Paulo olhou para as flores em sua mão enquanto a porta do quarto fechava atrás de si. O jovem arrumou os cabelos e jogou o ramalhete em uma lixeira, não precisava mais delas, já havia encontrado quem procurava. O rapaz seguiu em direção à saída do hospital parando, ao escutar o som de uma voz familiar. Ao virar, se deparou com Miguel que o encarava.
— O que faz aqui? — Miguel indagou, se aproximando do outro.
Paulo sorriu reconhecendo o médico, mesmo depois de tantos anos o outro não havia mudado praticamente nada. Ainda mantinha o semblante sério e o constante alerta contra tudo e todos, era realmente um dos cachorrinhos que seu pai havia domado.
— Agora entendi o motivo de ter tido tanta dificuldade em rastreá-la, o cheiro dela estar disfarçado com o seu! — Paulo falou o encarando. — Achou que a Alcateia não ia encontrar a garota em algum momento? Tem sorte que fui eu, e não um sanguessuga cheio de raiva ou alguém que quer sua cabeça. Sei que tem muita gente que não gosta de você, doutor. — Paulo finalizou com tom de ironia e sorriu de lado, erguendo uma das sobrancelhas. — Seu trabalho terminou, é minha hora de entrar em cena. Obrigado por ter cuidado da garota.
Miguel deu passagem para o outro que continuou seu caminho naturalmente, de forma despojada, como se tivessem acabado de ter uma conversa amigável. O médico olhou para Paulo e sentiu um calafrio, era como ver um fantasma do passado que voltava depois de anos para o assombrar. Se um rastreador estava na cidade, provavelmente outros lobisomens viriam depois.
***
Giovanna e Mariana seguiam pelos corredores do mercado à procura do que seria o petisco ideal para a noite de filmes. O sol quente lá fora fazia o dia ser preguiçoso e poucas pessoas estavam no estabelecimento naquele horário. Giovanna tinha sido a primeira amiga que Mariana fez quando se mudou para a cidade e, desde então, eram grudadas. Passavam a maior parte do tempo na casa da garota, de cabelos cor de fogo, que vivia junto de sua avó. Naquele fim de semana não seria diferente, iriam para a casa da garota para comemorar o aniversário de dezoito anos de Mariana. As duas pararam em um dos corredores e, enquanto olhavam as prateleiras, conversavam sobre os acontecimentos no hospital.
— Então, o invasor de quarto é mais bonito ou não do que o Nicolas? — Giovanna perguntou, referindo a um dos garotos da escola em que elas estudavam. — De uma forma geral!
— Não sei! — Mariana deu de ombros. — Não são belezas que se podem comparar, o Nicolas está mais para um lorde inglês, com os olhos verdes e cabelo castanho-claro, como se tivesse saído de um conto de época, enquanto que o Paulo parece mais um cantor de K-pop, com um toque de roqueiro dos anos noventa.
— Gostei dessa comparação! Com ela posso ser um druida gaélico e você uma princesa africana muito poderosa! — Giovanna brincou, sorrindo. — Pareço a vovó falando sobre druidas. Mas você não ajudou, amiga! Como vou saber o nível de beleza da pessoa se você não me conta as coisas direito?! Custava ter tirado uma foto dele? — Giovanna falou rindo. — Imagina só: Você chegava nele e falava “Já que você invadiu meu quarto me deve uma foto”! — A garota riu enquanto imitava a voz da amiga.
Mariana colocou um dos pacotes novamente na prateleira enquanto olhava distraída para a amiga. A garota riu ao ver, por sobre o ombro de Giovanna, quem havia acabado de entrar no corredor no qual eles estavam. O cabelo preso em um coque e uma jaqueta de couro levemente desgastada fazia jus à descrição que ela havia feito de Paulo.
— Amiga! Não olha agora, mas ele tá bem ali! — ela cochichou.
Giovanna virou vendo o homem de cabelos longos que estava lendo o rótulo de uma embalagem, ele tinha um sorriso disfarçado, como se estivesse escutando a conversa das garotas. Paulo ergueu a cabeça notando que as duas estavam olhando e sorriu, acenando e indo até elas.
— Mariana, certo? — perguntou quando estava perto. — Está se sentindo melhor?
