Início / Fantasia / Heilel / Capítulo 2
Capítulo 2

Johanesburgo, 12 de março de 2006

Carine...

O que disse? – interrompeu o fluxo de seus pensamentos, o africano.

Nada – respondeu, deixando os azuis sobre o rapaz. – Quanto tempo até retirarem todos os corpos?

Uns três dias, Sir. – As pequenas pérolas em sua boca sobressaindo contra sua pele escura. – Há lugares em que o terreno ainda está cedendo.

Não poderei ficar mais do que vinte e quatro horas – retrucou sério. Não gostava de deixar seus negócios inacabados, entretanto, tinha um encontro com o senador Ralph Ludgren às cinco da tarde, no dia seguinte. Precisava estar em Washington, e à noite, conheceria sua futura esposa, Aine, em Kioto. – Bufou, viver como mortal era uma coisa complicada, mesmo quando a humanidade havia avançado tanto nos últimos séculos. Ainda assim, ele era capaz de sentir saudades dos velhos tempos, mesmo que fosse mais difícil usar contra os humanos, suas próprias fraquezas.

Eu assumo daqui... – Os olhos cor de mel que encontraram os azuis, e um sorriso que enfeitou os lábios do ruivo. Os cabelos presos no alto da cabeça, num rabo de cavalo. O terno marrom que cobria a pele clara, clara demais para o calor daquele lugar, com caimento perfeito. E os vários piercings em sua orelha, davam-lhe um ar rebelde, assim como os tênis de marca num visual que começara tão requintado. Demonstrava claramente que não gostava de convenções, e rompia-as todas. – Desculpe-me por não ter chegado a tempo de evitar sua vinda, Heilel – soou falso.

Não devia subestimar o Mestre”, pensou enquanto identificava o escárnio na voz do outro demônio.

Baltazar... – Fitou num lampejo vermelho, o demônio. – Não esperava revê-lo tão cedo, mas não há o que desculpar. Apenas faça seu trabalho – retrucou polidamente ao passar por ele. – E não se esqueça de que esse é meu território.

O ruivo lhe lançou um olhar mortal em punhos cerrados sob a manga do terno, que ele descartou quando entrou no jipe, sem se dar ao trabalho de olhar para trás. Seguia ordens do Mestre, mas sempre fora sua obrigação manter a linha delineada, entre, o bem e o mal, aos olhos humanos, dentro dos termos fixados meio ao céu e inferno. Dentro da lei de ambos. Fazia isso há séculos, e não seria um capricho qualquer, que o faria corromper seu propósito. Mesmo um demônio – o que se tornara ao lado de Lilith – tem princípios. E, uma vez postos de lado, sua imparcialidade estaria comprometida. E ele precisava dela para viver ali, para lidar com os anjos.

Passou a mão pelos cabelos escuros. “O que ele quereria ao m****r Baltazar aquele mundo?” Seus olhos corriam pela paisagem de savanas, rápidos. “O que ele esconderia?”

O Dessault azul correu a cabeceira da pista do Aeroporto Internacional de Johanesburgo e alçou voo.

***

Kioto, 14 de março de 2006

Os Akahana são a família mais tradicional de Kioto, seus ancestrais datam da Era Yamato, e nada há de mais justo, que unir pelo casamento, dois jovens de famílias antigas e ricas. Iwamura Aine, a única herdeira da Corporação Iwamura, presente em mais de cinquenta países pelo mundo, era a eleita.

Conhecera-a, quando ainda era um bebê calmo e sorridente. Pegara-a no colo em algumas ocasiões, e quando fora selado aquele compromisso, era apenas uma menina de 4 anos. A fama do pai nunca fora das melhores, casara-se cinco vezes e tivera incontáveis amantes; a última delas, mãe do bebê. E fora exatamente por ela, que aceitara o compromisso entre as famílias, mas não voltara a ver a menina, desde que a mãe falecera. Entretanto, a moça, agora com dezessete anos, aguardava-o num hotel, no centro de Kioto, para celebrarem o Mi-Ai1. Lá, eles renovariam o compromisso firmado há anos. Um compromisso que deveria ser igual a todos os outros que já tivera nos últimos dois mil anos. Um compromisso para obter um passado estável e respeitado para seu personagem no mundo humano.

