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Avalanche de Sentimentos

  Estou sentado em um dos bancos ao fundo do ônibus lotado, tentando controlar o ritmo da minha respiração, como costumo fazer sempre que me exponho a muitas pessoas ao mesmo tempo – minha experiência diz que isso me ajuda a suportar melhor a avalanche de sentimentos.

   Se minha mãe não tivesse insistido para que eu buscasse um dos ternos do meu pai na lavanderia do outro lado da cidade, jamais teria saído de casa. Agradeci aos céus por finalmente ter me formado no Ensino Médio e ter dois meses de férias antes de começar a faculdade. Adolescentes são cheios de emoções e lidar diariamente com todas elas por quatro anos quase me levou à loucura.

   Continuo sentado e imóvel, me concentrando em inspirar e expirar tranquilamente enquanto os sentimentos me atingem por todos os lados. O verão é uma época cheia de expectativas, sonhos e desejos, e sou bombardeado com empolgação, ansiedade, raiva, frustração, preocupação, amor, medo, tristeza.

   De repente o ônibus para em um ponto e um garoto sobe pela porta da frente. Ele se acomoda em um dos bancos logo após a catraca, de costas para mim, de modo que não consigo ver o seu rosto. Mas o que chama a minha atenção não é a sua aparência e sim o redemoinho de emoções que invade meu peito em uma intensidade quase insuportável. É algo tão violento que chego a arfar alto e a mulher sentada ao meu lado me lança um olhar preocupado.

   Sinto uma dor imensa, profunda, trágica. É terrível e angustiante e me pergunto como alguém pode suportar viver com esse sentimento. A sensação é tão avassaladora que todos as outras emoções que eu estava sentindo até então ficam ofuscadas por ela – é como se a única coisa que existisse ali naquele ônibus fosse esse sofrimento imensurável.

   O garoto desce poucas paradas depois, bem antes da minha. Mas um impulso se forma dentro de mim e, quando me dou por conta, já levantei do banco em um pulo e desci atrás dele. É como se ele fosse um imã que me atrai de um jeito forte, inexplicável, e eu não tento resistir, apenas me deixo levar.

   O fato de que preciso ir à lavanderia fica esquecido e começo a caminhar cerca de cinco metros atrás do garoto, o seguindo. Ele anda tranquilamente pela calçada, como se já tivesse feito esse percurso centenas de vezes, uma das mãos segurando a alça da mochila verde pendurada em um dos ombros e a outra dentro do bolso da calça jeans skinny.

   Continuo a segui-lo à distância, procurando não chamar a sua atenção. Chegando ao fim do quarteirão, o garoto se vira, pronto para atravessar a rua. Paro em frente à uma loja para disfarçar, fingindo admirar a vitrine. Fico espiando pelo canto do olho e vejo quando entra em uma loja de artigos esotéricos do outro lado da rua, chamada Harris. Ele vira a placa pendurada na porta de Fechado para Aberto, então sigo até lá e entro na loja, fazendo um sininho dourado pendurado na entrada tilintar.

   A primeira coisa que percebo é o forte cheiro adocicado de incenso que paira no ar. Do teto pendem vários enfeites com penas e contas, além de mandalas coloridas. As paredes estão cheias de prateleiras com potes de cristais e estatuetas de bruxas, dragões e sapos.

   — Boa tarde. Posso ajudar em alguma coisa? – pergunta o garoto, em pé atrás do balcão de madeira escura.

   Por um breve instante entro em pânico, sem saber o que responder. Nem eu mesmo sei porque vim até aqui, afinal de contas. Ele me encara com curiosidade e acabo falando a primeira coisa que vem à minha cabeça.

   — Eu vim comprar um presente para a minha irmã. – minto.

   O garoto assente, com um sorriso receptivo dançando nos lábios.

  — Eu vim comprar um presente para a minha irmã. – minto.

   O garoto abre um sorriso compreensivo, assentindo.

