CAPÍTULO 03

Aurora...

Depois da noite de ontem, não consegui dormir pensando no que meu pai havia falado durante o jantar. Ele me disse que havia colocado o corpo de minha mãe no mausoléu de nossa família e que não descansaria até encontrar o responsável por sua morte. Fiquei emocionada com essa informação, passei a manhã inteira refletindo sobre isso. Meus pais nunca se deram bem, principalmente depois que meu pai casou com Lucinda.

Marquei com ele de irmos até o mausoléu durante a tarde. Logo depois do almoço, meu pai teve que receber algumas pessoas em seu escritório e, pelo visto, o assunto era sério; as expressões de seu rosto o entregavam.

Subi para o meu quarto na expectativa de descansar um pouco, mas não deu muito certo. E agora cá estou eu em plena três da tarde, curtindo a brisa na varanda de meu quarto, esperando a hora de sair chegar. Confesso que, desde o enterro da minha mãe, jamais tive coragem de ir visitar seu túmulo no lugar onde ela estava enterrada antes, talvez por remorso de não ter me esforçado mais para que nossa relação desse certo ou simplesmente covardia.

Minha mãe tinha um gênio muito difícil, tanto que até a própria família a rejeitou, não comparecendo nem em seu funeral. Eu poderia dizer que os entendo, mas estaria me enganando, pois não consigo entender tamanha rejeição mesmo diante de um momento tão delicado.

Minha mãe era uma Havelle, uma família inteira de bruxos poderosos. Minha genética é reforçada por poder, mas só uso em casos extremos. Cada um de minha linhagem desenvolveu um dom especial; minha mãe conseguia ter domínio das mentes, e eu desenvolvi o dom da cura. Posso curar apenas com um toque, o que é de grande ajuda na minha profissão. Nos casos mais graves, quando as espécies não conseguem se curar com suas próprias forças, eu estou lá para ajudá-los.

Eu e Vanessa trabalhamos em um hospital que o governo dos humanos construiu no meio deles. O motivo? Bem, existem lobos, panteras e outros de nós no meio deles; uns trabalhando no FBI, outros são professores nas universidades, e alguns são prefeitos de pequenas cidades. A verdade é que isso é apenas uma fachada que o governo armou para que pudessem ter uma proteção mais avançada bem próxima deles. Como sempre há lutas e sobrenaturais gravemente feridos, o hospital foi fundado para dar apoio, caso precise. Nele, também trabalham alguns humanos com uma reputação importante. Tudo isso é apenas uma forma de não levantar suspeitas sobre o que exatamente é atendido ali.

Então, esse é o nosso acordo de paz com os humanos. Nós os protegemos de perigos relacionados a espécies revoltadas, e eles não nos caçam nem nos expõem, pois não são todos que têm consciência de nossa existência. Caso nossa existência venha a ser revelada, haverá grandes guerras para nos destruir, e em pouco tempo entraríamos em extinção, pois infelizmente, os humanos estão em um número maior que nós, e eles são intolerantes com quase tudo.

Poderíamos matar um a um, mas não somos assassinos. Só matamos se nos sentirmos ameaçados; caso contrário, a paz é para todos.

Me tornei veterinária por amor ao meu povo, pois sei que são poucos os que se arriscam a viver no meio dos humanos. Como fui abençoada com o dom da cura, vejo como um dever meu ajudá-los a nos proteger, mesmo que isso seja algo extremamente perigoso e talvez suicida. Como filha de um alfa, não teria essa obrigação se não quisesse, mas acontece que eu quero, e há muitos que precisam de mim. Meu pai nunca concordou com minha decisão, mas sempre respeitou; já minha mãe nunca se importou de nenhuma forma.

__O que está fazendo? - Perguntou Vanessa, parando ao meu lado.

Olhei para ela e sorri.

__Não consegui descansar, então me adiantei, me arrumei e vim para cá sentir a brisa.

__Está ansiosa? - Ela perguntou, sentando em uma das poltronas que havia ali.

Fiz um curto silêncio antes de respondê-la:

__Eu não sei o que estou sentindo, estou com um aperto no peito e uma vontade imensa de chorar, parece que minha alma clama por algo que perdeu.