De tempos em tempos, escolhia um pai para si mesmo; alguém que não tivesse rosto para a maioria dos humanos. Alguém comum, que procurasse pela absolvição de seus pecados, genuinamente, e estivesse disposto a trocar o inferno por uma vida de regalias. Eram escolhidos a dedos, não poderia haver falhas, e feito o contrato, dava-lhes educação, dinheiro, roupas... Status. Então, nascia seu pai. Herdeiro único da fortuna dos Akahana, que viveria no conforto até sua morte, assessorado por seu filho, Heilel. Ou qualquer nome que quisesse adotar. Mudava-os muitas vezes.

E assim, durante séculos, a fortuna e tradição dos Akahana persistiram. Apenas maculados pela lenda, de que a mulher desposada pelo herdeiro, nunca passaria do dia do nascimento de seu filho, que geralmente nascia no estrangeiro. Ele remoeu a história ao atar o obi ao kimono preto, quantas vezes já fizera isso? Quantas mulheres enterrara nos jardins daquela casa? Quantos pais e mães? Quantas almas não passaram por sua mão? Ainda assim, era algo que precisava ser feito e estava além de seus desejos. A aliança com Iwamura daria crédito ao passado de Akahana Heilel, o tonaria sólido e convincente... Era nisso que devia se centrar, mas havia a promessa que fizera àquela mulher, que o tornara dono de muitos investimentos na Iwamura Coorporation. A promessa que o unia a Aine de uma forma diferente de suas outras noivas, a da proteção. Ele jurara no leito de morte da mulher, que livraria a menina da influência do pai. Logo ele fazendo algo como aquilo...

Ainda assim, Aine seria como todas suas esposas através dos séculos. Não mudaria suas condições por causa da promessa, apenas manteria sua palavra de protegê-la. Dividiria com ela seus lençóis, iludi-la-ia com palavras doces... E, talvez, teria algumas amantes. Tudo igual a antes.

A imagem de Hanya preencheu sua mente. O que estava errado com ele?

Heilel-sama... – o criado chamou-o à porta, arrancando-o de seus pensamentos. – Isso acaba de chegar para o senhor. – Estendeu-lhe o envelope pardo.

Arigatô, Aiko – agradeceu num murmúrio enquanto o senhor prestava-lhe uma reverência e o deixava sozinho.

O envelope entre os dedos ao entrar no seu quarto e retirar o dossiê sobre Aine de dentro dele. Estava um dia atrasado, frisou as sobrancelhas. É certo que poderia facilmente obter informações sobre ela, mas isso demandava tempo, coisa que não tinha de sobra. E não iria encontrá-la, sem nada saber sobre a moça. Não era o correto, mas desde quando ele era correto?

Sorriu de si mesmo e sentou-se na poltrona junto à janela. Os azuis se tornando sérios, à medida que os papéis em seus dedos eram descartados sobre o tapete.

Merda! – O que lera naquelas linhas, tirara-lhe o juízo.

Uma batida na porta e a ordem:

Entre... – Ergueu-se da poltrona e voltou os azuis ao mordomo.

A limousine, senhor, está a sua espera como ordenado – observou Aiko, a cabeça baixa.

Queime tudo isso – disse ao passar pelo criado e deixar o quarto, sob um assentimento deste.

Não mais que quinze minutos foram gastos para deixá-lo à porta do hotel. Uma das imponentes construções pertencentes à Akahana Resort's. Ele poderia movimentar o mundo com apenas um dedo, se assim desejasse, mas se surpreendeu ao ver a beleza da morena dentro da yukata rósea. Os cabelos pretos caídos sobre os ombros enquanto prestava-lhe obediência, ajoelhada a sua frente.

Por que veio só?

Houve o silêncio, no qual ela evitou fitá-lo.

Se não se sente bem em me falar. Pedirei ao seu pai que marque um novo encontro... – Ele virou-se para deixá-la a sós, ciente do que suas palavras provocariam na menina.

Iie2, onegai... – era um sopro quente às suas costas. Ela estava de pé.

Ele voltou calmamente os azuis para ela, cruzando os braços sobre o peito. Uma menina de dezessete anos, tão nova quanto Hanya. Seus olhos correram rápidos a silhueta dela, descobrindo mais curvas do que esperava ver numa idade tão tenra. As meninas de hoje cresciam muito rápido, admitiu para si mesmo, desviando o olhar.

Quem a fez comparecer sozinha a este encontro?

Novo silêncio e ela tremeu, baixando os chocolates ao chão.

Aine, se insistir no silêncio, eu devo...

Espere... – Chocolates nos azuis. – Foi meu pai.

