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Dom ou Maldição

  Não lembro quando exatamente isso começou. Sou assim desde que me conheço por gente, por isso assumo que nasci com essa habilidade. Mas o que importa é que eu sou capaz de sentir as pessoas, de compartilhar dos sentimentos delas – medo, coragem, angústia, alívio, ansiedade, tranquilidade, amor, ódio, alegria, tristeza.

   É claro que é muito difícil lidar com esse talento, se é que se pode chamar assim. Já é complicado ter que administrar nossas próprias emoções, imagina quando ainda se acrescenta as das pessoas à sua volta. Mas, conforme fui amadurecendo, comecei a aprender algumas maneiras de aliviar esse fardo, coisas que me ajudam a enfrentar melhor tudo isso. Como respirar em um ritmo constante e me manter imóvel, por exemplo.

   O alcance dessa minha habilidade ainda não ficou muito claro para mim. Geralmente consigo captar os sentimentos das pessoas que estão no mesmo local que eu, independentemente da dimensão do ambiente. Tanto faz se estou em um cômodo da minha casa ou no imenso corredor da escola, consigo sentir todos que estão ali junto comigo. Desenvolvi a teoria de que posso sentir qualquer pessoa que esteja ao alcance da minha visão, mas é apenas uma suposição e não tenho certeza absoluta de estar certo quanto a isso.

   Não sei explicar o porquê, porém já encontrei algumas pessoas às quais não sou capaz de sentir. Carolyn, a namorada do meu melhor amigo, é uma dessas exceções – nunca consegui captar nenhum sentimento vindo dela e isso me deixa intrigado até hoje. Mas isso aconteceu tão poucas vezes que dá para contar nos dedos de uma mão e fiquei extremamente surpreso em todas elas.

   Quando criança, eu sequer fazia ideia de que os outros não eram como eu e acreditava que todos também eram capazes de sentir as emoções das pessoas ao seu redor. Lembro de uma ocasião, quando tinha uns quatro anos, em que April acordou muito doente, com uma febre altíssima. Meu pai foi leva-la ao pediatra, enquanto eu e minha mãe ficamos em casa os esperando. Ela estava muito nervosa, preocupada com minha irmã, e ficava olhando pela janela da sala o tempo todo, para ver se eles já estavam voltando.

   — Não se preocupe, mamãe. – falei, quando o carro finalmente entrou na nossa garagem. – A April já está se sentindo bem melhor.

   Minha mãe franziu a testa, confusa.

   — Como você sabe disso, meu filho?

   — Porque eu senti, ué. – respondi, dando de ombros.

   É claro que ela simplesmente deu risada, achando que fosse coisa de criança, mas a verdade é que senti o conforto da minha irmã e o alívio do meu pai assim que os vi através das janelas do carro, e entendi que tinham boas notícias.

   Acho que essa foi a primeira vez em que percebi que era diferente de alguma forma. Nunca contei para ninguém sobre a minha habilidade especial, nem mesmo para a minha família. Sempre tive medo de que pensassem que eu estava mentindo, ou pior – que era louco. Não quero ir a um médico, sair de lá com uma receita cheia de remédios pesados e viver dopado. Sei muito bem que tenho o juízo perfeito e não preciso disso.

   Só que, em todos os meus dezoito anos de vida, nunca cruzei com alguém que conseguisse sentir como o garoto que encontrei no ônibus dois dias atrás. É muito estranho, parece que as emoções dele pertencem a mim também. Elas fluem direto para o meu coração com uma intensidade tão forte que ofuscam os sentimentos de todos os outros à minha volta e a única pessoa que posso sentir é ele.

   Há também o fato de que eu compartilhei da sua dor física. Isso nunca tinha acontecido antes. Esse meu talento, habilidade ou como queira chamar, parece se limitar somente ao campo emocional, mas com ele é diferente e eu não consigo entender porquê. Só sei que esse garoto me atrai de um jeito inexplicável, feito um imã poderoso.