— Eu estou ótima! — respondeu sorrindo enquanto covinhas apareciam em suas bochechas — E sua irmã, está melhor?
— Ela tá bem melhor, mas infelizmente ainda no hospital! — Paulo faz um muxoxo.
— Oi! Sou a Giovanna! — A garota falou, estendendo a mão para Paulo com um sorriso no rosto.
— Paulo! — Ele respondeu, apertando a mão de Giovanna. — Bem, eu tenho que ir, vou levar umas coisas pra minha irmã.
Paulo saiu deixando as duas. Giovanna virou para Mariana com um sorriso enorme nos lábios, dando uma cotovelada na amiga.
— Não é por nada não, mas se ele invade meu quarto eu não deixo sair! — falou rindo.
— Meu Deus, Giovanna! — Mariana riu enquanto as duas seguiam para o caixa.
***
A noite já havia chegado e as ruas eram iluminadas apenas pelos postes, enquanto a lua crescente era parcialmente encoberta por algumas nuvens que se formavam no céu. Miguel desviou o olhar do céu noturno para a porta da casa destrancada e respirou profundamente, reconhecendo cada cheiro da noite, enquanto seus olhos se tornavam castanho-claros, praticamente amarelos. O homem parou, reconhecendo o cheiro do invasor, e entrou na casa encontrando Paulo sentado no sofá comendo pizza e assistindo desenho animado na televisão.
— Não lembro de ter te convidado para vir até minha casa! — Miguel falou, ligando a luz.
— Você é sempre muito mal humorado! — Paulo olhou o outro por sobre o ombro. — O que faz sentido, já que você foi criado pelo meu pai e, além disso, sabe o que acontece daqui a dois dias. Consigo sentir seu medo!
— Sei muito bem o que está por vir! — Miguel engoliu a seco. — Vai ser a primeira lua cheia dela.
Paulo sorriu levantando do sofá e desligou a televisão. Ele caminhou enquanto lambia os dedos sujos de molho, parando em frente a Miguel. O médico era quase um palmo maior que o outro e sua estatura física também era mais robusta. Mesmo assim, Paulo não parecia intimidado.
— Espero que ainda tenha o quarto no porão. A floresta daqui não tem uma árvore decente para prender a garota, e não queremos ela por aí na primeira lua cheia. Sabemos dos estragos que podem ser causados.
— Pretende prender ela em uma jaula? — Miguel o encarou. — Vai tratar uma de nós como um animal?! Achei que você não queria seguir os passos…
— Não fale dele! — Paulo esbravejou interrompendo o médico. — Não vou tratar ela como animal, só não quero um de nós em frenesi andando por aí. Sabe muito bem que com ela sob controle posso arrumar comida e depois explicar essa merda toda. É muito mais humano do que deixar que ela saia por aí e se torne uma assassina, sem ter controle de suas ações. Eu tenho certeza que não são todos de nós que conseguem viver com a culpa de matar um humano — Paulo encarou Miguel de forma desafiadora, tocando suas feridas do passado.
Miguel respirou fundo, queria poder partir aquele garoto ao meio. Não seria a primeira vez que fazia aquilo com alguém. Mas, no fim, sabia que os métodos nada ortodoxos dos Takhon eram a melhor escolha e Paulo estava certo, o frenesi acabava com qualquer parte humana na besta em que se transformavam. Ele foi até o chaveiro e entregou uma chave para Paulo que o olhou, sorrindo.
— Só dessa vez!
— Não me lembro de pedir outras vezes! — Paulo deu de ombros. — Obrigado por entender. Vai ser o melhor para todos.
— Faço isso por ela e não por você — o médico enfatizou.
— Deveria fazer isso por todos nós! — Paulo bufou. — São tempos perigosos, e essa cidade parece não ter mais nenhum da nossa espécie vivendo aqui, além de você. — Ele parou, olhando para outro.
— Faz muitos anos que a Alcateia abandonou este lugar à própria sorte. — Miguel respondeu organizando as coisas que havia comprado.
— Entendo! — Paulo sorriu, olhando para o outro que mantinha a aparência séria. —Eu esqueci de falar, preciso de um quarto também. Estou sem casa e, mesmo que tenha abandonado esse fim de mundo, a Alcateia conta com o apoio de todos para com os rastreadores.
