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Capítulo 6 - Um carneirinho, apenas um

"O amor muitas vezes nos confunde, muitas vezes nos ilude. Mas sabemos quando o sentimento é verdadeiro e não pode ser destruído tão facilmente."

Sara Aster.

Acordei suada e ofegante. O Sol ainda demoraria a nascer e eu sabia que o sono não voltaria. Foi difícil dormir depois de um dia tão agitado. Cada vez que eu fechava os olhos tudo o que vinha à mente era o sorriso de Daniel, assim como na noite passada.

Mas o que veio depois eu realmente não esperava. Eu havia sonhado com ele. E nesse sonho nós fazíamos o que não podíamos fazer: nos beijávamos.

Nas minhas reflexões de madrugada, eu já havia me questionado o suficiente sobre o porquê de ter esperado um beijo em algum momento daquela brincadeira boba. Não era certo. Nunca seria. Então por que meu coração insistia em bater mais forte toda vez que eu lembrava da distância entre nós e do beijo na testa? Droga, era só um beijo na testa!

Por mais que eu estivesse cansada não conseguia pregar os olhos. Virava de um lado pro outro, ajeitava os travesseiros, contava carneirinhos, mas não conseguia dormir. Na verdade, não conseguia fazer nada, porque sempre pensava em Daniel. O primeiro carneirinho precisou de trinta minutos pra arranjar companhia.

– Droga! – havia cansado de ficar deitada rolando de um lado pro outro.

Levantei, coloquei minhas pantufas lilás e desci à procura de um calmante. Fui à cozinha e comecei a revirar os armários. Achei uma gaveta com alguns remédios e procurei algo que me fizesse dormir. Consegui achar um maracujina e tomei de uma vez só. Voltando para meu quarto, enquanto girava a maçaneta, olhei pra trás, a porta de Daniel. Ele deveria estar dormindo enquanto eu travava uma luta comigo mesma.

Soltei a maçaneta e fiquei olhando para a porta de seu quarto. Várias coisas passaram pela minha cabeça. Senti um aperto no meu coração. Não queria mais sentir aquilo, não queria mais ficar confusa. Por que eu estava sentindo aquelas coisas? Por que ele tinha que ser bom pra mim? Por que ele tinha que se preocupar comigo? Por que ele tinha que ter um sorriso que fazia meu coração disparar? Por que ele tinha que ser tão impossível?

– Vai passar. – tentei convencer a mim mesma. - É coisa de momento. Vai passar. Tem que passar.

Suspirei e apoiei levemente as costas na porta do quarto dele. Então, quando comecei a dobrar lentamente os joelhos para me sentar no chão, a porta abriu. Caí dentro de seu quarto e bati com a cabeça no chão. Daniel estava sem camisa, somente com a calça que havia usado durante o dia e lia um livro à luz do abajur.

Seu quarto era grande. A cama era de casal e assim como no meu quarto, havia um criado mudo em cada lado da cama. Ao lado da porta, encostada na parede, tinha uma escrivaninha com um notebook e ao lado dela uma estante de livros. Na parede oposta a que ficava perto da sua cama, tinham duas portas que eram afastadas uma da outra. Deduzi que seriam o banheiro e o closet.

– Elisa? - perguntou surpreso, mas posso jurar ter sentido uma preocupação. – Você está bem? – ameaçou levantar-se para me ajudar.

– Estou bem! Pode ficar aí. – o impedi de me prestar qualquer tipo de socorro.

– Como veio parar dentro do meu quarto? – você não vai querer saber.

– Boa pergunta. – corei. – Acho que foi o calmante que eu tomei. Deve ter efeito rápido. – nunca fui tão grata por pensar rápido. Podia ser a desculpa mais idiota do mundo, mas pelo menos eu tinha uma.

– Hã... por que não consegue dormir? – outra coisa que você não vai querer saber.

– Insônia. – disse.

– O que está te deixando preocupada ao ponto de te dar insônia? – você.

– Não sei. – foi a única coisa que pude falar no momento.

– Quer conversar? – pareceu preocupado.

– Não precisa. Não vou tomar seu tempo. – conversar não era bem o que eu queria.

– Elisa, você nunca toma meu tempo. – quase desmanchei com o sorriso que ele deu.

– É bom saber disso. – sorri sem graça. – Agora vou pro meu quarto, antes que eu desmaie aqui.

– Se precisar de algo não se envergonhe. Pode chamar.

– Certo. O que vem depois de quadrilhão? – perguntei.

