Ethan corre pela floresta, aos tropeços. Os galhos das árvores e arbustos batem em seu rosto e seus braços, mas ele não sente o ardor nem o sangue brotando dos cortes. Está ocupado demais tentando encontrar algum barranco ou tronco de árvore largo o suficiente, onde possa se esconder dos homens que o perseguem. Quando enfim estiver seguro e a salvo, poderá se preocupar em curar seus machucados, mas agora precisa apenas correr o mais rápido que consegue.
Ele achava que a época da caça às bruxas já havia chegado ao fim, só que pelo jeito estava enganado. Bem, já tinha vivido o suficiente para saber que a humanidade nunca havia parado de perseguir aqueles que eram diferentes. Não interessa que Ethan só use seus poderes para o bem, mas sim que é capaz de fazer coisas que os outros não conseguem explicar nem entender.
De repente ele sente alguém segurando seu braço com firmeza. Ethan se vira em um movimento brusco, tentando se desvencilhar ao mesmo tempo em que se prepara para a luta, até que percebe a quem pertence aquele braço.
— Anthony? O que você está fazendo aqui? – pergunta, surpreso.
— Vi os homens se organizando na vila e vim te ajudar. – responde o rapaz, antes de segurar sua mão e começar a guia-lo entre as árvores. – Rápido, venha comigo! Eu sei que tem um velho celeiro abandonado aqui perto, onde podemos nos esconder com segurança.
Ethan apenas o segue, sem questionar como Anthony pode saber disso. Ele havia lhe contado que nasceu e cresceu naquela vila, que passou a infância inteira brincando no meio da floresta, rodeado pelas árvores, portanto a conhece tão bem quanto à palma da própria mão.
Logo os dois chegam a um galpão caindo aos pedaços. A tranca da porta ainda está surpreendentemente conservada, então eles entram rapidamente e descem a trava de madeira, enquanto escutam os gritos e passos apressados dos homens, cada vez mais próximos. O celeiro está cheio de pilhas de fardos velhos e mofados de feno, espalhados por todos os cantos. Os dois se agacham atrás de uma delas, absolutamente quietos.
Ethan não é do tipo de homem que costuma sentir medo e sempre enfrentou as dificuldades da vida de cabeça erguida, mas nesse momento sente seus músculos tremendo e as palmas das mãos encharcadas de suor. Só que não é por si mesmo que Ethan teme, e sim por Anthony. Se o descobrirem aqui, o ajudando a se esconder, ele também estará em maus lençóis.
— Tony. – chama, apenas em um sussurro, com medo de ser ouvido do lado de fora. – Se esses homens conseguirem invadir o celeiro, você precisa dar um jeito de escapar daqui sem ser visto. Já há boatos correndo na vila, dizendo que eu seduzi um rapaz de boa família. Se descobrirem sobre nós dois, sua vida estará correndo tanto risco quanto a minha e...
Ele se interrompe quando Anthony segura seu braço, erguendo o dedo indicador da outra mão até os lábios.
— Sssshhhh! Fique em silêncio. – sussurra, tão baixo que quase não é possível ouvi-lo. – E nem pense em me pedir para fazer algo tão absurdo. Não vou deixa-lo sozinho aqui, a mercê desses homens, de jeito nenhum.
De repente gritos explodem do lado de fora e Ethan não consegue evitar um sobressalto. Anthony envolve seu corpo com os braços e o puxa para perto. Com a cabeça encostada no peito do rapaz, ele pode ouvir o coração dele batendo tão depressa quanto o seu. Os dois ficam ali, abraçados e imóveis, ouvindo as vozes dos homens que tentam arrombar a porta do galpão.
— Essa tranca não vai ceder de jeito nenhum!
— Será que nós não conseguiríamos entrar por uma das janelas?
— Não, elas são muito altas. Precisaríamos de uma escada.
— Nós nem sequer sabemos se ele está mesmo aí dentro!
— Para onde mais o feiticeiro poderia ter ido? Não há mais nenhum outro lugar onde possa ter se escondido por aqui.
— Talvez ele tenha usado sua magia negra para se tornar invisível aos nossos olhos.
Ethan balança a cabeça. Esses homens não fazem ideia de que não ele possui esse tipo de poder. Se possuísse, não precisaria ter fugido pela floresta e se escondido ali.
Não, fora o fato de manter a mesma aparência desde os vinte e poucos anos e já ter vivido por mais de dois séculos, o único poder que possuía era o de curar as pessoas. Cicatrizar cortes e feridas de imediato, soldar ossos quebrados, fazer a temperatura de uma pessoa febril se normalizar. Também sabia quais ingredientes misturar para fazer poções capazes de combater infecções ou amenizar dores. Por isso trabalhava como assistente do doutor Harris, que conhecia suas habilidades e acreditava no seu caráter na bondade do seu coração, ainda que tivesse poderes que a humanidade não era capaz de compreender.
