Inicio / LGBT / Lock and Key / Atração Irresistível
Atração Irresistível

Entro descalço na cozinha, coçando os olhos, e paro ao lado da mesa. Minha mãe está colocando a louça suja na lava louças, os cabelos – longos, escuros e ondulados como os da minha irmã – presos em uma trança caída sobre as costas, e abre um sorriso para mim.

   — Bom dia, meu amor. Você acordou bem cedo hoje.

   Me esforço para conter um bocejo, mas falho – tive um sono muito agitado, repleto daqueles sonhos estranhos que venho tendo nas últimas semanas, e não consegui descansar o suficiente.

   Minha mãe termina de encher a lava louças e se vira para mim, com uma expressão preocupada.

   — Você parece tão cansado, filho.  

   — Não consegui dormir muito bem. – explico.  

   Além dos sonhos, passei boa parte da noite acordado, pensando no garoto do ônibus. Ainda não consigo entender o efeito que ele causa em mim, toda essa atração e conexão que parecem existir entre a gente.

   Vou até a cafeteira e me sirvo uma caneca de café.

   — Cadê o papai? – pergunto, voltando para a mesa e me sentando.  

   — Já saiu para trabalhar. April foi para a casa do Simon, portanto só restamos nós dois aqui.

   Tomo um gole bem generoso de café, na esperança de me sentir mais desperto.

   — Na verdade, eu estava pensando em sair hoje também. – confesso.

   O rosto da minha mãe se ilumina. Desde que as férias começaram, ela vem tentando me convencer a aproveitar melhor meus últimos dias livres antes das aulas começarem.

   — Que boa notícia, Anthony! Onde você está pensando em ir? Vai chamar o Jake para te acompanhar?

   Bebo mais um gole de café, tentando pensar no que responder.

   — Eu pretendia dar apenas uma volta pela cidade, sozinho. Só para me exercitar e respirar um pouco de ar puro. – digo, por fim.

   Ela concorda com a cabeça, animada.

   — Isso mesmo, querido. Aproveite suas férias, saia, veja outras pessoas e se divirta. Logo suas aulas na faculdade irão começar e você não terá mais tanto tempo livre.  

   Minha mãe se aproxima, beija o topo da minha cabeça e sai da cozinha, me deixando sozinho ali. Na verdade, não pretendo fazer um simples passeio sem destino pela cidade e sei muito bem aonde quero ir – à loja de artigos esotéricos onde o garoto do ônibus trabalha.

   Não sei que desculpa vou inventar para aparecer lá mais uma vez, depois de apenas três dias, mas não consigo resistir ao forte impulso que sinto por estar perto dele novamente. Geralmente eu procuraria me manter bem longe de alguém que carrega tanta dor dentro de si. Porém, com ele acontece justamente o contrário, o sofrimento dele me chama, como se precisasse ser compartilhado comigo. Como se eu tivesse que sentir essa dor também.

   Preparo uma torrada com manteiga e sigo para o meu quarto assim que termino de comer. Tomo um banho rápido, escovo os dentes e pego minha carteira, depois me despeço da minha mãe e saio de casa.

   Como ainda não tenho carro – meus pais prometeram me ajudar a comprar um quando eu já tiver me mudado para o campus da faculdade –, sigo até o ponto de ônibus. Vou pegar a mesma linha que peguei três dias atrás, quando deveria ter ido à lavanderia, descer na mesma parada e caminhar até a loja.

   E aí termina o meu plano. Não faço ideia do que fazer depois disso, já que não posso entrar lá e inventar que quero comprar mais um presente para a minha irmã. Ficaria muito claro que é apenas uma desculpa, seria ridículo. Mas eu tenho que ficar próximo dele, que vê-lo, senti-lo. Não sei explicar o porquê, só sei que preciso disso, da mesma maneira que preciso de oxigênio e água.

   Após vinte minutos de espera, o ônibus chega. Entro, pago minha passagem e sento em um dos bancos aos fundos, como de costume. Ao contrário do outro dia, há poucas pessoas viajando junto comigo, portanto não sou bombardeado com várias emoções de uma vez só e o trajeto é muito mais confortável para mim.

   Tem uma menininha sentada no banco à frente do meu, de uns três ou quatro anos. Ela se vira, ajoelhada sobre o assento, e fica me encarando. Abro um sorriso amigável e capto a alegria que meu gesto causou nela. Compartilhar das emoções das crianças é bem mais fácil do que das dos adultos – elas sentem de um jeito muito mais simples, puro e sem complicações, o que faz com que eu não me sinta tão sobrecarregado.

