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Capítulo 4 - Fraternalmente amigos

“Aproveite cada dia como se fosse o último, valorize cada momento. Afinal, nunca se sabe quando sua hora vai chegar.”

Sara Aster.

Não tive sonhos. Muito menos uma noite tranquila. Desde que eu havia chegado àquela casa, nenhuma noite havia sido tranquila. Minha mãe talvez chegasse no dia seguinte de noite. Imaginava como seriam as coisas após sua volta. Fiquei uns trinta

minutos pensando nos últimos dias e em como seriam os próximos. Pensando em Daniel. Será que aquilo tudo era alguma brincadeira de mau gosto? Será que ele tinha percebido o escândalo que meu coração fazia perto dele? Tantas coisas, tão pouco tempo. ”Todas as dificuldades vem acompanhadas de meios para solucioná-la, Elisa ”, Ana disse uma vez, e desde então essa frase já tinha me consolado inúmeras vezes em menos de uma hora.

Não podia me render à vontade de me flagelar pensando em como era errado sentir aquelas coisas estranhas quando estava perto do meu próprio irmão, então levantei e tomei o banho mais frio que pude. Tremi por alguns minutos. Naquele momento aquilo não parecia mais algo necessário, mas na hora pareceu uma boa ideia. Coloquei um vestido rosa claro rodado e uma sapatilha branca. Penteei meus longos cabelos castanhos e desci para tomar café. Com certeza Daniel não estaria lá. Não me importava. Assim poderia pensar melhor em tudo o que estava acontecendo.

– Bom dia, Mercedes. - dei um sorriso.

– Bom dia, criança. - era incrível como as pessoas naquele lugar arranjavam apelidos carinhosos pra mim. - O que quer comer hoje?

– Hoje só a vitamina. - disse me sentando.

– Certo. Seu irmão mandou lhe avisar que ele está no salão de esportes. Pediu para que fosse até lá após terminar seu café. – pra cada coisa tinha uma sala. Juro que ainda planejava uma excursão por toda aquela casa. Eu precisava de um mapa pra me situar ali.– Não se preocupe. Eu te levo lá. Precisarei limpar alguns móveis ali por perto. – fiquei mais calma, já que não perderia algumas horas do meu dia só procurando o bendito salão. - Aqui está sua vitamina.

– Obrigada. - tomei rapidamente, escovei meus dentes e ela me levou até o salão de esportes.

Fomos em silêncio, não queria falar. Segui sozinha pelo corredor, pois Mercedes teria que limpar os móveis de um dos primeiros cômodos que vimos. Ao abrir a porta vi duas pessoas praticando esgrima, eram muito habilidosas, mesmo após abrir a porta eles não perderam a concentração. Sentei-me numa cadeira perto da porta e fiquei observando-os. A luta era de um nível um tanto mais avançado que o normal. Quando era menor, fiz algumas aulas de esgrima por um ano, então tinha uma noção de como as coisas funcionavam, quem sabe até poderia arriscar um dia voltar a praticar.

Estava me sentindo um vegetal naquele lugar. Já havia se passado trinta minutos e era como se eu não estivesse ali. Já estava ficando incrivelmente irritada. Até que o esgrimista do lado esquerdo ficou sem a espada e por isso acabou perdendo para o da direita. Ainda bem que tinha acabado, acho que se ficasse ali mais alguns minutos sendo ignorada me retiraria. E então eles vieram em minha direção.

– Está melhorando, Marisa. Mas não o suficiente pra me vencer. - dizia o esgrimista da direita enquanto tirava o capacete. Pude ver que era Daniel.

– Ainda, Daniel. Ainda. - dizia sua adversária, agora retirando seu capacete. Então era ela a Marisa de que tanto Daniel falara noite passada? Loira, baixinha se comparada a Daniel, olhos azuis, branca como porcelana. Simplesmente linda. Ao lado de Daniel, os dois pareciam anjos de decoração barroca. Ele com seus olhos de ameixa penetrantes e ela com seus olhos tão transparentes quanto água.

– Elisa, desculpe por te deixarmos mofando nessa cadeira, mas não podia perder pra essa pirralha. - falou enquanto bagunçava o cabelo dela.

– Ô garoto, desde quando eu sou pirralha? Esqueceu que nós temos a mesma idade? - mostrou irritação em sua voz.

– Marisa, você só tem idade. Isso é um fato. – Marisa mostrou a língua e Daniel riu. Eu me senti um peso de papel ali. O relacionamento que eles tinham era tão harmonioso. Não precisavam de mais uma pessoa. - Elisa, essa é a Marisa de quem tanto eu te falei ontem.

