Lívia:
As pessoas têm a estranha mania de fazer promessas quando estão à beira da morte. É engraçado que são promessas tão estúpidas feitas sem a menor intenção de cumprir. E não fariam a menor diferença ao redor. "Vou parar de beber" "Vou levar uma vida mais saudável" "Vou ser mais grato". Salvo algumas excessões. Não muda em nada se cumprir ou não. São coisas que faria, se quisesse e não precisa estar cara a cara com a morte para pensar nisso. É só fazer.
Eu pensava assim. Até estar presa em uma gruta, com a maré alta prestes a me engolir. E meu irmãozinho nos braços. Até ver o pavor em seus olhos e não poder fazer nada a não ser implorar a seja lá o que for que o poupe. Que envie um milagre e o deixe vivo. E prometer. Sim! Prometer ao vento ou ao plano maior que se ele sair dessa. E caso eu tiver a mesma sorte que eu me esforçaria para ser uma irmã melhor.
Que não seria tão desprezível e tentaria parar de projetar todas as minhas frustrações nele e no seu pai. Afinal eu sempre soube que Walter nunca teve culpa por meu pai ser um otário capaz de abandonar a própria filha. Ou pela minha mãe ser uma narcisista cruel que descontava todo desprezo por ele em mim.
Na verdade Walter foi mais paternal para mim que qualquer dos dois poderia ser. Mesmo eu me esforçando para levantar todas as barreiras possíveis ele fez questão de derruba-las. As que não conseguia, contornava. E então Derek nasceu. Seu comportamento não mudou. Seguiu sendo doce e acessível. Mas eu senti inveja do meu irmão. Inveja do carinho que minha mãe dedicava a ele. Da família completa, estável e amorosa que eu nunca tive. Ele tinha avós que davam doces, presentes e mimos e eu ficava com as sobras. Ele tinha um pai que o amava e desejava. Eu nunca vi o rosto do meu. Ele tinha uma mãe, carinho, afago. Pra mim sobravam os gritos, desprezo e a questão de ressaltar todos os dias que fui o maior erro da sua vida e só lhe causei decepções.
Ele não tinha culpa, eu sei. Sempre foi um garotinho doce que queria a atenção da irmã mais velha. E eu juro, eu me esforcei pra dar isso a ele. Eu não queria ter esse sentimento cravado no meu peito. Mas eu não consegui. E graças a mim ele pode morrer agora. É desesperador segurar seu corpinho de dez anos gélido nos meus braços. Cobertos pela água fria e sentir seus batimentos diminuírem a medida que a água nos engole pouco a pouco.
- Mana... - sua voz trêmula e sussurrada atravessou meu coração como navalhas afiadas - Nós vamos morrer?
- Não... - hesitei tentando controlar a voz embargada - Claro que não! Seu pai deve trazer ajuda logo, lembra? Ele prometeu. E você sabe...
- Walter Días nunca quebra uma promessa... - sorri fraco e me aperta em seu abraço
Senti seu corpinho frágil tremer e ouvi o bater dos seus dentes. A hipotermia já o estava alcançando. Sua pele caramelizada assumiu um tom roxo. Por que tinha que vir atrás de mim garoto? Por que não ficou com seus pais? Foi só mais uma briga como tantas outras. Sua mãe jogando na minha cara o quanto sou inútil. E ela não errou, certo? Se eu não tivesse saído feito uma louca atrás de um refúgio. Se tivesse sorrido e fingido demência ou apenas tivesse voltado para casa. Você não teria sentido a necessidade de me consolar. Não teria vindo atrás de mim, mesmo eu gritando para me deixar em paz. Não me abraçaria ou diria que me ama, que a mãe está errada e eu não sou uma inútil. Não teria me seguido até um lugar perigoso.
Não teria me visto cair e prender a perna nessa droga de rocha. Nem pularia para tentar me ajudar. Sequer ficaria preso quando a maré começou a subir e ficou fundo demais pra você voltar. Não fosse por mim, você estaria brincando com seu pai na beira da praia, jogando discos para o Benji e não aqui flertando com a morte. Eu sinto muito Derek por não ser a irmã incrível que você criou nessa cabecinha doce. Se sairmos dessa eu juro que vou me esforçar pra ser.
- Alguém por favor! Me ajuda... - supliquei já sem esperanças
Se me dissessem que ele era um anjo eu acreditaria sem hesitar. Surgiu do nada em um mergulho e já estava próximo a nós. Se ele veio de onde nós viemos ou de outro lugar eu honestamente não sei. Só me lembro de ouvir sua voz soar como um sopro de calmaria sobre a minha alma quase congelada.