   Minha parada chega e desço do ônibus. Ansioso, caminho pela calçada com o coração batendo forte contra as costelas. Decido parar para me sentar em um banco cerca de dez metros antes da loja, de onde posso ver perfeitamente a porta de entrada. Mesmo estando tão longe e sem ver o interior do lugar, sei que o garoto está lá dentro. Posso sentir sua presença daqui, embora a sensação seja muito leve e eu não consiga distinguir com exatidão o que ele está sentindo nesse momento.

   Fico observando a loja por uns quinze minutos, até que uma mulher loira e alta se aproxima pela calçada e passa pela porta de entrada. Logo depois o garoto aparece na vitrine e pega um dos objetos que estão expostos ali.

   Assim que meus olhos pousam nele, sou invadido pelos seus sentimentos. Capto aquela mesma dor que senti no outro dia, profunda e trágica, medo, angústia e preocupação, daquele tipo que consome por dentro, não te deixa dormir e pesa no fundo do estômago, e me pergunto por qual tipo de situação ele deve estar passando para se sentir assim.

   Mais alguns instantes se passam e a mulher sai de lá. Está carregando uma sacola na mão esquerda e deduzo que fosse apenas uma cliente. Fico observando enquanto ela se afasta pela calçada, até virar na esquina ao fim do quarteirão e desaparecer.

   Continuo sentado no banco, sem saber o que fazer. Me sinto meio ridículo por ter vindo até aqui, mas a forte atração que me trouxe para cá permanece e parece ainda mais forte do que antes. Quero entrar naquela loja, quero estar no mesmo ambiente que ele, ouvir sua voz e senti-lo com toda a intensidade.

   Depois de mais alguns minutos lutando comigo mesmo, acabo cedendo. Então me levanto e atravesso a rua.

                                                                    *

   Atendo uma cliente e aproveito o movimento calmo para registrar algumas mercadorias recém chegadas. Foco na tarefa por quinze minutos, até que o sino logo acima da entrada soa e ergo os olhos da tela do computador.

 Ao ver quem acaba de entrar na loja, congelo na mesma hora. Aqui está aquele garoto mais vez. Sei que Elijah está certo ao dizer que sou como um imã para ele, mas confesso que esperava que demorasse mais um pouco até que viesse me procurar novamente.

   — Boa tarde. – cumprimenta o garoto, parecendo sem graça.

   — Boa tarde. – respondo, de cara fechada. – O que você está fazendo aqui de novo?

   Ele dá um passo para atrás, como se eu tivesse lhe dado um tapa na cara. Fico arrependido por ter sido tão rude, mas não peço desculpas.

   — Eu vim comprar mais um presente. – diz o garoto, e dá para perceber que está inventando isso agora. – Minha mãe gostou muito da cesta que levei para a April, por isso vim buscar uma para ela também.

   Suspiro, coçando a testa. Ele já chegou ao ponto de inventar desculpas para se manter próximo a mim e entendo que a situação é mais grave do que eu pensava. Não sei como fazer para escapar dele, então simplesmente finjo que acreditei – ainda que ele com toda a certeza possa sentir a minha descrença – e começo a montar a maldita cesta.

   Enquanto caminho pela loja arrecadando os itens, ele me observa com olho atentos e curiosos.

   — Eu ainda não sei qual é o seu nome. – diz, por fim.

   Como não digo nada, o garoto pergunta:

   — Como você se chama?

   Mesmo a contragosto – quanto menos coisas ele souber sobre mim, melhor – decido responde-lo.

   — Ethan.

   Ele fecha os olhos, a mão buscando apoio em uma das prateleiras ao seu lado. Por um momento penso que está passando mal e entro em pânico – a última coisa de que preciso agora é ter que socorre-lo. Mas logo o garoto parece se recuperar de seja lá o que tenha sentido e sorri.  

   — Muito prazer, eu me chamo Anthony.

   O nome dele me desperta um tipo de reconhecimento estranho, como se ele já me fosse muito familiar, mas não conheço ninguém que se chame assim. Desconcertado pela sensação, me concentro em acomodar os incensos, cristais e estatuetas dentro da cesta. Minhas mãos estão trêmulas, meu coração bate aceleradamente dentro do peito e eu só quero terminar isso o quanto antes, para que Anthony possa logo ir embora daqui.