Miguel bufou, não gostava dos rastreadores. Eram lobisomens de sangue da primeira linhagem, sem nunca terem se misturado com humanos e se achavam melhores do que os outros por conseguirem farejar futuros lobisomens. Mas, mais do que isso, não gostava da Alcateia, preferia ajudar Paulo do que ter mais dos outros por lá.
— Porta da direita no segundo andar! — Ele falou, seguindo para a sala. — Outros estão para vir?
— Não precisa se preocupar, sou apenas eu, ninguém mais vai vir para essa cidade.
Paulo sorriu, se ninguém havia aparecido até agora queria dizer que estavam encobrindo seus atos. Além disso, agora poderia ficar tranquilo, pois seria muito mais fácil passar por aquela lua cheia tendo um lugar apropriado. Assim estariam preparados para qualquer coisa inesperada e não colocariam ninguém em risco.
Nicolas entrou na casa de fazenda fora da cidade, jogando a mochila sobre o sofá. Ele sentia-se patético em ter que fingir ser um aluno do ensino médio, mas era assim que o Clã do qual fazia parte estava sobrevivendo a tanto tempo sem ser perseguido. Sua função era procurar e eliminar todo futuro lobisomem não permitindo o aumento do número de membros da outra espécie. Dara se aproximou dele, os olhos vermelhos da vampira pareciam duas brasas em chamas contrastando com a pele cor de ébano da mulher que quase sempre mantinha sua forma das sombras.— O Ian quer falar com você! — Dara falou sentando-se no sofá.— Claro!Nicolas seguiu para os fundos da casa, abrindo a porta de onde funcionava o escritório de Ian. Sobre um sofá, uma jovem estava desacordada com o pescoço sangrando, os cabelos claros da garota tomavam um tom avermelhado em contato
Miguel olhou pela janela, o céu ostentava uma enorme lua de cor amarelada. O homem respirou fundo, tinha mantido Mariana em segurança desde o dia em que a havia conhecido, quando ela chegou à cidade, mas depois da próxima noite não poderia mais protegê-la. A garota estaria entregue ao seu destino. Paulo se aproximou do outro na janela.— Eu tenho uma pergunta — ele falou, tirando a atenção de Miguel — Por que ninguém despertou nessa cidade há centenas de anos? Uma coisa é a Alcateia ter abandonado o lugar, outra completamente diferente é não acontecer nenhum despertar.— É o que sempre me pergunto! Quando eu fazia parte da Ordem, estávamos de olho nos desaparecimentos de crianças da cidade. Tínhamos uma suposição de que elas poderiam ser lobisomens ainda não despertos, mas a teoria acabou não dando em
Mariana acordou ainda tonta e quis esfregar os olhos, mas não conseguia levar a mão no rosto, pois estava acorrentada. A garota tentou puxar as mãos, mas as algemas das correntes eram muito justas. Ela olhou ao redor, notando que além de acorrentada estava em uma jaula, do lado de fora Giovanna estava amarrada em uma cadeira.— Giovanna. — A garota murmurou, tentando acordar a outra sem chamar atenção de quem as havia prendido. — Giovanna, acorda!Mariana tirou um dos calcanhares dos tênis jogando o calçado na amiga que acordou assustada.— Minha Nossa Senhora de Lourdes! — Ela gritou, balançando a cadeira de um lado para o outro antes de cair no chão. — Que merda é essa? Socorro! Meu tio é da polícia, vai ficar sabendo disso!— Para de gritar, sua idiota, precisamos achar uma forma de fugir — Giovanna olhou para amiga,
Paulo corria, sob sua forma da besta, em direção ao rastro do fedor dos vampiros, o cheiro estava cada vez mais forte. Ele ficou novamente sobre duas patas, farejando a trilha, quando foi atingido por uma vampira. O lobisomem bateu contra uma árvore e logo se levantou, vendo a mulher em posição de ataque com as presas aparecendo. Aquele seria um alvo fácil, ela tinha tido a vantagem do efeito surpresa e não a aproveitou para acabar com ele ou mordê-lo, agora estava totalmente vulnerável contra o lobisomem, maior e mais forte do que ela.Paulo ergueu o tórax, uivando, enquanto ela sibilava em sua direção. Ele foi ao encontro da vampira que correu ao seu encontro, preparada para atacar. O lobisomem agarrou a mulher pelos cabelos, batendo-a de um lado para o outro, antes de segurá-la pela cabeça a erguendo até a altura dos olhos. Os olhos do lobisomem brilharam sob o luar enqu