   E agora estou aqui, deitado na minha cama, perdido em todas essas questões. Minha mãe aparece na porta do quarto a cada quinze minutos, só para dizer que estou desperdiçando minhas férias ficando trancado aqui dentro e sugerir que eu telefone para o Jake e o chame para sair comigo. Mas eu não me sinto em condições de sair de casa agora e lidar com os sentimentos alheios, não quando estou me sentindo tão sufocado pelos meus próprios.

   Só há um lugar ao qual eu gostaria de ir, ao qual todo meu corpo pede que eu vá. Estou tentando resistir ao impulso, mas fica cada vez mais difícil me segurar para não levantar daqui, pegar o ônibus e descer perto daquela pequena loja de artigos isotéricos mais uma vez.

                                                                   *

   Estou tirando o pó das prateleiras, mais para me distrair do que por qualquer outra coisa, quando a porta se abre e Elijah entra na loja.

  — Você já arranjou outra pessoa para ficar tomando conta do balcão pelos próximos dias? – pergunto, ansioso.

   Ele larga uma sacola no chão e solta um suspiro cansado.

   — Quantas vezes vou ter que dizer que não pode fugir para sempre, Barus? Esse é o seu destino e você não pode evita-lo.

   Aperto os dentes com força, contraindo a mandíbula. Toda essa situação está me deixando com os nervos à flor da pele e preciso me controlar para não começar a gritar agora mesmo.

   — E quantas vezes eu vou ter que dizer que não estou nem aí para o destino? A vida é minha e eu faço dela o que quiser. Você, mais do que ninguém, deveria saber o que acontece quando não se assume o controle das coisas.

   Elijah suspira mais uma vez, coçando a cabeça.

   — Ethan, eu entendo que sinta medo. Ninguém pode negar que tem seus motivos para tanto. Mas você é o que é e não pode fazer nada para mudar isso. Precisa aceitar a sua natureza e trabalhar para fazer o melhor que pode com ela.

   Dou um tapa forte em uma prateleira e as dezenas de estatuetas em cima dela balançam perigosamente.

   — Não! – grito, sem conseguir mais me conter. – O que eu preciso fazer é me afastar desse lugar, até que as coisas se acalmem e eu possa voltar a ter um pouco de paz! É só disso que eu preciso, Elijah. Paz e tranquilidade.

   Agora eu também consegui irrita-lo e ele respira fundo, inflando as narinas.

   — Pois eu posso afirmar que não vai encontrar o que precisa fugindo. – retruca. – A única maneira de ter paz e tranquilidade é aceitar a sua natureza. Você pode se mudar para o outro lado do planeta, pode até mesmo passar dez, vinte, trinta anos longe daqui. Mas, assim que voltar a pisar os pés nessa cidade, vai encontra-lo novamente. Você é um como um imã para ele, Barus. Mesmo que o pobre garoto queira resistir à essa atração, não vai conseguir. É mais forte do que ele, do que você, do que tudo. É o destino e vai se cumprir, de um jeito ou de outro.

   Largo o pano sobre a prateleira e me sento no chão, com a cabeça apoiada nas mãos.

   — Por que eu tinha que ter nascido assim, Elijah? – questiono, sem conseguir esconder a angústia em minha voz. – Por que? Eu não quero ser desse jeito, nunca desejei ser diferente ou especial de qualquer modo que seja. Tudo que sempre quis foi ser apenas um garoto como qualquer outro da minha idade, com uma vida normal.

   Ele caminha até mim e se agacha bem à minha frente.

   — E você é, Ethan. Pode ter uma vida normal, como a de qualquer outra pessoa. Só precisa aprender a lidar com isso, a administrar as consequências de ser quem você é. E sabe tão bem quanto eu que não vai conseguir fazer isso sozinho, que vocês dois precisam tomar todas as decisões juntos.

   Sinto meus olhos arderem com as lágrimas. Como não gosto que me vejam chorando, levanto em um pulo e sigo para os fundos.