   — Certo. Você já faz alguma ideia do tipo de coisa que vai querer?

   Coço a cabeça, totalmente perdido.

   — Para ser sincero, eu não entendo nada de artigos esotéricos e não faço ideia do que são ou para que servem a maioria desses objetos. Minha irmã que gosta dessas coisas.

   Não é exatamente a verdade, mas também não é mentira – April realmente gosta de incensos, cristais e amuletos.

   — Bem, aqui nós montamos alguns kits com artigos variados, que são uma ótima opção para quem quer presentear alguém e não faz ideia do que escolher. – diz ele. – Posso te ajudar a montar um com itens bem interessantes.

   — Ótimo. Pode ser. – respondo, aliviado por não ser obrigado a escolher algo entre todos aqueles objetos desconhecidos nas prateleiras. 

   O garoto me mostra algumas opções de cestos de palha e eu simplesmente aponto um aleatoriamente.

   — Qual é o signo dela? – pergunta ele. – As pessoas costumam gostar bastante de amuletos e incensos relacionados ao seu.

   Minha irmã costuma exaltar suas qualidades de leonina, então essa é uma pergunta a qual posso responder com facilidade.

   — Leão.

   — Então precisamos colocar olho grego, figas e um citrino nessa cesta.

   Ele sai apanhando vários artigos diferentes das prateleiras, entre caixinhas de incenso, cristais e pequeninos frascos cheios de líquidos coloridos. Enquanto isso, começo a andar pelo interior da loja, pegando coisas aleatórias, deslizando a ponta dos dedos sobre as superfícies e pensando em algo para dizer. Por fim, apelo para o tema mais clássico da small talk – o clima.

   — Está calor demais hoje, você não acha?

   O garoto sorri mais uma vez, registrando um por um dos itens que apanhou antes de acomoda-los dentro da cesta.

   — Eu sempre gostei do calor e o verão é a minha época favorita do ano. Acho o inverno muito melancólico e desanimador. Além do mais, tenho um sério problema com lareiras. Não sei bem explicar o porquê, mas a verdade é que o crepitar do fogo me causa arrepios.

   Não tenho ideia de como continuar a conversa, então me aproximo do balcão e seguro as penas de um dos enfeites que pende do teto entre os dedos.

   — Como é mesmo o nome disso? – pergunto, curioso.

   — Filtro ou apanhador dos sonhos. – responde ele. – Eles devem ser pendurados acima da cabeceira da cama, assim todos os pesadelos ficam presos na teia dele e quem dorme ali só irá ter sonhos leves e alegres.  

   Desprendo o apanhador do teto e o coloco sobre o balcão.

   — Então vou levar um desses também.

   O garoto o segura nas mãos e desliza os dedos sobre as penas. Reparo nas suas unhas, pintadas com um esmalte azul escuro e descascadas nas pontas, e também no imenso anel de pedra negra que usa no anelar direito.

   — Sua irmã costuma ter pesadelos?

   — Não, eu que ando precisando de algo que me ajude a ter sonhos mais agradáveis. – explico. – Tenho sonhado com coisas muito estranhas ultimamente.

   Já faz cerca de um mês que comecei a ter esses sonhos, praticamente todas as noites. Eles costumam seguir o mesmo roteiro – estou sempre acompanhado de um rapaz mais ou menos da minha idade, no meio de uma floresta ou à beira de um lago. Nós agimos como se fossemos bastante íntimos, conversando e provocando um ao outro, mas nunca consigo ver claramente o rosto dele. Tudo que posso fazer é distinguir sua silhueta e ouvi-lo falar.

   De repente percebo que a voz do garoto nos meus sonhos se parece muito com a do atendente da loja. Na verdade, eu poderia jurar que os dois tem praticamente a mesma fala. Vai ver é por isso que me senti tão atraído por ele. Tudo não passa de um truque do meu inconsciente, que reconheceu a semelhança logo de cara. Só que eu não o ouvi falar dentro do ônibus, além de não haver justificativa para o fato de conseguir senti-lo com muito mais intensidade do que sinto a todos os outros.