Paulo olhou para Giovanna, a humana estava tranquila, o que era um bom sinal. Outros humanos não tinham uma boa reação com a verdade, mas ela estava totalmente calma. Era essa tranquilidade que havia garantido a sobrevivência da garota na noite anterior, quando haviam lhe contado toda a verdade sobre o que eram. Como resposta a garota falou que não havia problema naquilo, contanto que ela pudesse ajudar Mariana.— Não é a primeira vez que vê um lobisomem! — Paulo perguntou para a garota que estava deitada no sofá.— Meu bisavô era um homem peculiar e numa noite o vi de madrugada — Giovanna parou pensando — ele provavelmente estava voltando a “ser gente”. Por anos achei que era coisa da minha cabeça, até a noite passada! Deveria ter perguntado para minha avó, ela sempre jogou indiretas sobre essas coisas.Paulo riu do termo “volt
Mariana suspirou antes de parar em frente de casa, suas mãos estavam trêmulas e, só então, ela notou que os dentes rangiam de nervosismo. Sua vida não era mais a mesma e, a partir daquele momento, teria que mentir para as pessoas que mais amava. Infelizmente aquilo era uma regra entre as outras espécies: evitar que os humanos descobrissem sobre suas existências. Dessa forma, conseguiam garantir a segurança de todos por milhares de anos.A garota destrancou o portão e colocou um sorriso falso no rosto, entrando na casa. O lugar estava silencioso, provavelmente a mãe estava cuidando da loja. Na sala, algumas fotos da família fizeram seus olhos se encherem de lágrimas. Aqueles dias nunca mais voltariam, ela não seria mais a mesma. Mariana conteve as lágrimas, sentia falta do pai naquele momento mais do que sentiu em toda sua vida. Talvez ele poderia ter a ajudado. Se ele ainda estives
Nicolas olhava enquanto Thiago andava de um lado para o outro, visivelmente impaciente, estavam trancados em um pequeno mausoléu no cemitério da cidade. Tinham saído para procurar o futuro lobisomem, mas se esconderam depois que Nicolas reconheceu o cheiro da criatura que caçavam como sendo de um membro da linhagem dos rastreadores lobisomens. Não arriscariam uma luta direta com a linhagem pura dos lobisomens. Teriam de ficar no esconderijo até o pôr do sol quando finalmente poderiam retornar para a fazenda. O lugar empoeirado tinha uma mistura de cheiros de flores de cravo e morte recente, o odor forte incomodava Nicolas. Gostava de humanos enquanto ainda vivos, depois da morte não tinham mais nenhuma utilidade para sua espécie, daquela forma eram apenas repugnantes.— Escutou o uivar ontem à noite? Acha que vai ser seguro você continuar com seu plano de se tornar um híbrido? — Nico
Os dois lobisomens corriam lado a lado pela floresta. Mariana sentia-se livre como nunca havia se sentido em toda sua vida. Os pequenos animais que viviam por lá fugiam deles, mas aquilo não era um problema. Não estava lá procurando por coelhos, seu alvo era uma presa bem maior. A jovem lobisomem pulou por sobre uma árvore caída enquanto farejava o ar. O odor forte dos vampiros de alguma forma parecia a atrair e era aquele cheiro que ela estava perseguindo.Mariana olhou para Paulo ao seu lado, os dois não podiam se comunicar verbalmente, mas era como se suas mentes fossem apenas uma enquanto estavam na forma animalesca. Era hora de testar o quão potente seu faro era naquela forma. Ela ficou sobre as duas pernas farejando suas presas, mas o cheiro não remetia a apenas um, talvez houvesse muitos deles. Paulo notou a mesma coisa, aquele não seria um bom lugar de caça. Se existia um clã, eles est