19 de março de 2006
– Não me espere para jantar hoje – ele disse simplesmente ao se levantar da cadeira e tomar o casaco escuro nos braços.
– Irá viajar? – ela indagou curiosa.
– Não – foi toda a resposta que obteve, ainda que inutilmente tentasse voltar ao assunto no caminho até a escola.
Ele não lhe diria nada além do estritamente necessário, e nem azuis se voltaram para ela quando saiu do carro.
O que estava acontecendo? – perguntou-se quando deixou os chocolates seguirem a limousine até perdê-la de vista.
***
– O que tem para mim hoje, Nicole? – perguntou ao passar pela secretária.
– Só alguns papéis... – ela respondeu ao entrar atrás dele, na sala. – Algo de errado?
Ele silenciou, parado junto à janela panorâmica do escritório.
– Nada. – E dispensou-a: – Deixe os papéis sobre a mesa, obrigado.
– Sim, senhor. – A porta foi fechada num clic.
Pôs a palma da mão aberta contra a vidraça, enquanto a outra se fechava no bolso da calça. Primeiro, Baltazar... pensou, e agora isso. O que estava acontecendo? Os verdes que correram as ruas apinhadas de gente. Seria somente pela criança? Mas isso já acontecera outras vezes, e ele cuidara de tudo. Nunca fora sua intenção que a humanidade pagasse pela guerra daqueles dois. Ele sempre mantivera tudo no seu lugar. Estaria perdendo o jeito? Fechou os verdes e apoiou a testa contra o antebraço.
Entretanto, nada justificava aquela presença tão perto. Deus nunca estivera tão perto, depois de tantos anos. Por que isso agora? Afastou-se da janela e voltou à mesa, sentando-se na poltrona e tomando os papéis que Nicole deixara sobre ela, entre os dedos longos. Não precisava se preocupar com Aine nesse momento, veria Carine à noite.
Hanya...
***
– Vamos lá, Aine... – insistiu Dominique. – Passe a bola.
– Desculpa-me... – determinou ao devolver o objeto à amiga, como lhe fora pedido.
– O que há? Você está tão distraída hoje.
– Nada, eu só estou naqueles dias e tudo me irrita – confessou baixo, junto ao ouvido da outra.
– Entendo – a amiga se animou. – Não quer ir à minha casa depois da aula? Hoje é sexta, a gente pode jogar algo... Ou passar a noite em algum site.
– Como? – indagou Aine, saindo de seu transe.
– Bem... Seu pai deixaria você dormir na minha casa?
Os chocolates se perderam nas feições da loura, diante da menção de que Heilel era seu pai. No entanto, antes que ela dissesse qualquer coisa, as palavras dele voltaram-lhe à mente: Não me espere para jantar hoje... Definitivamente não gostara daquilo.
– Eu não posso, tenho um jantar com ele justamente hoje. – Sorriu-lhe dissimulada. – Sabe, quase não nos vemos durante a semana, então isso é como se fosse um ritual de desculpas.
– Oh... – A loura piscou os cílios longos algumas vezes antes de completar: – Ele deve gostar muito de você. Pais dificilmente fazem isso pelas filhas. Eu passo mais tempo com minha mãe.
– É... – disse distante. – Ele gosta muito de mim.
– Aine!
O chamado veio às suas costas, e as duas meninas voltaram seus rostos para encontrar os azuis sobre elas.
– Sensei... – murmurou e emendou gentilmente: – Professor Miguel, desculpa ter perdido o primeiro tempo.
– Tinha a impressão que o perderia mesmo com meu aviso – confessou com um sorriso. – Teve problemas ontem?
– Não, não houve nada – afirmou sem jeito.
– Entendo. – Os olhos de Dominique corriam de um para outro, curiosos. – Bem, não se atrase de novo, ou não poderei salvá-la de uma advertência.
– Hai.
– Ja ne... – deixou no ar para a surpresa dos chocolates, que silenciaram acompanhando-o com o olhar.
– Tão preocupado, ele... Não achou? – alfinetou a loura sob um sorriso cínico. – O que ele quis dizer com “teve problemas ontem”?
– Absolutamente não é da sua conta – Pôs a língua para fora, numa careta, e tomou a bola das mãos da amiga. – Anda, vamos treinar arremesso. Você é péssima nisso.
– Não sou, não... – grunhiu Dominique, correndo atrás dela.
***
O restaurante não estava tão cheio como ele imaginara, e o maître conduziu-os facilmente por entre o salão, até a mesa reservada por Nicole.