– Olá, Elisa. - mostrou seu sorriso encantador. Na verdade, tudo nela era encantador. Parecia ser tão delicada, mas ao mesmo tempo tão cheia de vida. Definitivamente linda. Marisa parecia ser do tipo que não se deve dar açúcar.

– Olá... Marisa. Você luta muito bem. - tentei parecer o mais simpática possível, mas pessoas com tanto brilho próprio geralmente me assustavam e eu tentava manter distância. Pessoas assim geralmente costumavam querer saber mais sobre mim, costumavam me fazer sentir amada e depois simplesmente me ignoravam.

– Obrigada, amiga. – se aproximou de mim e envolveu seu braço em meu pescoço. - Espero que um dia você possa me ver derrotando esse chato. - Daniel resolveu ignorar. Eu só conseguia encarar seu braço sobre mim, estática. Ela havia me chamado de amiga? Como ela podia chamar de amiga alguém que acabara de conhecer?

– Então, meninas, o que querem fazer hoje? Estou à disposição de vocês. – disse e juntou-se a nós.

– Vamos fazer o almoço? Adoro a comida que você faz, Daniel. Depois a gente pode ir nadar no lago. O que vocês acham? - perguntava Marisa.

– Por mim tudo bem. E você, Elisa? Topa?

– Lago? Não gosto muito de lugares com água. – sorri meio sem jeito.

- Mas por quê? É tão divertido! Você por acaso não sabe nadar?

- Não é isso... – sentia os olhos de Daniel sobre mim, pacientes, compreensivos.

- Então, o que é? – ele perguntou seriamente.

- Nada. – eu preferia enfrentar o lago a meus problemas. – Vai ser divertido, não é mesmo? – sorri, encorajando Marisa.

- Mas é claro!

Dispensamos Mercedes, dando a ela um dia de folga. Cozinhar foi divertido, e acabei começando a ser conquistada por Marisa. Ela era do tipo que falava tudo na hora, não levava desaforo pra casa, porém sem fazer esses barracos que o povo arranja. Adorava moda, já tínhamos até combinado de ir ao shopping comprar roupas novas e meu material escolar. Na verdade, ela tinha combinado tudo em um monólogo.

A cozinha ficou uma zona. Isso porque Daniel ainda estava supervisionando. Acho que aquela havia sido a primeira experiência como cozinheira da minha nova “amiga”. Nunca tinha rido tanto em toda a minha vida.

A comida estava gostosa. Almoçamos e fomos dar um jeito na bagunça que tínhamos feito. Eu lavei a louça, Marisa limpou o fogão, a geladeira e varreu o chão. Daniel arrumou os armários. Deixamos a cozinha impecável. Terminamos tudo por volta das três horas da tarde. Era a hora de ir para o lago.

(...)

A garota no espelho me encarava vestindo seu maiô, ela não parecia a mesma Elisa. Suas pupilas estavam dilatadas, seu rosto pálido, sua respiração ofegante.

- É só um lago. – falava a mim mesma na esperança de que aquilo fizesse algum efeito. – Não vai acontecer nada.

Olhei para o meu pé, lembrando do que havia acontecido naquele dia e sentindo um tipo de dor como se tudo estivesse acontecendo naquele exato momento. O ar parecia se esgotar e o desespero só aumentava.

- Vai ficar tudo bem, é só um lago. – minhas mãos suavam descontroladamente. Deus, era tão difícil assim parecer alguém normal?

- Elisa, posso entrar? – Daniel mostrou somente o rosto, pedindo permissão. Me cobri rapidamente com o roupão.

- C- claro. – ele sorriu encantadoramente e entrou.

- Gostaria de falar com você. – sentou-se na cama. Eu apenas conseguia acompanha-lo com o olhar.

Ele esperou que eu sentasse ao seu lado, mas como não pude fazê-lo, Daniel me encorajou dando leves batidinhas na cama. Me forcei a dar alguns passos. O suficiente pra chegar à cama. Eu estava tão tensa que o máximo que pude fazer foi sentar na extremidade oposta a ele.

- Aconteceu alguma coisa com você?

- Oi? – por um momento senti o calor deixar meu corpo e ser substituído por uma massa de ar

fria.

- Desde que Marisa sugeriu irmos ao lago você me parece tensa. Sabe que pode tomar banho de roupas, né?

- Quê?

- Se você tiver vergonha do seu corpo...

- Não é isso. – falei rapidamente, me arrependendo logo em seguida.

- O que é então? Você tem algum tipo de fobia?

- Não! – alterei a voz. Droga! As coisas não eram pra ser assim. – E - eu só não tive experiências muito boas.

Ele não me perguntou mais nada. Apenas sorriu e se levantou.

- Bom, acho que é hora de transformamos essas experiências em coisas muito boas, que tal? - me ofereceu uma de suas mãos.