Ele abaixou a cabeça e suspirou.

Por que não se negou?

Porque devo honrar minha família – retrucou irritada.

Mesmo que isso exija demais de você? – Os azuis agora estavam fechados e sua voz ecoava entre eles.

Não me importo – rebateu, esbranquiçando os nós dos dedos. Corando fortemente. – O compromisso deve ser firmado.

Ele não pode evitar sorrir e se aproximar dela, passeando gentilmente os dedos entre seus cabelos. Inclinando seu rosto sobre o dela, enlaçando-lhe a cintura. Colando-os. A inocência era um bálsamo para uma alma como a dele.

Está disposta a ir tão longe... – Deixou os lábios sobre seu pescoço, sem que ela protestasse. – Em nome de sua família?

Um arrepio que varreu a espinha dela. Um novo sorriso que preencheu os lábios do demônio.

Sim... – Ela respirou rápido entre seus braços, sentindo os dedos dele correrem pela abertura da yukata.

Você tem coragem – sibilou no ouvido dela, afastando-se. – Deixe-me dizer meus termos, então...

Abandonou-a, resfolegando, enquanto voltava ao seu lugar, sentado à frente dela; impassível.

Aine, se lhe der meu nome, não a tocarei de forma nenhuma. – Chocolates se alargaram sobre ele, surpresos. – A maior parte do ano, não estarei do seu lado; por isso, não lhe darei meu amor. Em troca, terás a liberdade que não possui ao lado de seu pai. Estará livre para amar quem bem entender, apenas seja discreta quando a hora chegar e não me dê herdeiros. – Uma pausa em que nem ele mesmo acreditou no que dizia. – Haverá criados para ajudá-la nisso, não hesite em usá-los. Estão à sua disposição para o que lhe convier; se necessitar de mais dinheiro do que a mesada que será depositada em sua conta particular, deve se dirigir ao meu contador. Ele providenciará tudo o quanto precisa.

Ele se pôs de pé e voltou até a porta.

De tempos em tempos, voltarei a Kioto... Para ver como andam seus estudos e o que tem feito. – As palavras que ela ainda tentava assimilar. – Só então, eu a verei. Alguma pergunta?

As lágrimas que pingaram na yukata silenciosas, que ele sabia estarem ali. Recebera, há um mês, os chocolates que ela mesma fizera. E, em vez de lhe dar doces, retirava-lhe a inocência da vida. No entanto, tinha certeza de que era pior iludi-la quando estava ciente de que o pai a corromperia de qualquer forma. Com ele, ao menos, a menina estava a salvo de ser vendida a outro. Ele só não contava com aquele sentimento... Ele não deveria estar ali.

Estou contente de que tenha se tornado uma bela mulher, Aine... – ele ponderou sabendo que nada o absolveria do que acabara de fazer. – E, um dia, alguém saberá fazê-la feliz.

A porta que se fechou com chocolates molhados contra ela. Ele interrompeu os passos no corredor, fitando o outro lado da madeira. Por que aquele não podia ser um contrato como os outros? Como o pai dela queria de fato... Onde ele a compraria e seria o marido exemplar, e ela a esposa abnegada e concisa.

Hanya... Ele pensou em Carine, e depois na expressão de Aine e nos chocolates. Entendera errado aquele gesto, achara-o uma jogada do Iwamura, para lembrar-lhe o compromisso. Estava irremediavelmente errado!- pensou ao entrar na limousine, deixando o hotel.

O dossiê era bem claro sobre isso: de alguma forma, que não sabia explicar qual, a menina estava apaixonada por ele. E, esse simples fato o fizera adotar uma postura totalmente diferente da sua costumeira. Precisava ficar distante de sentimentos como aquele, ainda mais estando num corpo humano.

A obediência ensinada às mulheres antigamente, iam a seu favor, mas o que vira nos olhos de Aine o assustara. Ela não era como as outras; era determinada, mesmo que tudo a sua volta inspirasse fragilidade. Mesmo que aquele dossiê lhe dissesse a verdade escondida por trás daquela aparente felicidade da menina. Havia dor, tristeza, e ele lhe dera uma dose a mais.

Como lidaria com isso depois de casado?

Passou os dedos entre os cabelos.

O que andavam ensinando à juventude de hoje em dia?

Ele entrou no quarto e bateu a porta, ordenando novamente ao mordomo:

Não quero ser incomodado até amanhã...

Sim, senhor.

Quem aquela menina achava que era, para alterar seus planos, como acabara de fazer?

