava. Walter e minha mãe seguravam as mãos de Derek que sorriu ao me ver. Estava com o rosto mais corado envolto em cobertores. Suspirei de alívio e ouvi meu anjo esboçar um sorriso satisfeito. Ele me colocou gentilmente em uma maca aos cuidados dos médicos e voltou a atenção a Walter que veio em nosso encontro.
— Como ela está? — meu padrasto questionou preocupado e me analisou com atenção
— Ela está com a perna ferida. Não sabemos ao certo a gravidade. Os médicos vão levá-la ao hospital para fazer alguns exames.
— Eu estou bem! — tentei parecer segura embora estivesse tremendo de frio
Meu salvador se apressou em apanhar cobertores e os jogar sobre mim. Sorri em agradecimento e recebi o sorriso mais lindo que já vi em resposta. Só então parei para contemplar a beleza estonteante do meu anjo. Seus olhos azuis como as águas de um mar calmo. Rosto branco coberto por um contraste perfeito de sardas vermelhas. Dentes tão brancos e perfeitamente alinhados. O sorriso contornado por covinhas charmosas. Barba bem aparada e cabelos castanhos molhados caídos pouco acima dos olhos. Uma perfeita visão do paraíso diante dos meus olhos. Por uma fração de segundo nossos olhares permaneceram atraídos como imãs. Senti uma corrente elétrica percorrer meu corpo.
Amaldiçoei o médico que interrompeu nosso momento esfregando um líquido gelado e ardido na minha perna. Soltei um gemido agudo e um espasmo de dor que o fez se afastar. Encarei o chão constrangida e suspirei ao sentir a droga do líquido tocar minha pele rasgada novamente. Maldito seja.
— Aconselho levar o garoto também. Ele teve princípio de hipotermia e seria bom examiná-lo melhor. — se dirigiu a Walter apesar de manter os olhos em mim
— Claro. — Walter tocou meu ombro e me lançou seu olhar fraternal. Tudo o que eu precisava naquele momento — Eu não sei como agradecer a vocês... — suspirou emotivo
Walter sempre foi um homem sensível. Sem qualquer pudor de demonstrar suas emoções. Carinhoso e atencioso ao extremo. Eu sentia pena por ele ter que se relacionar com Mônica, a quem sou obrigada a chamar de mãe. Ela o trata como lixo às vezes.
— Fizemos apenas nosso trabalho. — quanta modéstia a do meu anjo — Espero que fiquem bem logo. — sorriu para mim mais uma vez antes de se retirar
Tocou o ombro do meu irmão que o olhou deslumbrado. Pelo jeito ninguém escapa de seus encantos. Até Mônica suspirou ao observá-lo. Um breve resquício de humanidade até virar-se para mim. Vejo o fogo do inferno tomar seus olhos. Suspiro pesadamente e me preparo para o festival de insultos que me aguarda.
— Você tem merda na cabeça garota? Queria arrastar seu irmão pra morrer? Se quisesse se matar fizesse sozinha.
Seus gritos escandalosos chamaram a atenção de todos. Não bastasse a tensão das últimas horas e a culpa me corroendo. Ainda tive que aguentar a humilhação que ela tinha prazer em me causar. É bem provável que eu vá para o inferno por isso. Mas eu a odeio com todas as minhas forças.
— Você não passa de uma vadiazinha irresponsável.
— Mônica, por favor. — Walter cometeu o erro de intervir
— Calado seu banana! A garota quase mata seu filho! E você ainda tem a pachorra de defender? Por isso ela faz o que faz!
— Ela também se acidentou. O garoto disse que não foi culpa dela...
— Ele vai dizer que foi, seu idiota? Ela faz lavagem em vocês dois! Essa vagabunda! — o olhar dela deixava claro que preferia que eu tivesse morrido naquela gruta. Me agarrou pelo braço e cuspiu as palavras com todo ódio e desprezo de sempre — Se chegar perto dele de novo eu...
Diferente de todas as vezes em que brigamos eu não tive coragem de reagir. Dessa vez eu senti que merecia cada um daqueles insultos. E mais. Olhei para Derek que assistia a cena assustado. Para Walter que tentava contê-la e levou um tapa em resposta. Vi nos olhos dela uma mãe brigando por seu filho e me lembrei da época em que desejava isso sobre mim. Esse instinto protetor que nunca tive. A apatia tomou conta de mim e as palavras sequer chegaram a me ferir. Não senti nada pela mulher esbravejando na minha frente. Era uma desconhecida brigando pelo filho que eu quase matei. Por ele eu senti a culpa e a dor. Eram por ele as lágrimas rolando em meu rosto.