- Oi. Como vocês estão? - seu olhar oscilava entre mim e Derek agarrado ao meu pescoço
A água já alcançava meu queixo e eu me esforçava em mantê-lo suspenso ao máximo para que não se afogasse.
- Tira ele daqui. Por favor salva ele! - implorei para o rapaz que mantinha os olhos seremos fixos aos meus
- Eu vou tirar os dois! - garantiu ao se aproximar com cautela
- Ele primeiro! - tirei os braços de Derek do meu pescoço e o entreguei a ele
O homem vestido uma roupa de mergulho segurou meu irmão nos braços e o carregou até uma pequena bóia que eu nem vi que estava ali até o momento. Derek mantinha os olhos fixos em mim e mesmo sem forças sussurrou algo ao rapaz. Eu sei que foi um alerta sobre minha perna presa nas rochas pois ele voltou sua atenção a mim com um olhar preocupado embora ainda reconfortante.
- Eu volto pra te buscar. - esboçou um sorriso antes de empurrar meu irmão pela fenda estreita da gruta
Os minutos que se passaram desde que os dois desapareceram foram de uma lentidão absurda. A água já cobria minha boca e eu tentava manter o rosto o mais elevado possível. Minha perna latejava em uma dormência irritante. Se meus esforços para me soltar não a quebraram foi por puro milagre. Milagre, jamais fui uma pessoa crente em qualquer divindade ou força maior. Mas dizem que a fé aparece em momentos de desespero. E aquela altura eu precisava me apegar a qualquer coisa. Me apeguei a ele. E sua promessa de que voltaria para me buscar.
— Lívia... — sua voz surgiu para mim como em um sonhoA dormência já tomava todo meu corpo. Meus sentidos já estavam deturpados e eu já tinha dificuldade em me lembrar como se respira. Seus sussurros com meu nome estavam distantes e mesmo que eu quisesse muito abrir os olhos era extremamente difícil.— Esse é seu nome, certo? — ele insistia e o senti mais perto — Lívia. Seu irmãozinho corajoso me disse... — senti seus dedos tocarem os meus sob a água — Ele está bem, a propósito! Com seus pais... — ouvir aquilo fez meu coração bombear novamente e com força. Alguém me ouviu — Ele me fez prometer que levaria você para ele. Sã e salva... — abri os olhos e encontrei suas íris azuis me encarando cobertas de determi
A sorte não me abandonou desde que meu anjo me resgatou. Apesar das escoriações e cortes um pouco profundos minha perna não quebrou. Doía um pouco mas nada insuportável. Derek também não teve complicações e pôde voltar para casa. Walter fez questão de me acompanhar até meu apartamento. Me ajudou a subir as escadas, pediu comida e aguardou que eu tomasse um banho para enfim poder relaxar.— Como se sente? — questionou ao me entregar uma xícara de cháMe ajudou a sentar e ajeitou uma almofada sob minha perna. O cuidado que Walter teve comigo desde que se casou com Mônica não difere em nada do que tem com Derek. Desde que me mudei daquele inferno ele sempre me visita. Trás minhas comidas favoritas e conversamos muito. Na verdade, nossa relação melhorou longe da influência da megera. Ele me incentivou a fazer terapia e confesso que foi a melhor decisão que tomei. Ainda tenho meus momentos, mas têm sido mais fácil lidar com meus demônios.<
HarveyMe lembro exatamente quando decidi me tornar bombeiro. Estava viajando com meus pais de férias e presenciei um acidente. Um soterramento. Me lembro perfeitamente de pessoas em desespero, choro e gritaria. Meus pais tentaram me proteger das cenas fortes. Mas no auge dos meus doze anos eu era bem curioso e destemido. Não me importei com as advertências e fiquei ali, assistindo a tudo.Presenciei a chegada do caminhão dos bombeiros e o alívio dos ali presentes. Todos deram espaço para que os homens uniformizados adentrassem o prédio em escombros e realizassem seu trabalho. A cada vítima retirada com vida uma salva de palmas e comemoração. Os parentes trocaram o choro de preocupação por lágrimas de alegria. Eles não descansaram enquanto não retiraram o último sobrevivente. Uma senhora pres