   Apenas alguns instantes de silêncio se passam, até que ele se arrisca a falar novamente.

   — Você trabalha aqui há muito tempo?

   Balanço a cabeça, sem erguer os olhos da cesta.

   — Não, estou trabalhando nessa loja há menos de um mês.

   Anthony assente, com as mãos enfiadas no fundo dos bolsos da calça jeans. Ele troca o peso do corpo de uma perna para a outra e morde os lábios, como se não soubesse mais o que dizer, até que enfim faz mais uma pergunta.

   — E você sempre se interessou por essas coisas esotéricas?

   — Sim. – me limito a responder, ainda sem encara-lo.

   Mas minha frieza não desencoraja Alec a seguir em frente com os seus questionamentos.

   — Quer dizer que você é um homem supersticioso?

   É aí que eu chego ao meu limite. Simplesmente não posso mais suportar tudo isso, então largo a estatueta que estava prestes a acomodar na cesta em cima do balcão, cruzo os braços e o encaro.

   — Pode parar com toda essa conversa fiada, Anthony. Eu sei muito bem porque veio até aqui de novo.

   Ele também me encara, com uma expressão que é um misto de confusão e alarme.

   — Do que você está falando? – pergunta, com a voz trêmula.

   — Eu sei do que você é capaz. Sei que nasceu com a habilidade de captar as emoções de todos à sua volta.

   Anthony arregala os olhos, o choque e a surpresa estampados no seu rosto.

 — Sei também que se sente extremamente atraído por mim. – continuo. – Não no sentido romântico ou sexual, é mais como se eu fosse alguma espécie de imã, uma força magnética lhe puxando para perto. E que, quando está próximo a mim, você não consegue captar os sentimentos de mais ninguém, o que suponho que deva ser um alívio imenso.

   Ele se inclina para a frente, as mãos segurando a borda do balcão com tanta força a ponto de embranquecer os nós dos seus dedos.

   — Como pode saber de tudo isso? Você também é como eu? Também consegue sintonizar as emoções das outras pessoas?

    Balanço a cabeça.

   — Não. Mas já conheci duas pessoas como você e eu, com esse mesmo tipo de conexão inexplicável. E isso só lhes trouxe dor e não acabou nada bem. Sendo assim, tenho certeza de que o melhor que nós podemos fazer é ficar bem longe um do outro. Sei que é difícil resistir à atração que sente, mas você precisa ser forte, Anthony. Existem maneiras de diminuir a força dessa conexão, de trabalhar a sua habilidade, para que toda essa enxurrada de emoções não te traga tanto sofrimento. Eu conheço uma pessoa que pode te ajudar com isso, se você estiver disposto a tentar. E mesmo depois que você aprenda a se controlar, ainda será preciso que a gente mantenha distância um do outro.  

   Anthony abre a boca, como se quisesse dizer alguma coisa, mas acaba desistindo. Seus olhos deixam transparecer uma certa tristeza e até mesmo um pouco de mágoa, o que faz com que eu me sinta culpado. Quando falo, tento soar o mais compreensivo e delicado o possível.

   — Olha, se toda essa situação já não é fácil para mim, imagino que deve ser ainda pior para você. Porém, você precisa acreditar no que eu estou dizendo. Acredite em mim quando digo que sei muito bem onde tudo isso pode nos levar. O melhor que temos a fazer é nos manter bem distantes um do outro.

   Ele assente lentamente.

   — Bem, então vamos começar a fazer isso agora mesmo. – diz.

   Depois simplesmente se vira e sai da loja, sem sequer lembrar da cesta que supostamente queria comprar. Fico parado atrás do balcão, observando enquanto Anthony atravessa a rua e sai caminhando com passos apressados pela calçada do outro lado. Sei que eu deveria estar aliviado, mas tudo que consigo sentir é um peso incômodo dentro do peito e um nó na garganta.

                                                   Século XIX – Ano de 1888

   Os dois estão sentados à margem do lago, com os pés enfiados na água até os tornozelos. Ethan enterra os dedos na areia fofa da beirada e um suspiro de satisfação escapa de seus lábios.

   — É mesmo muito bonito aqui. – diz, correndo os olhos ao redor, maravilhado. – Um lugar calmo, tranquilo, que traz uma sensação de paz.

   Anthony concorda com a cabeça, sorrindo.

   — Eu também acho. Gosto de vir até aqui quando estou triste ou preocupado com alguma coisa, para pensar.