Seu discurso de ódio foi bruscamente interrompido por uma mão firme puxando seus braços para longe do meu corpo que ela sacudia com fúria. Não era Walter. O mesmo acompanhava a cena sem reação. Assim como eu e a própria Mônica. Meu anjo segurava suas mãos de forma delicada porém decidida. A afastou de mim e ela sequer ofereceu resistência. Atônita por sua intervenção.
— Minha senhora eu entendo que esteja sob estresse intenso dadas as circunstâncias. — Soltou calmamente seus braços enquanto falava com a doçura e obstinação que lhe pareciam características — Mas está falando com uma vítima de acidente. Não sabemos a gravidade de seus traumas e ferimentos. Peço que se controle por favor.
— Ela é minha filha... — ironicamente se lembrou desse fato
— Mais um motivo para ter um pouco mais de tato. Não sabe o quanto suas atitudes podem afetá-la nesse momento. Seu bem estar, tanto quanto do seu filho são prioridade. — seu olhar se voltou para mim e senti novamente aquele calor de acolhida me preencher — Além de que. Sua filha agiu como uma heroína naquela gruta. Não fosse por sua bravura seu filho não estaria aqui agora.
— Se não fosse por ela, ele não estaria em perigo para começar...
— Não há culpados em acidentes, senhora. São fatalidades..— tocou seu ombro de forma gentil — Porque não vai para casa descansar e permite que seu marido acompanhe seus filhos até o hospital? O pior já passou e relaxar seria o ideal.
Antes que Mônica pudesse protestar, Walter tomou as rédeas e a guiou até seu carro. A ajeitou no banco do motorista e lhe entregou as chaves. Mesmo contra a vontade, ela se rendeu ao olhar intimidador do meu salvador que fez questão de permanecer onde estava até Walter retornar. Ajudou os paramédicos a nos acomodar e só então se despediu com um toque de mãos a Derek e um sorriso gentil para mim. Apesar do alívio por esse dia terrível estar prestes a terminar, a solidão voltou a me invadir ao imaginar que não o veria de novo.
A sorte não me abandonou desde que meu anjo me resgatou. Apesar das escoriações e cortes um pouco profundos minha perna não quebrou. Doía um pouco mas nada insuportável. Derek também não teve complicações e pôde voltar para casa. Walter fez questão de me acompanhar até meu apartamento. Me ajudou a subir as escadas, pediu comida e aguardou que eu tomasse um banho para enfim poder relaxar.— Como se sente? — questionou ao me entregar uma xícara de cháMe ajudou a sentar e ajeitou uma almofada sob minha perna. O cuidado que Walter teve comigo desde que se casou com Mônica não difere em nada do que tem com Derek. Desde que me mudei daquele inferno ele sempre me visita. Trás minhas comidas favoritas e conversamos muito. Na verdade, nossa relação melhorou longe da influência da megera. Ele me incentivou a fazer terapia e confesso que foi a melhor decisão que tomei. Ainda tenho meus momentos, mas têm sido mais fácil lidar com meus demônios.<
HarveyMe lembro exatamente quando decidi me tornar bombeiro. Estava viajando com meus pais de férias e presenciei um acidente. Um soterramento. Me lembro perfeitamente de pessoas em desespero, choro e gritaria. Meus pais tentaram me proteger das cenas fortes. Mas no auge dos meus doze anos eu era bem curioso e destemido. Não me importei com as advertências e fiquei ali, assistindo a tudo.Presenciei a chegada do caminhão dos bombeiros e o alívio dos ali presentes. Todos deram espaço para que os homens uniformizados adentrassem o prédio em escombros e realizassem seu trabalho. A cada vítima retirada com vida uma salva de palmas e comemoração. Os parentes trocaram o choro de preocupação por lágrimas de alegria. Eles não descansaram enquanto não retiraram o último sobrevivente. Uma senhora pres
Ao finalizar a ligação percebi uma série de notificações no I*******m. Um garoto chamado Derek Diaz curtiu praticamente todas as minhas postagens e me deixou algumas mensagens."Oi. Eu sou o garoto que você salvou hoje. Me chamo Derek. Tenho dez anos.""Eu só queria agradecer por não deixar minha irmã morrer. Ela é muito importante pra mim."Sorri ao ler aquilo. Nunca tive a sensação de ter um irmão. Mas imagino como deve ser ótimo ter alguém para dividir bons momentos. A preocupação de um com o outro naquele momento foi algo marcante para mim. A garota colocou o irmão acima da própria vida e ele não exitou em pedir que eu a ajudasse antes de tirá-lo de lá."Cara você é incrível. Quero muito me tornar bombeiro quando crescer."Me lembrei de mim mesmo quando me interessei pela profi