E foi durante um dos atendimentos feitos ao lado de Jason que conheceu Anthony – os Millers chamaram o médico à sua residência para cuidar do filho mais velho, que havia se machucado ao cair da escadaria que levava ao segundo andar da casa. O doutor Harris disse à família que o rapaz tinha sofrido apenas uma torção e recomendou um breve repouso de dois dias, mas na verdade o tornozelo de Anthony estava quebrado e em segredo Ethan usou sua magia para soldar a fratura.
Ele não costumava se envolver com mortais. Sabia que isso era muito arriscado e raramente acabava bem, então preferia se relacionar com aqueles que também haviam ultrapassado os séculos e entendiam as dores e delícias da mortalidade e da magia. Com os seus, como costumava dizer.
Só que não conseguiu evitar cair de amores por aquele rapaz tão doce, puro, inocente – e ao mesmo tempo tão astuto, determinado e corajoso. Menos de um mês depois de conhece-lo, Ethan já estava completamente apaixonado e frequentemente se encontrando às escondidas com Anthony na floresta.
— E se nós incendiássemos o celeiro, só para garantir? – uma das vozes vindas de fora do galpão sugere. – Afinal, não é assim que se elimina um feiticeiro para sempre?
Gritos de concordância irrompem entre os homens da vila. Ethan sente seu coração acelerando ainda mais e um nó lhe apertando tanto o peito a ponto de lhe tirar o fôlego.
— Eles vão botar fogo no celeiro! – diz, sem conseguir esconder o terror em sua voz.
Dá para ouvir os homens se organizando, andando ao redor do lugar e gritando ordens uns aos outros. Anthony se vira para Ethan, o medo transparecendo em seus olhos pela primeira vez desde que entraram ali.
— Vamos ter que dar um jeito de sair daqui, ainda que nos vejam. – diz. – Teremos alguma chance tentando fugir deles pela floresta, mas não vamos ter nenhuma se ficarmos trancados aqui dentro em meio ao fogo.
Anthony se levanta e ergue um dos fardos de feno do chão.
— Me ajude a empilhar esses fardos, para formar uma escada até a altura da janela. – pede, caminhando em direção aos fundos do galpão. – Assim nós podemos escapar por ela.
Ethan concorda com a cabeça, depois reúne as poucas forças que lhe restam e fica de pé, pronto para ajudá-lo.
Enquanto eles trabalham do lado de dentro, os homens da vila trabalham do lado de fora. Os dois tentam ser rápidos, mas a escada improvisada ainda não alcançou nem metade da altura necessária quando uma das laterais do celeiro começa a pegar fogo.
— Temos que nos apressar! – grita Anthony, vendo as chamas consumirem a madeira em uma velocidade cada vez maior.
Ambos se revezam, indo e voltando com os fardos pesados de feno, enquanto o calor e a fumaça dentro do galpão só fazem aumentar. Ethan está no alto dos degraus que construíram quando escuta um barulho terrível vindo do seu lado esquerdo. Ele se vira e olha para cima, bem a tempo de ver algumas vigas do teto do celeiro cederem ao calor do fogo e despencarem, caindo exatamente no ponto onde Anthony está, segurando mais um dos fardos nos braços.
Ethan entra em desespero e simplesmente se atira para o chão. É uma queda de mais de dois metros e o tornozelo dele se torce assim que toca o chão, mas ele ignora a dor dilacerante e engatinha até Anthony, arrastando o pé machucado atrás de si.
Ao alcança-lo, seu cérebro quase não consegue processar a cena diante dos seus olhos – Anthony estirado no chão, erguendo a cabeça levemente para olhar para o próprio abdômen, onde uma das vigas que caiu do teto está cravada, bem ao lado do umbigo, uma crescente mancha de sangue se formando ao redor dela e ensopando o tecido da sua camisa.
Ele tenta dizer alguma coisa, mas Ethan leva os dedos aos seus lábios para impedi-lo.
— Não, não tente falar. Guarde suas energias, eu vou cura-lo e tudo vai ficar bem. – diz, sentindo os olhos arderem com as lágrimas que se acumulam sob os seus cílios.
— Ethan. – começa Anthony, a voz soando terrivelmente engasgada e molhada. – Você sabe que existem certos tipos... – ele faz uma pausa para respirar e seus pulmões emitem um ruído úmido semelhante ao que se ouve em sua voz. – De ferimentos que nem sua magia é capaz de curar.
Ethan balança a cabeça com força, se recusando a acreditar naquilo, ainda que saiba que é a verdade. Era ele quem havia o colocado naquela situação e agora deveria ser capaz de tira-lo dela.