   Ethan se inclina, pega um pouco de água nas mãos em concha e as leva aos lábios.

   — Você tinha razão, a água daqui é muito fresca.

   Os olhos de Anthony se fixam no imenso anel que reluz em seu dedo anelar direito.

   — Que bela joia. – elogia.

   — Foi um presente de uma velha amiga. – conta ele, erguendo a mão para admirar a pedra negra cintilando à luz do Sol. – A gema é um ônix, que dizem ser capaz de proteger contra magia negra, encantamentos e feitiços.

   — Quer dizer que você é um homem supersticioso?

   — Bem, digamos que eu tenho fortes motivos para acreditar que há mais coisas entre o céu e a terra do que pode imaginar nossa vã filosofia. – responde Ethan.

   Anthony franze a testa, intrigado.

   — Foi Shakespeare quem disse isso, não? Confesso que não sou do tipo de homem que se dedica muito à literatura, mas me lembro de ouvir meu tutor citando essa frase em uma de nossas aulas.

   — Shakespeare era um homem muito inteligente. – diz Ethan. – Conseguia entender várias coisas que a maioria dos seres humanos não consegue.

   Ele conhece alguns feiticeiros que viveram na mesma época que o poeta e por isso sabe que Shakespeare tinha uma mentalidade muito à frente do seu tempo.  

   Anthony apenas assente e o silêncio se instaura entre os dois por alguns minutos. Ethan fica admirando as árvores ao redor do lago, os raios de Sol refletidos na água, e se sente confortável como não se sentia há muito tempo. O esforço de ter que esconder sua verdadeira natureza o tempo todo lhe deixa em um estado permanente de alerta que é bastante exaustivo.

   Quem fala primeiro é Anthony.

   — No dia em que esteve na minha casa acabei não perguntando, mas fiquei curioso para saber quantos anos tem. Você me parece um tanto jovem para trabalhar como assistente de médico.

   Ethan hesita. Obviamente não pode dizer a verdade, mas também não gostaria de mentir, e por fim tenta se esquivar sem dar uma resposta direta.

   — Sou um pouco mais velho do que você, mas não tão jovem assim. Tenho a sorte de aprender rápido, o doutor Harris só precisou me instruir por quinze dias e eu já estava apto a ajuda-lo durante os seus atendimentos.

   — E a aplicar pomadas milagrosas. – brinca Anthony, o fazendo rir.

   Ele enrola as barras das calças até abaixo dos olhos e mergulha as pernas mais fundo no lago, até que a água chegue às suas panturrilhas. Ethan volta a atenção para as mãos dele e percebe o quanto são belas, com os dedos longos e finos, as unhas bem aparadas e limpas. Sempre teve uma queda por essa parte do corpo, que costuma ser tão subestimada.

   E as mãos não são a única coisa bela em Anthony. O rapaz tem olhos azuis radiantes, da mesma cor do céu em uma tarde ensolarada de verão, uma pele alva e macia, cabelos negros e cheios e lábios corados e carnudos. Uma beleza praticamente angelical, que Ethan pode facilmente imaginar pintada no teto da Capela Sistina.

   Anthony percebe que está sendo analisado e parece constrangido.

   — O que foi?

   — Tinha um besouro pousado no seu ombro, mas já levantou voo. – mente Ethan.

   Anthony assente e os dois voltam os olhos para a superfície do lago, que brilha como um diamante sob os raios do Sol. Ethan se pega pensando no quanto gostaria de vir até ali mais vezes e não percebe que expressou o pensamento em voz alta, até ouvi-lo dizer:

   — Bem, eu posso lhe trazer aqui sempre que você quiser.

   Ele deveria recusar, sabe muito bem disso. Mas a voz de Anthony soa tão sincera e esperançosa, como se a ideia de lhe acompanhar até ali novamente o enchesse de expectativas, que Ethan simplesmente não é capaz de resistir e aceita a oferta.

   — É claro. Eu adoraria.

   Então Anthony abre um sorriso animado. O rosto dele se ilumina por inteiro com o gesto e Ethan tem a impressão de que seu coração falha uma batida. Ele sabe o que está acontecendo e mesmo assim não consegue evitar se deixar levar pelos sentimentos que começam a criar raízes dentro do seu peito.

   Ethan sabe que já está se apaixonando.

Capítulos gratis disponibles en la App >

Capítulos relacionados

Último capítulo