Mas não tinha como desposar outra mulher, nem motivo convincente para romper com Aine. Ela teria que aceitar suas novas regras.

***

Paris, 15 de março de 2006

O Dessault azul tocou o solo da França uma vez mais.

Monsieur Heilel – a voz conhecida soou do outro lado da ligação. – Tudo foi feito como pediu.

Obrigado, Nicole. – Não havia sorriso ou satisfação em seu rosto quando desceu do avião e entrou no carro. – Estarei no escritório em meia hora.

A porta do elevador se abriu e os azuis de Nicole confrontaram os dele, atônitos.

Algo de errado?

Bem... – ela disse com calma.

Quer me dizer o que está acontecendo – rebateu impaciente.

Você tem dois problemas femininos para resolver. – Ela notou-lhe a sobrancelha erguida em surpresa e resumiu: – A moça chamada Carine veio pessoalmente agradecer suas flores... – Ele não pôde evitar um sorriso. – E outra moça, diz ser sua noiva e o espera na sua sala.

Minha noiva? – ponderou enquanto a secretária assentia com a cabeça. – Quantos anos acha que ela tem?

A julgar pelo excesso de maquiagem que usou, uns quinze...

Dezessete – corrigiu-a desanimado. – É ela mesma.

Você está noivo de uma menina? – surpreendeu-se.

Esqueceu-se de que venho de uma família tradicional japonesa? – segredou-lhe.

Sim... mas só por alguns segundos.

Ele sorriu.

Preciso que a entretenha enquanto falo com a outra moça. – Empurrou-a na direção de seu escritório.

O que quer que lhe diga?

Improvise – sussurrou.

Dirigiu-se a porta oposta e entrou. A moça estava próxima às janelas panorâmicas e trajava um vestido simples florido de alças.

Perdoe-me se a fiz esperar... – Deixou azuis nos verdes, que o fitaram surpresos. – Veio de longe para me ver.

Na realidade, minha mãe mora em Paris – disse sem se mover. – Trabalho em Le Hauvre por causa da oportunidade boa de emprego.

Entendo. – Ele foi até a cabeceira da mesa de reuniões e se sentou. – Como ela está?

Recuperando-se bem, obrigada. – Desviou os verdes dele. – Eu estava passando e resolvi agradecer as flores, mas não tinha a intenção de atrapalhá-lo.

Estreitou seu olhar sobre ela, admirando-a.

Então, por que não solucionamos nosso problema assim... Você aceita meu convite para um jantar, amanhã. – Deixou o queixo descansar sobre os dedos. Os braços apoiados contra o tampo de granito preto.

Amanhã? – Os verdes surpresos nos azuis dele.

Tem compromisso?

Não, mas...

Sua mãe...

Não – ela cortou-o firme, porém com um sorriso. – Minha mãe está bem melhor, não se preocupe.

Às sete?

Ela corou fortemente antes de responder:

Às sete.

Ele se ergueu e abriu a porta, indicando-lhe, cortês, à saída.

Obrigado pela grata surpresa. – Beijou-lhe a mão e a viu sumir na direção do hall dos elevadores.

Voltou seu olhar para a porta de sua sala. Azuis cintilando de irritação quando girou a maçaneta, e encontrou Nicole e Aine sorrindo uma para a outra. O que se passava ali?

A secretária se recompôs primeiro, sob o olhar azul, e pediu licença para deixá-los a sós. No que foi prontamente atendida.

Por que veio aqui, Aine? – ele indagou, assim que a porta se fechou atrás de Nicole.

Por que insiste em manter o compromisso comigo depois de tudo que me disse? – interviu na fala dele, fazendo-o fitá-la intensamente.

Seu pai sabe que está aqui? – evitou respondê-la diretamente, atravessando a sala até sua mesa. Remexendo os papéis sobre o tampo, como se procurasse algo. Pura invenção sua.

Faz diferença?

Para um pai como ele, talvez não... – rebateu num tom de escárnio.

Você não me respondeu – ela insistiu. – Insiste num acordo que beneficiará muito a ele... Se tem tanto contra meu pai, o que quer de mim?

Quero protegê-la. – Ele sentara na cadeira e a observava curioso. Ela recuou em pensamentos.

Dele? – Chocolates confrontaram os azuis. – Pareceu-me que quer me proteger de si mesmo. Deu-me liberdade para achar um amante! – Sua ira veio à tona. – Que tipo de marido quer ser?