Ela ficou a pensar um pouco, até que falou:

__ Isso é o luto. - ela levantou e me abraçou- mesmo que sua relação com sua mãe não tenha sido das melhores, ainda assim ela é sua mãe e obviamente você sente a falta dela.

__Tem razão. -voltei a olhar para a floresta estranhamente silenciosa- Você quer me acompanhar?

__Esse momento você precisa ficar sozinha, eu vou estar aqui quando chegar, eu sempre vou estar perto de você.- Ela abriu um sorriso antes de se virar e entrar no quarto.

Não falei nada. Vanessa tem se mostrado uma grande amiga, ela nunca me deixa sozinha mas agora eu concordo com ela, esse momento precisa ser entre mim e... o corpo da minha mãe ou... o que sobrou dele.

...

Olhei no relógio e vi que já eram quatro e meia, passei tanto tempo aqui que nem notei a hora passar. Dei de ombros e entrei no quarto vendo Vanessa concentrada em um livro de receitas, por incrível que pareça ler livros de receitas estranhas era seu passatempo favorito.

__Você já vai? - Ela levantou a cabeça para me encarar.

__Sim.

__Seja forte, garota. - Seu olhar era pesaroso.

__ Não tenho muita escolha.- Digo com um certo humor antes de rodar a maçaneta da porta e sair do quarto.

Quando passei pelos largos corredores cobertos por fotos antigas nas paredes, fiquei mais abalada do que já estava, pois percebi a foto de um garotinho segurando uma bola, ele sorria para alguém; havia apenas dois dentinhos em sua boca, o que o deixava mais lindo, além de seus cabelos negros como os do meu pai. Senti uma lágrima solitária escorrer sobre o meu rosto quando as memórias saudosas do passado vieram à tona, mas tratei de enxugar rápido e continuei a andar em passos lentos, pois já estava começando a me atrasar.

...

Quando cheguei nas escadas, vi que meu pai e sua companheira já estavam na sala. Os olhos de Lucinda estavam vermelhos, entregando que ela havia chorado e eu já imaginava o motivo, mas isso era um assunto que precisava de mais tempo para conversar, então farei isso uma outra hora.

__Oi.

Tentei transparecer que não tinha notado os olhos vermelhos de minha madrasta, mas não conseguia desviar os olhos dos dela, então optei por apenas não tocar no assunto.

__Oi querida.

Ela foi a primeira a responder, meu pai parecia perdido em seus pensamentos e meu coração se apertou ao vê-los naquele estado.

__Tudo bem? - Perguntei, mas sabia que não, embora ela diga que sim.

__Está. - ela forçou um sorriso - quer comer alguma coisa?

__ Não estou com fome.

__ Tudo bem, me dêem licença. - Lucinda se retirou, ficando agora somente eu e meu pai.

Ele estava pensativo, mas assim que me notou o olhando, tentou disfarçar abrindo um sorriso.

__Você não precisa fingir que está bem - me aproximei tocando seu rosto - não temos segredos, lembra?

Ele assentiu e eu o abracei.

__ Hoje é um dia difícil! ... quer dizer, um dos dias mais difícil dentro de todos esses anos.

Levantei a cabeça para olhá-lo e vi a tristeza em seu olhar.

__ Eu sei. - suspirei - mas... Sabe de uma coisa?

__ O que, filha? - Ele me olhou confuso.

__Não podemos perder as esperanças, eu sei que uma hora ou outra Vicente vai voltar pra casa. Vamos encontrar ele, eu prometo.

__Você é muito otimista. - Ele me apertou em seus braços.

__Herdei de você. - sorrio - não precisa me acompanhar, Lucinda precisa mais de você do que eu, nesse momento.

Ele se afastou para me olhar.

__ De forma alguma, não vou deixar você sozinha por aí com um assassino a solta.

__ Papai, eu passei praticamente dez anos sozinha aprendendo a me defender dos perigos fora daqui. - Arqueio uma sobrancelha.