   — Essa história toda me deixou exausto. Por favor, fique tomando conta da loja enquanto eu vou descansar um pouco no meu quarto.

   Elijah abre a boca, como estivesse prestes a falar mais alguma coisa, mas por fim desiste e apenas assente. Então passo pela porta que leva à pequena quitinete onde vivo, conjugada à loja, depois me jogo sobre a cama e simplesmente deixo as lágrimas escorrerem livremente pelas minhas bochechas.

                                               Século XIX – Ano de 1888

     Ethan está saindo da farmácia, quando escuta alguém chamando seu nome.

     — Senhor Brown!

   Ele reconhece a voz na mesma hora e quando se vira vê que seu palpite estava certo.

   — Boa tarde, senhor Miller.

   — Pode me chamar apenas de Anthony. – pede o rapaz. Depois, apontando para a entrada da farmácia, pergunta: – Acaso veio comprar mais daquela sua pomada milagrosa?

   Ethan balança a cabeça, rindo.

   — Não, na verdade eu vim buscar alguns unguentos e medicações a pedido do doutor Harris. – responde. – E confesso que começo a acreditar que aquela pomada possuía mesmo propriedades mágicas. Olhe só para você, saracoteando leve e fagueiro pelas ruas da cidade! Imagino que seu tornozelo deva estar novo em folha.

   Agora quem ri é Anthony.

   — Sim, estou totalmente recuperado, graças aos seus cuidados e aos do doutor Harris. Minha mãe pediu que eu viesse até o armazém da vila, para comprar trigo para que ela possa fazer um bolo.

   Ethan apenas assente, sorrindo, e o silêncio se instala entre os dois. Dá para perceber que Anthony está tenso, com as mãos cruzadas atrás costas, trocando o peso do corpo de uma perna para a outra, provavelmente tentando decidir o que deve dizer em seguida. Por fim, ele comenta:

   — Está calor demais hoje, você não acha?

   Ethan sorri mais uma vez – ele tem a leve impressão de que saíra daquela conversa com câimbras nas bochechas.

   — Ah, eu aprecio esse clima mais quente. O verão é a minha época favorita do ano. Mas você tem razão, hoje está particularmente quente e até eu estou tendo dificuldades em suportar todo esse calor.

   — Eu estava até pensando em me refrescar no lago mais tarde. – comenta Anthony.

   Ethan franze a testa, curioso.

   — Eu não sabia que havia um lago por aqui.

   — Há sim, no meio da floresta. – conta o rapaz. – Fica um pouco distante e escondido e não são todas as pessoas que conseguem chegar lá, mas nasci e fui criado nessa vila, circulando em meio às árvores desde criança, então conheço muito bem o caminho.

   — É uma pena que nunca tenham me contado isso. Eu sempre gostei de fazer passeios ao ar livre, de estar em meio à natureza.

   As palavras saem de uma só vez da boca de Anthony, como se ele quisesse pronuncia-las logo, antes que pudesse mudar de ideia.

   — Eu posso lhe levar até lá um dia desses. – oferece.

   Seu primeiro impulso é recusar a oferta. Ethan não gosta de ficar muito próximo dos mundanos, sabendo que isso representa um risco muito grande. Mas Anthony parece tão ansioso e esperançoso, como se a recusa dele pudesse magoa-lo profundamente, e Ethan acaba concordando.

— Tudo bem. Eu estou hospedado na estalagem da vila, basta m****r um mensageiro para avisar a data e a hora certas e eu irei conhecer o lago em sua companhia.

   Anthony abre um sorriso luminoso e cheio de alívio.

   — Está combinado. Tenho certeza de que irá gostar muito do passeio. O lago é pequeno, mas a água é fresca e cristalina.

   Ethan assente, então os dois se despedem com um cordial aperto de mãos e se separam, cada um seguindo o seu caminho. Ele sabe que não deveria ter aceitado o convite, mas não consegue sentir arrependimento.

   Na verdade, o que Ethan sente é seu coração bater acelerado com a expectativa de em breve passear ao lado de Anthony.

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