Provavelmente, não o tipo que irá dizer que a ama todas as noites... – Ele sorriu, ela molhou os olhos.

Está sendo tão sórdido quanto o homem que acabou de insultar – era um sopro abafado pelo choro que prendeu em sua garganta. – Não está me salvando dele, está me atirando num inferno.

Por algum motivo, aquilo soou cruel. Não irônico como sempre. Os olhos dela estavam manchados de vermelho como os de Hanya... Liquefeitos de dor.

Sabe quantas vezes eu já ouvi esse tipo de sentença que você me disse? – Um soluço cruzou seu corpo. – Quantas vezes eu ouvi: Aine faça isso pelo bem das empresas... Seja boazinha e acate os termos que papai já aceitou por você?! – As lágrimas rolaram e ele não soube o que dizer. Não esperava aquilo. Não, ao menos, dito por ela. Conhecia o pai da moça, sabia do que aquele canalha era capaz, por isso fizera a promessa, mas não contava que a personalidade de Aine fosse tão pungente diante do que aquele homem lhe impusera. Era quase sufocante ver a sinceridade nos chocolates... Ver o medo e a esperança em choques constantes.

Silêncio e ele abaixou os olhos para os papéis entre seus dedos, incapaz de pensar como agir diante daquilo. Não era esse, seu costume.

Agora, sou eu quem lhe dá motivos para não querer se deitar comigo... Para não querer filhos comigo... Eu não sirvo para ser esposa de homem algum. – O corpo todo dela tremia. – E também não quero ser usada por você como um brinquedo. Quando aceitei o pedido de meu pai para comparecer àquele encontro sozinha, não o fiz para poder seduzi-lo como ele queria... – Chocolates se desfaziam em fios transparentes. – Durante os dois últimos anos, eu implorei a Deus que esse dia chegasse. Que você viesse e me tirasse das mãos dele, porque acreditei em tudo que ela me disse a seu respeito. Então, fui lá para lhe contar a verdade. Achei que você a merecia, que mais que qualquer um, me entenderia e poderia me amar como eu sou. – Ela abriu a bolsa e retirou uma foto de dentro, olhou-a por segundos e atirou-a à mesa dele. – Mas você é igual a todos os outros. Veio atrás de um bibelô. Algo que pudesse pôr na estante, como essa foto, e olhar de vez em quando até que o tempo o esmaeça e nem perceba mais que está ali.

O choro que ela não mais conteve, cobriu seu rosto em fios trêmulos. A foto dele com um bebê no colo, caída a sua frente, sobre a pilha de papéis, e a porta que se abriu antes que ele pudesse detê-la.

Merda. – Ele se ergueu e saiu do escritório, deparando-se com uma Nicole atônita no hall dos elevadores. – Para onde ela foi?

Entrou num dos elevadores – revelou, encarando-o preocupada. – O que fez a ela?

Não vai querer saber – respondeu enquanto apertava, insistente, o botão vermelho.

A porta se abriu e ele entrou.

Vai chover... Então, se apresse em achá-la.

A porta se fechou e o elevador desceu.

***

Os pingos de chuva o atingiram assim que tocou a calçada da Champ Èlysée, sem encontrar um sinal dela. Os passos rápidos que não se importavam com as poças d'água. O terno encharcado sobre o corpo. A pausa que ele deu na esquina, esbarrando com várias pessoas em meio à multidão que procurava refúgio da chuva, que prosseguia sem trégua sobre Paris. O olhar que se tornou escuro e preocupado ao tentar investigar qualquer indício de para onde ela havia ido... Os azuis que pararam sobre a entrada do parque ali perto.

O corpo virado naquela direção, contrária a das outras pessoas. Os pedidos de desculpas que saiam de seus lábios conforme avançava pelos jardins. A cortina de água que castigava cada vez mais as alamedas dos Jardins des Tuileries , turvando sua visão, e o vazio que cobria o espaço a sua volta. O silêncio e a cadência dos pingos contra o chão, martelando segundos... Segundos que percorria aflito, as trilhas entre os vários recantos verdes.

O cansaço e as mãos que foram contra os joelhos.

Aine...

A respiração ofegante. Algumas vezes, esquecia as limitações de um corpo humano como aquele.

Aine! – berrou ainda arfando. As gotas d'água pingando de seu nariz.

Os azuis se erguendo aos poucos do chão e encarando a menina sentada no banco a sua frente. Os chocolates dela sobre ele.