Daniel era diferente. Ele não me olhava de cara feia como os outros, ele não tentava ser indiferente aos meus problemas. Era difícil de explicar, mas acho que a resposta pra todas as minhas perguntas seria “Porque sim”. Me senti confiante com o apoio dele, nada parecia difícil. Minha respiração começou a normalizar, o peso no meu peito ficava cada vez mais leve e ali eu soube que poderia confiar nele.

Segurei sua mão.

Marisa nos esperava no hall com um biquíni preto com bolinhas brancas e um shortinho, Daniel usava uma bermuda preta revelando seu físico impecável e eu um maiô estampado aberto nas laterais por baixo do roupão. No caminho Marisa foi fazendo seu monólogo na frente, Daniel esporadicamente concordava e seguia ao meu lado, o peso morto, que não abria a boca nem pra falar um ai.

Assim que Marisa viu o lago saiu correndo, já pulando com tudo.

– Vamos? - disse Daniel segurando minha mão antes que eu percebesse.

Ouvir palavras de encorajamento é uma coisa, ficar de frente com seus traumas outra bem diferente.

Paralisei.

- Não fique com medo. – Daniel dizia enquanto tirava meu roupão. Eu não me importei. Se ele não fizesse, eu não o faria.

Ele me puxou delicadamente, até chegarmos à beira do lago. Eu tremia antecipadamente.

Respirei fundo.

– Certo, no três. Um...dois...três! - foi muito rápido, no dois e meio ele tinha me pegado no colo e então pulou. Não deu nem tempo de reclamar. Fui pega de surpresa.

Submergi e não vi nenhum dos dois, alguns segundos depois senti algo puxando meu pé. Dei um grito, meu coração disparou, era como se tudo estivesse acontecendo novamente. Marisa subiu à superfície rindo, mas eu já estava fragilizada. Tentei segurar as lágrimas.

Então Daniel puxou nosso pé. Ficamos revoltadas com ele, e Marisa com seu espírito nada vingativo começou a tentar capturá-lo. Ele ria enquanto nadava. O engraçado era que Marisa não conseguia nem chegar perto dele. Ela então decidiu criar uma armadilha e, claro, teria que sobrar pra mim.

- É o seguinte, eu mergulho e você tenta trazê-lo até aqui. Vamos acabar com ele!

Não sei por qual milagre o plano deu certo, até porque eu só fiquei parada. Acho que nem piscar eu conseguia. Marisa começou a fazer cócegas nele e me impelir a fazer também. Daniel nos agarrou pela cintura, mas mergulhamos e conseguimos nos safar. Na verdade, Marisa conseguiu.

Havia conseguido me libertar de suas mãos, mas ele foi rápido e acabou me prendendo de novo. Meu coração começou a acelerar. Quando ia gritar por socorro Daniel pôs o dedo em meus lábios pedindo silêncio. Olhava fixamente em seus olhos. Pra ele era só uma brincadeira, mas pra mim era como reviver um pesadelo. Acho que ele percebeu isso ao olhar meus olhos e sentir meu corpo tremendo tão próximo ao seu.

– Fique calma, Elisa, não vou fazer nada com você. – ele disse, como se soubesse o que eu estava sentindo. - Mas com a Marisa vou. Vamos nos unir para pegá-la? – deu uma piscadinha, tentando melhorar o clima.

– Certo. - concordei. Aos poucos eu sentia minhas barreiras caindo.

Cercamos Marisa. Cada um de um lado. Daniel foi até ela e a afundou. Ela o levou junto. E eles começaram a discutir no meio do lago. Decidi então ir até eles para apartar a discussão. Mas ao tentar chegar até onde estavam, acabei escorregando no lodo e prendendo meu pé entre as pedras. Comecei a me afogar. O lago era raso, mas fundo o suficiente para cobrir minha cabeça enquanto tentava me soltar. Conforme puxava meu pé para tentar me libertar, meu ar ia embora mais rápido. O mesmo desespero de antes parecia voltar com mais força.

Meu coração começava a fazer mais esforço para bater, o raciocínio ficava mais lento, e o pouco de consciência que restava era tomado pelo medo de morrer ali. Minha vida não era o que eu gostaria que fosse, mas eu também não queria morrer, não estava nem um pouco a fim. Levantei os braços como tentativa de pegar impulso pra submergir. Mesmo sabendo que isso não teria efeito, na hora do desespero fazemos tudo que tenha até mesmo a mínima chance de nos salvar.

Estava ficando agoniada, queria que alguém enfiasse uma faca em meu peito para não precisar sentir aquela dor torturante novamente. Comecei a pensar no que aconteceria se aquele fosse meu fim. Tudo era como antes, exatamente como ant...

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