– Quinquilhão, se não me engano. Por que a pergunta?

– Por nada. Curiosidade. – isso se não mencionar o fato de que seria o número de carneirinhos aproximadamente que eu contaria antes de dormir.

- Elisa, espera. – quando eu estava saindo do quarto Daniel me impediu. – Senta aqui. – chegou para o lado, dando espaço para que eu sentasse com ele na cama.

Eu estava receosa. Estava receosa por mim e sobre os efeitos que ele teria sobre mim. Estava receosa de que meus pensamentos ficassem mais confusos do que já estavam. Estava receosa por começar a sentir coisas que não deveria. Mesmo a contragosto decidi fazer o que havia pedido.

- Sabe, hoje você me deixou muito preocupado. – ele olhava para frente enquanto falava. Eu preferia que fosse assim, acho que não conseguiria manter contato visual com ele.

- Me desculpe.

- Eu não quero que você se desculpe. Na verdade, eu gostaria que você me contasse o motivo de tanto medo das coisas que te cercam. – tentou dar um sorriso para quebrar o gelo.

- Eu...

- Não precisa ser agora, mas espero que um dia você possa contar ao seu irmão. Se alguém estiver tentando algo contra você é só me dizer. Prometo que pegarei todos eles. No bom sentido, claro. Ou seria no mau? – ele era encantador e eu simplesmente não conseguia resistir.

- Não fui uma criança muito aceita pelas pessoas da cidade onde morava. A maioria dos pais afastavam seus filhos de mim e me tratavam como um animal de rua. Eu nunca soube o porquê. Me acostumei àquela situação e já tinha aprendido a viver sozinha. Um dia, a professora de educação física me forçou a entrar na piscina e depois saiu do campo de visão. As crianças se juntaram e tentaram me afogar. Quando ela voltou, eu já estava praticamente inconsciente. Daquele dia em diante eu aprendi que eu não poderia confiar em ninguém. Tinha se tornado uma questão de sobrevivência.

Daniel ouvia atentamente. Eu já estava em posição defensiva, abraçando os joelhos.

- Estou me sentindo péssimo por não ter feito nada por você.

- Agora já não importa mais.

- Elisa, prometo que você será a pessoa mais feliz desta casa!

Por favor, não prometa coisas que não pode cumprir.

Daniel juntou nossos mindinhos.

- É uma promessa. – beijou nossos dedos unidos.

- Sim, uma promessa.

(...)

Não tinha cara para olhar Daniel no dia seguinte. Estava morta de vergonha. Decidi que colocaria a leitura em dia. Tomei um banho pra despertar e fui comer alguma coisa. Provavelmente meu irmão estaria fazendo qualquer outra coisa. Só tomei um copo de suco de laranja. Voltei para o quarto, escovei os dentes e peguei um dos meus livros favoritos para ler: Orgulho e Preconceito.

Fui para o campo, mais precisamente onde Daniel tinha me levado à cavalo dois dias atrás. Sentei no banco em frente à fonte e fiquei ali lendo meu livro que me levava a um mundo sem muitas preocupações.

Passei horas lendo. Era a melhor coisa a se fazer no momento. A televisão só servia pra fazer contagem de mortos. Ultimamente estava demais. Na internet era corrente pra você não aumentar o número de mortos sendo mais um presunto. Totalmente previsível. Totalmente monótono.

O Sol já estava se pondo quando me dei conta de que logo minha mãe chegaria. Voltei pra casa correndo. Ela iria me matar se me visse de short com uma blusa qualquer e de chinelo. Entrei em casa que nem bala e subi as escadas. Não me pergunte de onde eu tirei tanto vigor pra subir aquilo tão rápido. Parei ofegante ao chegar no segundo andar. Respirei fundo e voltei a correr em direção ao meu quarto, mas acabei esbarrando em Daniel no meio do corredor.

– Me desculpe. Estou atrasada, logo logo mamãe chegará. Ela me mata se me vir assim. – dizia ainda ofegante, mas sem olhá-lo nos olhos. Não conseguia.

– Elisa. – levantou meu queixo com o dedo, fazendo com que olhasse diretamente para ele. – Está acontecendo algo que você não quer me falar? – fiquei estática. Eu era tão previsível assim?

– Não. – menti. – Por que a pergunta? – fiquei curiosa.

– Seus olhos. Eles dizem que algo está te angustiando. Te torturando lentamente. – dizia olhando- me fixamente.