Baka3 – ele praguejou baixinho sem que o ouvisse e caminhou até ela.

Vá para casa... – ela contrapôs quando ele chegou mais perto. – Vai pegar um resfriado e não terá quem cuide você. – Desviou os chocolates dele, fazendo-se de contrafeita quando Heilel se sentou ao seu lado.

Não me resfrio facilmente – ele ponderou, fitando-a com interesse. – Por que me contou aquilo?

Ainda insiste nisso? – ela emburrou, o rosto voltado para o lado oposto ao dele.

Quero saber mais sobre minha noiva – dissimulou. A verdade era que não gostara de ser menosprezado pelo pai dela. Não gostara de saber que ela fora realmente tocada por outro. Não, não era isso!

Sentiu-se desconfortável diante da menina, falhara com ela, como fizera com Hanya. Hanya novamente.

Não sou mais sua noiva.

Decidiu isso agora? – ironizou, deixando azuis no céu negro sobre suas cabeças.

Eu ligarei para meu pai e explicarei que foi um lamentável engano desde o início. – Ela se ergueu do banco. – Eu peço desculpas por ter entrado em seu escritório e causado problemas. Na verdade, me sinto bem de estar aqui longe daquilo tudo. – Baixou a cabeça ao chão. – Adeus.

Um pequeno gesto e o pulso dela capturado pelos dedos dele.

Não me lembro de ter dito que aceitava seus termos em nosso acordo.

Os chocolates voltados aos azuis, alargados.

Por que deseja remoer essas coisas horríveis? Não deseja realmente manter esse acordo, então... – choramingou, sentindo um formigamento no lugar onde ele comprimia sua pele. – Deixe-me ir...

Ele se levantou do banco sem largá-la, digitando rapidamente no celular com a mão livre. Ignorando o pedido dela completamente.

Sr. Iwamura? – uma pausa e os chocolates dela surpresos. – Sinto-me na obrigação de avisá-lo, já que imagino o quanto deva estar preocupado, que sua filha está comigo, em Paris. – Sabia ser sonso quando queria, e aquela era uma ótima oportunidade.

A puxada brusca do pulso entre os dedos dele.

O que está fazendo? – Moveu os lábios sem emitir som, obtendo um pedido de silêncio em retorno.

Ele continuou, sem respondê-la:

Acredito que não se importe que ela fique mais tempo por aqui. – Os azuis que lhe sorriam enquanto concluía a ligação: – Não tivemos como avisá-lo que ela viria comigo para escolher o enxoval e preparar nossa cerimônia de casamento. Entretanto, creio que isso não seja, de todo, uma surpresa, nem suscite receios em sua pessoa.

Você só pode estar louco! – ela protestou alto; ele tapou-lhe a boca com a mão.

O senhor não terá preocupação ou despesa alguma com o casamento, e meu contador estará a sua disposição, caso seja necessário algo a mais que viabilize a sua vinda à Paris na data que, em breve, decidiremos. – Os dentes dela contra a palma de sua mão e ele a soltou. – Domo arigatô4.

Despediu-se enquanto a via se afastar rapidamente. Com uma crispada fina de lábios, diminuiu a distância entre eles.

Vem... – Esticou-lhe a mão. – Vamos para casa, você está ensopada.

Não vou a lugar algum com você. – Desviou o corpo do dele.

Novamente os dedos dele envolveram-lhe o pulso, mas desta vez, colou também seus corpos. Os azuis sérios nos chocolates dela. O coração que ele sentiu acelerar ao encontro do seu; a chuva molhando os lábios que absorviam o ar rapidamente, entreabertos. O polegar que ele passou por toda sua extensão, calmamente. Sentindo-os tremerem e abrirem ainda mais. O pensamento em Hanya, os chocolates fechados esperando por ele; a quentura que ele respirou quando abreviou o espaço entre suas bocas. O silêncio e o movimento interrompido quando os azuis a fitaram, correndo suas feições delicadas.

Precisamos nos aquecer... – sibilou sobre a pele da testa dela, fazendo-a abrir os chocolates decepcionada. Beijando-a ali.

A chance que ele não se deu de vê-los, a falta de reação que a fez segui-lo. Então era isso... Sempre seria isso. Ele agora sentia pena dela.

-----------------------------

1 Apresentação dos futuros pretendentes para casamento.

2 Não, por favor.

3 Idiota!

4 Muito Obrigado.

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >

Capítulos relacionados

Último capítulo