LiviaAcordei com o toque insistente da campainha. Demorou alguns segundos até minha alma retornar ao corpo. Alcancei os chinelos ao pé da cama e amarrei meus cabelos em coque. Me arrastei em direção a sala e senti umas fisgadas leves na perna machucada. Encarei o relógio e praguejei em sussurros ao ser inconveniente que decidiu me acordar às seis da manhã de um domingo. Se fossem Walter e Derek para a tal visita ao quartel eu não hesitaria em dar com a porta na cara deles.Ao abrir me deparei com Sabrina e Devon que me encaravam em um misto de preocupação e descrença. Os dois parados na porta eram meus colegas de trabalho e melhores amigos. Ambos faziam parte da minha banda. Devon, além disso trabalhava na minha pequena lojinha de artigos para parentes. Já Sabrina
— Sabrina! Que surpresa... Surpresa! — ele me encarou confuso e encabulado — Devon. — cumprimentou o rapaz que apesar do olhar devorador sobre ele manteve a compostura — Nós combinamos de ir até o quartel hoje, certo? — me indagou— Não vai dizer que esqueceu, Liv? — Derek adentrou o cômodo e parou na minha frente— Cumprimente as pessoas moleque. Tua mãe não te deu educação não? — cruzei os braços e o repreendi— Oi Sabrina. Oi Devon. — balançou as mãos para os dois que riram disfarçadamente — Você prometeu! — voltou para mim com o semblante manhoso— E eu vou cumprir. Sabrina e Devon só vieram saber como eu estou...— Então vai se trocar. Ainda está de pijamas e temos que fazer biscoitos.— E vamos sujar a minha cozinha?— A mamãe disse que não queria confusão na cozinha dela por bobagem.Desviei o olhar para Walter que suspi
Chegamos ao quartel por volta das onze da manhã. Por ser do outro lado da cidade e Walter dirigir como uma lesma. Conversamos pouco, com exceção de Derek que falava animado algo sobre técnicas de salvamento e um curso mirim de primeiros socorros oferecido no quartel.O garoto olhava encantado para as paredes do lugar como se fossem feitas de ouro. Sua admiração era tanta que ele mal conseguia falar. Nos aproximamos do balcão de informações e questionamos sobre visitas. A animação do meu irmãozinho foi por água abaixo quando ele ouviu que as visitas deveriam ser previamente agendadas.— Moça.... — encarei a loira de olhos castanhos na intenção de comovê-la com meu melhor sorriso — Eu entendo que existam regras. Mas meu irmão e eu sofremos um acidente ontem e o que impediu ele de viver um trauma terrível foi o apago instantâneo aos bombeiros que ele desenvolveu e em especial ao que nos salvou. Ele passou a manhã fazendo bis
Um detalhe sobre mim é que, tirando aquele momento e o que os precederam, não sou de me envergonhar com facilidade. Falo por impulso e as vezes solto frases constrangedoras completamente no automático. Ouvi o risinho satisfeito da moça acompanhar a risada anasalada do rapaz. Vi os braços de Harvey tensionados a minha frente e só então percebi que o chamei de gatinho. Eu não menti. Mas com certeza foi uma fala um tanto inoportuna. Não tanto quanto seu colega tentar me cantar, mas foi.- Aqui. - alcancei o bloquinho e retirei um cartão com o nome de Erick, meu tatuador. Além de grande amigo e dono do Starstruck - Ele é ótimo. Garanto que vai gostar. - o entreguei o cartão- Valeu. - ele olhou para Harvey e riu insinuativo - Donna, vamos mostrar o helicóptero pro garoto... - puxou a garota pelo braço. Ela também sorriu para o homem ao meu lado ainda imóvel, com minha bolsa nos braços- Obrigada. - fechei a bolsa e a peguei de vol
HarveyGosto de manter certa rotina embora meu trabalho não seja o mais estável. Plantões não programados, emergências de última hora, mudanças constantes de escalas. Mas minhas folgas eu gosto de programar. Já me acostumei a acordar cedo e levar Prince para passear no parque. Ele adora correr na grama e nadar no lago. Como passa muito tempo sozinho e longe de mim. Acho importante manter essa tradição.Sempre que pode, Donna vai comigo e leva as crianças. Prince os ama e os três se divertem muito. Ela faz um ótimo trabalho como mãe. Diana e Arthur são crianças adoráveis e muito educadas. Gosto de passar tempo com eles. Ouvir os fatos curiosos que a garota tem a contar que eu não faço ideia de como ela descobriu isso. Como o tempo de gestação de um elefante ou quantas estrelas tem a constelação de Orion. A menina é a própria Wikipédia.Já Arthur, como um bebê de três anos não faz tantas perguntas ou tem tantas informações