– Não se preocupe. Eu estou bem. – menti novamente. Senti uma vontade enorme de perguntá-lo o que estava acontecendo comigo. Por que eu estava... apaixonada por ele, meu irmão. Deus, não podia ser verdade. Isso não. – Preciso ir. Tenho que me arrumar logo. – eu não conseguiria lutar contra aquele desespero que me tomava estando perto dele.

Acho que fiquei tanto tempo na banheira que parecia a versão feminina do ET, toda enrugada.

Então era isso: eu supostamente estava apaixonada pelo meu irmão. Esse era o segredo que eu levaria para o túmulo. Algo que eu tentaria ignorar por toda a vida. Será que ainda havia esperanças de tudo ser apenas algo passageiro? Talvez não. Daniel estava em cada sonho, cada pensamento, cada carneirinho não contado, cada angústia, cada felicidade. Definitivamente em tudo.

E a cada pensamento concretizado, cada certeza e solução, eu sentia que pertencia a ele ainda mais.

Daniel

Elisa não estava em seus melhores dias. Sabia que algo a afligia e isso me preocupava. Me sentia um inútil sem poder fazer nada por ela. Queria poder abraçá-la e confortá-la. Mas como poderia se ela vivia na defensiva?

Estava sentado no sofá da sala pensando em como faria para ajudar minha irmã, até que a vi descendo as escadas de uma forma tão elegante que custei a acreditar que era a mesma garota indefesa que passava os dias comigo. Elisa usava um vestido roxo que modelava seu corpo dando- lhe um ar sensual e de superioridade. Estava com um scarpin preto de salto super fino. Seus cabelos estavam semipresos. Definitivamente Elisa parecia uma princesa, a mais bela de todas. Parecia uma pessoa totalmente diferente. Que água milagrosa era aquela em que tinha tomado banho?

– Está linda, Elisa! – falei enquanto ela vinha em minha direção.

– Obrigada. – sorriu de forma sincera, um sorriso extremamente lindo.

Sentou-se ao meu lado e descansou a cabeça em meus ombros. Pude sentir o cheiro de seus cabelos, tinham um aroma de xampu de morango. Será que a Elisa que eu tinha conhecido agiria da mesma forma?

– Está melhor? – perguntei.

– Acho que sim. Não tenho certeza. – ficamos em silêncio, apenas encarando a TV. – Eu não sou assim.

- Quê? – olhei para ela.

- Estou tentando parecer uma boa filha. Te dar uma boa reputação também.

- Obrigado?

- Eu que agradeço. Se Helen achar que não estou surtando provavelmente ela me deixará em paz.

– Elisa, tem certeza que não quer conversar? Quero te ajudar, mas não sei como. Irmãos não devem esconder as coisas uns dos outros. Sou eu que vou te acobertar se você fizer alguma burrada. Só não espere que eu pague sua fiança porque sou filho pobre de pai rico.

– Irmãos – deu um sorriso tristonho – Que ironia, não?

– Pois é. Uma grande ironia. – não sabia ao certo porque ela tinha dito aquilo, só que era uma ironia tudo aquilo.

Senti uma lágrima molhar minha blusa preta. Não me incomodei. Apenas abracei Elisa fortemente, para que ela pudesse se lembrar que eu estava ali para o que precisasse.

– Promete pra mim que você sempre vai estar ao meu lado pra consertar qualquer burrada que eu fizer?

– Mas é claro, Elisa! Estarei sempre ao seu lado. Só não me diga que pensa em fazer alguma besteira.

– Não se preocupe. Acho que só precisava ouvir isso por enquanto. Talvez daqui a alguns meses você vai precisar me dizer que a gente vai fugir junto. Porque acho que vou enlouquecer se as coisas continuarem como estão.

– Certo. E pra onde quer que eu te leve? Pra Índia ou pra Argentina?

– Na verdade, nenhum dos dois. Quero voltar pra minha antiga casa. Com você, Tom e a mamãe. Mas se ela tiver de TPM só com vocês. Ela volta depois.

- Não entendo. Por que você gostaria de voltar para um lugar onde sofreu por tanto tempo?

- Eu... eu não sei. Acho que me acostumei com a realidade que eu vivia naquele lugar. As pessoas já não me intimidavam tanto, eu tinha até mesmo feito uma amiga, acredita? Aqui as coisas começarão do zero e o zero pra mim é pior que um número negativo.

– Você está vendo as coisas pelo ângulo errado. Pense que aqui você pode ser quem você quiser. Ninguém te conhece, ninguém irá julgá-la. Você tem a chance de recomeçar e prefere voltar pra onde estava?