— Não, não, não. Você vai ficar bem, eu prometo. Eu vou cuidar de você, meu Tony.
Uma sombra de sorriso se forma nos lábios de Anthony.
— Está tudo bem, eu não lhe culpo. – afirma, como se pudesse ler seus pensamentos. – Se preocupe apenas em sair logo daqui. Você precisa escapar.
Ethan balança a cabeça mais uma vez. O fogo e a fumaça estão se alastrando cada vez mais rápido e ele tosse antes de começar a falar.
— Não, eu não vou te deixar sozinho.
Anthony também tosse e uma golfada de sangue vermelho vivo jorra de sua boca.
— Você precisa voltar para a sua vida, para o mundo.
— Você é a minha vida, você é o meu mundo. – responde Ethan, com as lágrimas agora escorrendo livremente pelas bochechas.
Anthony segura uma de suas mãos com um aperto quase sem forças.
— Eu te amo, Ethan. Por favor, não se esqueça de mim.
Ethan segura a cabeça dele, a erguendo do chão, então se inclina e cola seus lábios nos de Anthony, sentindo o gosto de sangue na própria língua.
— Eu não vou te esquecer, Tony. – promete. – Você foi o único que realmente enxergou além da minha imortalidade e dos meus poderes, que viu a minha alma como ela é. Se existem mesmo outras vidas após a morte, não importa quantas vezes eu venha para esse mundo, juro que minha alma vai sempre pertencer a você. Quer eu seja mortal ou imortal, sempre que pisar meus pés nesse mundo físico, só vou abrir minha alma para você. Eu sempre serei o seu Ethan e você será o meu Anthony. Está me escutando, Tony? Está ouvindo a minha promessa?
Mas Anthony não responde, apenas deixa a cabeça tombar para o lado e fecha os olhos.
— Não, não, não, não, não... – balbucia Ethan, tomado pelo desespero e pela dor.
Ele se inclina sobre Anthony, ignorando a fumaça e o calor das chamas cada vez mais perto, e chora contra o peito dele, soluçando como uma criança. Depois ergue o corpo e grita alto, como um animal ferido, sem se importar se podem ouvi-lo do lado de fora.
Bem nesse momento, o restante da estrutura do teto do celeiro cai por cima do rapaz já sem vida e do imortal com a alma morta. O impacto faz Ethan ficar imediatamente inconsciente e quando as chamas devoram seu corpo ele felizmente não sente nada.
Estou sentado em um dos bancos ao fundo do ônibus lotado, tentando controlar o ritmo da minha respiração, como costumo fazer sempre que me exponho a muitas pessoas ao mesmo tempo – minha experiência diz que isso me ajuda a suportar melhor a avalanche de sentimentos. Se minha mãe não tivesse insistido para que eu buscasse um dos ternos do meu pai na lavanderia do outro lado da cidade, jamais teria saído de casa. Agradeci aos céus por finalmente ter me formado no Ensino Médio e ter dois meses de férias antes de começar a faculdade. Adolescentes são cheios de emoções e lidar diariamente com todas elas por quatro anos quase me levou à loucura. Continuo sentado e imóvel, me concentrando em inspirar e expirar tranquilamente enquanto os sentimentos me atingem por todos os lados. O verão é uma época cheia de expectativas, sonhos e desejos, e sou bombardeado com empolgação, ansiedade, raiva, frustração, preocupação, amor, medo, tristeza.