   A voz dele me desperta dos meus devaneios.

   — Prontinho! Acho que o kit já tem um número de itens suficientes. Você quer dar uma olhada?

   — Não, vou confiar nas suas escolhas. – respondo.

   O garoto assente, depois começa a embalar a cesta com um pedaço de papel celofane cor de rosa.

   — O valor total é de cinquenta dólares e sessenta centavos. – diz, olhando para a tela do computador.

   Pego o cartão de crédito que minha mãe me deu antes de sair de casa, para que eu pagasse a conta na lavanderia, do bolso da calça e o entrego nas suas mãos. Ele o derruba no chão, se abaixa para apanha-lo e ao se levantar bate a cabeça com tudo na borda do balcão.

   E então acontece a coisa mais estranha que já me aconteceu em toda a minha vida – eu sinto a batida na minha própria cabeça.

   Minha mão automaticamente se ergue e massageia o ponto pouco acima da minha têmpora esquerda, ao mesmo tempo em que um gemido baixo escapa dos meus lábios. Isso nunca ocorreu antes e fico absolutamente em choque, sem entender no que está acontecendo. Costumo sentir os outros apenas no que diz respeito ao emocional e jamais havia compartilhado a dor física de alguém até agora.

   O garoto me encara e sei que está tão chocado quanto eu, não só pela sua palidez e os olhos arregalados, mas porque posso sentir isso. Além do choque, sou capaz de identificar o pavor e o desespero intensos que exalam dele como vapor do bico de uma chaleira.

   — Você se machucou? – pergunto, mesmo sabendo que a pancada não foi grave e que a dor aguda do baque já diminuiu.  

   Dou um passo à frente, mas ele recua e não posso deixar de sentir uma pontada de mágoa. Não consigo entender porque está com tanto medo assim de mim.

   — Preciso fechar a loja. – diz o garoto, agitado.

   — Mas você acabou de abri-la. – lembro.

   — É, eu sei. Só que me lembrei de que preciso ir a um lugar com urgência.

   Ele coloca meu cartão de crédito dentro da cesta e a empurra sobre o balcão, na minha direção.

   — Pronto, pegue suas coisas.

   — Você se esqueceu de cobrar pela compra.

   O garoto balança a cabeça e se afasta do balcão, como se eu fosse radioativo.    

   — Não tem problema, considere essa cesta como uma espécie de brinde. Agora vá embora, por favor. Eu realmente preciso fechar a loja.

   Não estou entendendo nada, mas posso sentir que ele está muito nervoso e decido não insistir. Apenas pego a cesta e saio dali, mais confuso ainda do que quando entrei. Atravesso a rua, paro na calçada do outro lado e olho para trás, bem a tempo de vê-lo virando a placa com o lado que diz Fechado para fora mais uma vez.

                                                                  *

   Viro a placa e tranco a porta da loja, com as mãos trêmulas. Depois volto para trás do balcão e passo pela porta que leva ao cômodo nos fundos, onde estou morando.

   Vou até a pia da cozinha e encho um copo de água. Enquanto tomo pequenos goles, tento bolar um plano na minha cabeça – vou ligar para Elijah, contar tudo o que aconteceu e explicar que preciso passar um tempo longe daqui.

   Tenho certeza de que ele não vai concordar, já posso até ouvir a voz dele dentro da minha cabeça: “Não há como fugir, Barus. O destino quer que vocês dois se encontrem e, de um jeito ou de outro, vai fazer isso acontecer.”

   Só que eu não estou nem um pouco interessado no que o destino quer. Sou o dono da minha própria vida e tenho o direito de escolher o caminho que quero seguir. Eu sei muito bem o que acontece quando se deixa o destino decidir as coisas, a dor permanece fresca na minha memória e na minha alma, como um lembrete eterno disso.