Depois disso o silêncio reinou. Elisa brincava com a barra do vestido. Eu queria protege-la das coisas pontiagudas, do mundo, dela mesma. Era mais forte do que eu aquele sentimento. Elisa era frágil e claramente havia passado por coisas que não deveria. Parecia uma boneca: inanimada, pálida, cabelos negros e longos, olhos grandes. Uma linda boneca inanimada.

– Tá pensando em que? – perguntou.

– Estou feliz por você estar melhor. – tecnicamente não era mentira, só não era a linha de pensamento de cinco minutos atrás.

– É bom saber que alguém se importa com o que eu sinto. – afundou o rosto em meu pescoço.

– Não diga isso, Elisa! Assim você está sendo egoísta. – apertei-a contra mim.

– Tem razão, eu sou uma idiota e egoísta.

– Também não é assim. – afastei-a de mim e coloquei o dedo em seu queixo para levantar seu rosto. – Você só está passando por um momento difícil. – sorri.

- Obrigada. – pela primeira vez vi um sorriso sincero.

Novamente ficamos em silêncio. Olhando-nos fixamente nos olhos. Elisa colocou a mão levemente em meu rosto, como se tocar alguém fosse algo totalmente novo. Eu queria cuidar dela. Eu iria cuidar dela, acima de tudo e acima de todos. Elisa merecia ser feliz e por algum motivo eu gostaria que quem a ajudasse a alcançar a felicidade fosse eu. Naquele momento, alguma coisa mudou. Um pensamento estranho de como seria beijá-la veio à mente. Isso não era para acontecer.

A porta bateu.

Afastei Elisa de mim como se fosse veneno. O barulho da porta parecia minha consciência me fazendo voltar à sanidade. Quem é que pensa em beijar a própria irmã? Isso é loucura! Insanidade!

Logo Helen passou pela porta que dava para a sala de estar cheia de sacolas na mão.

– Olá i miei amori! La madre è arrivato! Come sono?

– Oi pra você também mãe. Que bom que você voltou. Nós estamos muito bem. – Elisa falou. – Mas por que está falando italiano se sua lua de mel foi na França?

– Cala boca garota, fica na sua. – disse Helen.

– Bom, eu vou ajudar o Tom porque tenho certeza de que você já encheu o coitado de bolsa. – disse ao me levantar.

– Ah, que isso Daniel! Só trouxe o essencial! – ao terminar de falar, colocou as bolsas no sofá e jogou-se ao lado delas.

Nesse momento Tom entrou na sala de estar segurando várias bolsas e malas. Fiquei me perguntando como ele tinha conseguido pegar tanta coisa de uma vez só.

– Deixa eu te ajudar. – peguei algumas bolsas, que por sinal estavam bem pesadas. – Helen, você está contrabandeando drogas ou aproveitou pra comprar tijolo no exterior?

– Para de ser frouxo, garoto! São só umas sacolinhas. – falou enquanto tirava os sapatos para relaxar melhor.

– Por que você não trouxe então? – perguntei colocando as malas e sacolas no chão.

– Por que sou sua mãe e mando em você. – sorriu.

Mães....

Assim que terminamos de trazer as bolsas do carro, que por sinal eram muitas, e Helen havia contado todas as coisas desnecessárias que Elisa não se importava a mínima em saber, fomos jantar. Até que o momento foi agradável.

Após a janta, voltamos à sala de estar e mamãe mostrou as coisas que havia comprado. Eu ganhei umas cinco sacolas com, perfumes, eletrônicos e outros objetos que provavelmente ficariam jogados em um canto do meu quarto. Elisa ganhou um novo celular, perfumes, sapatos e algumas joias. Ainda bem que a família é pequena.

Não conseguia parar de olhar para Elisa que mostrava um sorriso encantadoramente forçado, como se já não suportasse mais as futilidades da mãe. O momento que tivemos a sós mais cedo não saía da minha mente e isso me deixava cada vez mais preocupado. Será que esse tipo de pensamentos era normal? Ela era minha irmã, minha irmãzinha. Queria vê-la feliz, isso era a única coisa que importava. Afinal, não é o que os irmãos desejam? Isso não quer dizer necessariamente que eu seja um doente. Isso não era para acontecer e não aconteceria.

Decidi subir para meu quarto. Precisava colocar os pensamentos em ordem. No final, acabei pegando no sono e sonhando com ela.

Elisa.

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