Ao finalizar a ligação percebi uma série de notificações no I*******m. Um garoto chamado Derek Diaz curtiu praticamente todas as minhas postagens e me deixou algumas mensagens."Oi. Eu sou o garoto que você salvou hoje. Me chamo Derek. Tenho dez anos.""Eu só queria agradecer por não deixar minha irmã morrer. Ela é muito importante pra mim."Sorri ao ler aquilo. Nunca tive a sensação de ter um irmão. Mas imagino como deve ser ótimo ter alguém para dividir bons momentos. A preocupação de um com o outro naquele momento foi algo marcante para mim. A garota colocou o irmão acima da própria vida e ele não exitou em pedir que eu a ajudasse antes de tirá-lo de lá."Cara você é incrível. Quero muito me tornar bombeiro quando crescer."Me lembrei de mim mesmo quando me interessei pela profi
LiviaAcordei com o toque insistente da campainha. Demorou alguns segundos até minha alma retornar ao corpo. Alcancei os chinelos ao pé da cama e amarrei meus cabelos em coque. Me arrastei em direção a sala e senti umas fisgadas leves na perna machucada. Encarei o relógio e praguejei em sussurros ao ser inconveniente que decidiu me acordar às seis da manhã de um domingo. Se fossem Walter e Derek para a tal visita ao quartel eu não hesitaria em dar com a porta na cara deles.Ao abrir me deparei com Sabrina e Devon que me encaravam em um misto de preocupação e descrença. Os dois parados na porta eram meus colegas de trabalho e melhores amigos. Ambos faziam parte da minha banda. Devon, além disso trabalhava na minha pequena lojinha de artigos para parentes. Já Sabrina
— Sabrina! Que surpresa... Surpresa! — ele me encarou confuso e encabulado — Devon. — cumprimentou o rapaz que apesar do olhar devorador sobre ele manteve a compostura — Nós combinamos de ir até o quartel hoje, certo? — me indagou— Não vai dizer que esqueceu, Liv? — Derek adentrou o cômodo e parou na minha frente— Cumprimente as pessoas moleque. Tua mãe não te deu educação não? — cruzei os braços e o repreendi— Oi Sabrina. Oi Devon. — balançou as mãos para os dois que riram disfarçadamente — Você prometeu! — voltou para mim com o semblante manhoso— E eu vou cumprir. Sabrina e Devon só vieram saber como eu estou...— Então vai se trocar. Ainda está de pijamas e temos que fazer biscoitos.— E vamos sujar a minha cozinha?— A mamãe disse que não queria confusão na cozinha dela por bobagem.Desviei o olhar para Walter que suspi
Chegamos ao quartel por volta das onze da manhã. Por ser do outro lado da cidade e Walter dirigir como uma lesma. Conversamos pouco, com exceção de Derek que falava animado algo sobre técnicas de salvamento e um curso mirim de primeiros socorros oferecido no quartel.O garoto olhava encantado para as paredes do lugar como se fossem feitas de ouro. Sua admiração era tanta que ele mal conseguia falar. Nos aproximamos do balcão de informações e questionamos sobre visitas. A animação do meu irmãozinho foi por água abaixo quando ele ouviu que as visitas deveriam ser previamente agendadas.— Moça.... — encarei a loira de olhos castanhos na intenção de comovê-la com meu melhor sorriso — Eu entendo que existam regras. Mas meu irmão e eu sofremos um acidente ontem e o que impediu ele de viver um trauma terrível foi o apago instantâneo aos bombeiros que ele desenvolveu e em especial ao que nos salvou. Ele passou a manhã fazendo bis
Um detalhe sobre mim é que, tirando aquele momento e o que os precederam, não sou de me envergonhar com facilidade. Falo por impulso e as vezes solto frases constrangedoras completamente no automático. Ouvi o risinho satisfeito da moça acompanhar a risada anasalada do rapaz. Vi os braços de Harvey tensionados a minha frente e só então percebi que o chamei de gatinho. Eu não menti. Mas com certeza foi uma fala um tanto inoportuna. Não tanto quanto seu colega tentar me cantar, mas foi.- Aqui. - alcancei o bloquinho e retirei um cartão com o nome de Erick, meu tatuador. Além de grande amigo e dono do Starstruck - Ele é ótimo. Garanto que vai gostar. - o entreguei o cartão- Valeu. - ele olhou para Harvey e riu insinuativo - Donna, vamos mostrar o helicóptero pro garoto... - puxou a garota pelo braço. Ela também sorriu para o homem ao meu lado ainda imóvel, com minha bolsa nos braços- Obrigada. - fechei a bolsa e a peguei de vol