   Droga, eu pensei que estivesse a salvo. Passei tanto tempo longe e cheguei a acreditar que essa maldita conexão tivesse ao menos enfraquecida, mas o garoto compartilhou da minha dor física, o que significa que ela permanece intacta e mais forte do que nunca.

   Bem, agora não adianta ficar me lamentando. Vou dar um jeito de resolver isso, ainda que precise me mudar para o outro lado do mundo. Me recuso a ser a chave que abre uma porta que só pode levar a tragédias terríveis, à dor e ao sofrimento.

   Não quero e não vou ser.

                                                 Século XIX – Ano de 1888

   Ethan sobe as escadas e entra no primeiro quarto à direita, conforme lhe indicaram, onde encontra o filho mais velho dos Millers deitado na cama, o pé direito apoiado sobre uma gorda almofada.

   — Com licença. – diz, dando batidinhas com os nós dos dedos na porta para anunciar sua chegada.

   O rapaz assente e ele entra.

   — Sou Ethan Brown, o assistente do doutor Harris. – diz, apoiando sua maleta sobre a cômoda. – Ele pediu que eu aplicasse uma pomada no seu tornozelo, para aliviar o inchaço e a dor.  

   Anthony franze o rosto.

   — O médico está mesmo certo de que se trata só de uma torção? A dor é lancinante e confesso que pensei que tivesse sofrido uma fratura.

   — O doutor Harris é muito competente, você pode confiar nele. – afirma ele, sem responder exatamente à pergunta, já que não pode revelar a verdade. – E fique tranquilo quanto à dor, essa pomada deve lhe trazer um pouco de alívio.

   Na verdade, o conteúdo do frasco nada mais é do que banha de porco. Como ninguém pode ter conhecimento de seus poderes, Ethan precisa usar alguns truques quando cura uma pessoa.

   Ele esfrega um pouco da banha nas mãos e se inclina sobre o pé do rapaz.

   — Você vai sentir uma sensação estranha, um misto de calor e frescor, mas isso significa apenas que está surtindo efeito.

   Anthony assente mais uma vez, então Ethan começa a curar o tornozelo dele, sempre mantendo a palma da mão em total contato com a pele, para esconder a luminosidade causada pela sua magia.

   — Você nunca tinha torcido o tornozelo em alguma das peripécias típicas da infância? – pergunta, para distrai-lo do processo de cura.

   — Não, pois sempre fui um menino muito bem comportado. – responde Anthony, com um sorriso debochado que diz exatamente o contrário.

   Ethan também sorri, sentindo o osso se soldar lentamente sob os seus dedos.

   — Algo em sua expressão me diz que a senhora Miller e as criadas da casa não diriam a mesma coisa.

   Depois de alguns segundos, ele percebe que a fratura está totalmente soldada.

   — Pronto, acho que já massageei o suficiente. – diz, tirando um pano de dentro da maleta e limpando as mãos.

   Anthony arregala os olhos, parecendo surpreso.

   — Essa pomada funciona mesmo, a dor passou completamente, como em um passe de mágica!

   Ethan ri da ironia. Mesmo sem fazer ideia do que havia acabado de acontecer ali, Anthony acertou o alvo em cheio.

   — Mas não vá começar a saracotear por aí, hein? – alerta ele. – Lembre-se de que o doutor Harris lhe recomendou um repouso de no mínimo dois dias.

   O rapaz abre um sorriso largo e iluminado e só então Ethan percebe o quanto ele é bonito.

   — Pode deixar. Tenho certeza de que minha mãe irá ficar me lembrando disso o tempo todo.

   Ethan também sorri, depois guarda o frasco de banha de volta dentro da maleta e a fecha.

   — Bem, já apliquei a pomada e agora tenho que ir embora. Há uma menina com catapora em uma vila vizinha e fomos chamados para vê-la.

   Anthony sorri mais uma vez.

   — Certo. Adeus, senhor Brown.

   — Adeus, Anthony. – se despede Ethan, sentindo um tremor estranho no coração ao deixar o quarto.

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