__Você nunca esteve sozinha, Aurora. Tinha sempre lobos se certificando que você estava segura.

__Eu não sabia disso. - Cruzei os braços e o olhei incrédula.

__É claro que não, eu sabia que você não concordaria assim como eu nunca concordei de você ficar em meio aos humanos.

Franzi o cenho.

__ Estão o papel de pai compreensivo foi apenas uma atuação?

__Mais ou menos, por um lado eu compreendi tanto que permiti você ir.

Sorrio.

__Bem, de qualquer forma acho que deveria ficar aqui com Lucinda.

__Posso fazer isso depois.

__Pai, por favor.

__ Ah. Tudo bem, Aurora. Mas me prometa que vai tomar cuidado.

__ Prometo.

__ Então tudo bem. - ele beija minha testa como sempre faz antes de se retirar - o supremo vai chegar hoje, esteja aqui para cumprimentá-lo.

__Está bem, estarei aqui sem falta.

Ele assentiu e se retirou.

Quando sai de casa, pensei em ir como loba até o mausoléu, mas me lembrei do estábulo que havia a poucos metros de onde estava e, como amo cavalos, resolvi ir pegar um, já que é apenas uma viagem rápida.

☆☆☆

Estava passeando pela alcatéia montada sobre meu cavalo; seu pelo negro brilhava quando os pequenos raios de sol atravessavam as copas das árvores e refletiam nele. Observava com atenção as pessoas fazendo suas tarefas diárias, tentava cumprimentar a todos que via pela frente. As pessoas daqui eram bem gentis, ou pelo menos a maioria delas. Alguns me olhavam com admiração e faziam reverência, mas havia outros que me olhavam com desdém e ignoravam totalmente minha presença, principalmente as mulheres.

Segui um pouco mais rápido pela estrada de terra que ficava entre as árvores; o vento batia em meu rosto, dando-me sensação de liberdade.

...

Depois de um tempo cavalgando distraída com meus pensamentos, cheguei em meu destino. Se me perguntassem como cheguei ali, eu não saberia responder, pois não estava atenta ao caminho. Passava pelos túmulos, olhando as lápides com atenção.

Senti raiva ao ver aqueles túmulos, pois cada um que estava enterrado ali morreu vítima de alguém, tendo sua vida e seus sonhos roubados. Dizem que somos imortais, mas não é bem assim como pensam; podemos sim, morrer, não por qualquer coisa, mas ainda assim podemos morrer como qualquer outro ser vivo.

Ainda montada em meu cavalo, fiz com que ele andasse mais rápido, até que consegui ver o mausoléu onde o corpo de minha mãe estava.

Desci do cavalo e o prendi sob um velho tronco de árvore. Soltei o ar que nem sabia que prendia nos pulmões e arrisquei subir o primeiro degrau que precisaria subir caso quisesse entrar no lugar. Fui subindo um a um, e quando cheguei na entrada do lugar, vi uma grande placa feita de cristais e safiras, com a frase "Em memória de Cristal Havelle". Não consegui me segurar e deixei que as lágrimas caíssem, meus ombros se contraíam na medida em que eu arriscava a dar mais um passo.

Ao ver um caixão feito por metal no centro do lugar, me abaixei, encostando minha cabeça no material frio. Não poderia abrir, pois o corpo de minha mãe não estava inteiro devido à forma violenta em que foi morta.

__ Eu sinto muito. - sussurrei - eu sinto por não ter me esforçado mais, eu sinto por ter desistido de você e eu te odeio por me rejeitar como também te amo por não poder evitar.

Comecei a esmurrar o metal até sentir o sangue fresco escorrer por minhas mãos.

__ Por que teve que terminar assim, mamãe? Poderia ter sido diferente.

Um grito escapou de minha garganta e se misturou aos soluços que vinham junto às lágrimas amargas. Por um instante, tudo ficou em silêncio; olhei em volta e, quando dei o primeiro passo para sair dali, senti ser engolida pelo chão para logo ser jogada em um lugar macio e completamente escuro.

"O que é isso?"

As luzes do lugar se acenderam, fazendo-me ver que estava sobre  uma cama coberta por lençóis brancos.

Um desespero me invadiu.