Não lembro quando exatamente isso começou. Sou assim desde que me conheço por gente, por isso assumo que nasci com essa habilidade. Mas o que importa é que eu sou capaz de sentir as pessoas, de compartilhar dos sentimentos delas – medo, coragem, angústia, alívio, ansiedade, tranquilidade, amor, ódio, alegria, tristeza. É claro que é muito difícil lidar com esse talento, se é que se pode chamar assim. Já é complicado ter que administrar nossas próprias emoções, imagina quando ainda se acrescenta as das pessoas à sua volta. Mas, conforme fui amadurecendo, comecei a aprender algumas maneiras de aliviar esse fardo, coisas que me ajudam a enfrentar melhor tudo isso. Como respirar em um ritmo constante e me manter imóvel, por exemplo. O alcance dessa minha habilidade ainda não ficou muito
Entro descalço na cozinha, coçando os olhos, e paro ao lado da mesa. Minha mãe está colocando a louça suja na lava louças, os cabelos – longos, escuros e ondulados como os da minha irmã – presos em uma trança caída sobre as costas, e abre um sorriso para mim. — Bom dia, meu amor. Você acordou bem cedo hoje. Me esforço para conter um bocejo, mas falho – tive um sono muito agitado, repleto daqueles sonhos estranhos que venho tendo nas últimas semanas, e não consegui descansar o suficiente. Minha mãe termina de encher a lava louças e se vira para mim, com uma expressão preocupada. — Você parece tão cansado, filho. — Não consegui dormir muito bem. – explico. Além dos sonhos, passei boa parte da noite acordado, pensando no garoto do ônibus. Ainda não consigo entender o efeito que ele causa em mim, toda essa atração e conexão que parecem existir entre
Assim que chego em casa, vou correndo para o meu quarto e tranco a porta à chave. Sinto meus olhos arderem com as lágrimas, mas não me permito chorar. Desabo na cama, subitamente exausto. Estou extremamente confuso com o que acabou de acontecer naquela loja de artigos esotéricos. Como o garoto do ônibus pode saber que sou capaz de sentir as emoções das pessoas, como se elas me pertencessem? E da atração inexplicável que eu sinto por ele? Além do mais, Ethan – agora sei que esse é o nome dele – também disse que minha habilidade pode ser controlada e que conhece alguém que pode me ensinar a fazer isso. Eu descobri certos truques que me ajudam nesse sentido por conta própria, há bastante tempo, mas talvez essa pessoa sobre a qual ele se referiu saiba de alguns métodos que eu ainda não conheço. Não consigo entender porque Ethan tem tanto medo de mim. Pude sentir o pavor exalando dele, a angús
Na noite de domingo para segunda feira quase não consigo pregar o olho. A ansiedade em finalmente saber o que está acontecendo entre mim e Ethan me mantém acordado e durmo menos de três horas. Acordo bem cedo no dia seguinte, quando toda minha família ainda está dormindo. Me arrumo em silêncio, deixo um bilhete para os meus pais em cima da mesa da cozinha, dizendo que fui me encontrar com Jake, e saio de casa. Estou tão agitado e concentrado nos meus próprios pensamentos enquanto sigo de ônibus até a loja que não consigo prestar atenção nos sentimentos das pessoas à minha volta. Mal posso acreditar que enfim vou entender toda essa situação em que me encontro. Desço na minha parada e caminho apressado pela calçada, tremendo de nervoso. Quando chego à loja vejo que as luzes estão acesas, apesar de a placa na entrada estar virada para o lado que diz Fechado. Antes de entrar tento sentir a presença de E
Mesmo depois de a porta ter se fechado há vários minutos, continuo escondido. Então ouço a voz potente de Elijah vindo da frente da loja: — Ele já foi embora há um bom tempo, Ethan. Você não vai sair daí? Saio do quartinho nos fundos e me aproximo. — Obrigado por ter me emprestado isso. – digo, tirando o colar do meu pescoço e devolvendo a ele. – Tem certeza de que não pode tornar o efeito permanente? Não pode fazer com que o amuleto bloqueie a minha alma por tempo indeterminado e assim Anthony não possa mais me sentir? Elijah balança a cabeça, os dedos acariciando suavemente o pequeno cristal violeta pendurado no cordão. — Tenho. Depois de ativado, o poder da pedra dura no máximo duas horas. Sempre podemos reativa-lo, mas não seria nada prático ter que fazer todo o ritual de ativação, que é um tanto trabalhoso, em intervalos tão curtos de tempo. — Dro
Depois da conversa esclarecedora que tive com Elijah, sigo para casa e tento seguir os seus conselhos – relaxar e procurar não pensar muito no assunto, por mais difícil que seja. Aproveito para estudar um pouco o material que me deram na faculdade, que explica como as aulas vão funcionar na prática, para organizar e faxinar o meu quarto. Como estou me sentindo culpado por usar Jake como desculpa para sair de casa nos últimos dias, o chamo para almoçar fora e passar a tarde dando uma volta na cidade. Eu e Jake somos amigos desde criança. Ele é um cara tranquilo, com sentimentos simples e contidos, então é confortável para mim estar perto dele – acho que foi justamente por isso que eu me interessei em ser seu amigo, para ser bem sincero. Almoçamos em um restaurante árabe no centro, depois circulamos sem rumo pelas redondezas e terminamos nossa perambulação em um pequeno parque nas proximidades, cheio de pessoas deitadas em toalhas
Século XIX – Ano de 1888 Ethan está terminando de amarrar os cadarços dos seus sapatos, quando a porta se abre de supetão e Jason entra no quarto. — Ah, você já está quase pronto. – diz, parecendo agitado. – Vim avisar para se apressar, fomos chamados com urgência na residência dos Millers, para ver Anthony. Ethan levanta da poltrona em um pulo, alarmado. — O que há de errado com ele? — Parece que acordou muito febril. – responde o doutor Harris. Ele veste o casaco com pressa e apanha sua maleta de cima da cama. — Bem, então vamos sair logo daqui. Jason sai para o corredor e Ethan o segue com passos ap