__Ahhh

__Força, meu amor.

__Está quase lá, querida.

Os gritos de uma mulher dando à luz preencheram meus ouvidos, e me virei na direção das vozes, vendo duas mulheres e um homem ajudando uma moça que sentia muitas dores. Seus rostos estavam borrados, e só havia luz na cama onde estavam.

__ Você tem que ir, meu amor. - Dizia a mulher para o homem ao seu lado.

__ Eu não vou sem você. - Disse ele, abraçando-a.

__Não, eu não vou conseguir a tempo... Ahhhh - Ela gritou, colocando mais força para que seu bebê nascesse.

__Vai sim. - Dizia a mulher que segurava sua mão.

__ Falta só mais um pouco. - A que fazia o parto falou, abrindo um sorriso.

Eu observava tudo em estado de choque e podia sentir a tensão que havia entre eles.

O quarto agora era preenchido pelo choro do bebê.

__ Nasceu. - Disse o homem pegando o bebê em seu colo.

"Conheço essa voz"

Ele estava de costas para mim, e quando se virou, consegui ver claramente seu rosto.

"Não pode ser"

É ele... Papai!

Abri os olhos de uma vez e vi que ainda estava agachada perto do caixão; meu peito subia e descia sem parar. Pela primeira vez, consegui ver o rosto de alguém nessa visão que venho tendo há exatamente três meses.

___ Isso é obra sua. - Levantei-me rapidamente, olhando fixamente para o caixão sujo com meu sangue - O que quer me mostrar nessa visão? ... ME FALA DE UMA VEZ! - Gritava desesperada.

Voltei a me aproximar dela com relutância.

__ Por mais que eu te ame, não consigo perdoar sua rejeição, mas se essa visão tiver alguma coisa a ver com sua morte, passarei por cima de toda essa mágoa que tenho de você e não deixarei sem punição seu assassino.

Eu prometo "

Levantei-me de onde estava e olhei com ira para o caixão antes de sair dali.

Me sentia uma idiota por só falar o que sinto depois que minha mãe já está morta. Achei que vindo aqui, minha mágoa sumiria, mas me enganei, pois só aumentou. Desci os degraus da pequena escada e desamarrei meu cavalo com pressa.

Antes de sair dali, olhei uma última vez para trás e cerrei os punhos, cobertos por sangue.

__Eu te odeio, Cristal. - Disse, mesmo sabendo que no fundo aquilo não era verdade, mas eu precisava botar para fora o que eu sentia no momento.

Fiz o cavalo correr rápido pela estrada de terra; suas patas faziam a poeira levantar, mas não me incomodei, pois agora só conseguia sentir raiva e desejo de vingança se aflorarem perigosamente dentro de mim.

...

Quando já estava perto de chegar na estrada principal, vi uma movimentação; as pessoas faziam uma reverência para alguém que estava em um carro.

O supremo vai chegar hoje, esteja aqui para cumprimentá-lo."

Lembrei do aviso de meu pai e deduzi que quem estava naquele carro não era ninguém menos que o próprio supremo. Como vi que ele já havia passado por minha casa e eu ainda estava ali, resolvi ir cumprimentá-lo dali mesmo.

Fui me aproximando de onde ele estava; a ira que sentia sumiu completamente quando parei próximo a ele.

Quando ele me notou, mandou que seu motorista parasse o carro; ele pareceu ficar bastante surpreso e... hipnotizado? Ele não parava de me encarar; senti meu rosto queimar e fiquei sem saber o que fazer, mas não deixei de notar sua beleza extrema e dominante; seus olhos eram intensamente dourados como o ouro, seus cabelos eram castanhos e iam até abaixo de seu pescoço.

Sorri para ele depois de acenar com a cabeça, e ele retribuiu, mostrando seus dentes brancos e bem alinhados.

"Que lindo"

Por um instante, esqueci totalmente do momento delicado que acabei de passar; ao cair a ficha, dei meia volta e segui caminho de volta para casa, sentindo as lágrimas voltarem a se formar, dessa vez parecia ter um motivo maior que eu desconhecia, mas que me causou uma dor terrível na alma, como se um pedaço de mim tivesse sido arrancado à força.

(...)

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