– Aqui está, Monsieur. – Depositou o menu nas mãos de Heilel.
– Por enquanto, sirva-nos dois martinis. – Fitou a moça, que consentiu com um olhar.
– Perfeitamente, Monsieur. – Fez uma mesura, depois de anotar o pedido e completou: – Se precisarem de mim, estarei por perto.
Heilel assentiu e baixou o cardápio, voltando a fitá-la.
– E sua mãe?
– Melhorando a cada dia, obrigada. – Encabulou-se ao responder.
– Não a quero de volta ao trabalho até que ela esteja totalmente recuperada.
Os verdes dela voltaram-se aos azuis.
– Por que faz isso por mim? – indagou diretamente.
Ele recuou por instantes, em pensamento, cruzando os dedos sob o queixo.
– Você me chamou a atenção.
Ela corou fortemente.
– Eu não sei o que está pensando de mim, mas... – Ela baixou os olhos, retirando a mão de cima da mesa, e foi impedida de prosseguir pela dele, que colocou a sua sobre a dela. Segurando-a.
– Não estou pensando em nada – afirmou em azuis intensos. A atitude dela, aquele recato. Tudo parecia tão mágico como quando estava com Hanya. Com cuidado ele concluiu suave: – Por que não conversamos e comemos uma bela refeição... e, quem sabe, você não tenha tanto medo de mim?
– Não estou com medo – ela retrucou enquanto o garçom depositava sobre a mesa, os martinis.
– Isso é bom... – Ergueu o copo na direção dela, com azuis ainda brilhantes sob a figura da morena. Seu corpo esguio no vestido vermelho que lhe caía bem, num drapeado por cima do decote de um ombro só. – Um brinde a nossa socialização – solicitou, aguardando por ela.
Com um sorriso, ela imitou-lhe o gesto.
***
O relógio marcava duas horas e não havia um sinal dele. Nada que indicasse que além de não jantar em casa, ele também não viesse dormir. Contrafeita, ela fitou o teto do quarto. A casa parecia ainda maior, sem a presença dele por perto. Cada segundo parecia martelar uma eternidade em seus sentidos e simplesmente não conseguia dormir. Colocou o robe rosa sobre o pijama de duas peças de gatinho e bufou ao se olhar no espelho, e retirar os cabelos pretos de dentro dele, espalhando-os sobre os ombros.
– Como quer se parecer madura vestindo isso? – condenou-se ao encarar sua imagem no reflexo.
Seu pensamento voou de volta à imagem do dia em que comprara aquela peça. Uma peça escolhida por ele, como quase todas em seu armário. Escolhida com um simples murmúrio:
– Está de acordo com sua idade.
As unhas que ela cravou na sua pele, irritada, em olhos de fúria. Unhas que ela não mais podia pintar de vermelho. Como ele conseguia ser mais rígido que a disciplina exigida dela, no Japão? Quem ele pensava que era?
Atirou o vidro de perfume contra a parede, espalhando o cheiro doce que ele escolhera para ela por cada canto do quarto.
– Kuso!1 – praguejou baixo, saindo para o corredor. Sufocada pelo cheiro enjoativo que a remetia a ele.
Os pés que ela deixou escorregar para frente da porta dupla no fim do corredor. A porta que a separava da suíte dele. O único cômodo da casa proibido para ela... Mas afinal, não havia ninguém a vendo àquela hora. Com dedos delicados, empurrou-a, entrando na atmosfera quente, em cores escuras. Tudo ali era sólido e mostrava a rigidez do caráter de quem o ocupava.
Deslizou por sobre o tapete preto até a cama, seu cobreleito vinho aveludado. A madeira escura dos móveis, imbuia. As cortinas fechadas e o perfume amadeirado dele, Polo. Suas pernas que tremeram, arrastando-a para o closet. Meio à escuridão quase densa do cômodo, esquecendo-se completamente da raiva que a consumira minutos antes.
Acendeu a luz da peça contígua, correndo dedos e olhos sobre os ternos, camisas. Todos alinhados em cores, a maior parte cores escuras. Azul, cinza, vinho, bordeaux... preto. Os chocolates que ela fechou ao juntar o nariz ao tecido e inspirar o cheiro. O cheiro dele. O coração acelerado... Por que ele não voltava para casa?
***
– Bem... – ele sussurrou próximo ao rosto da morena. – Está entregue.
Ela sorriu, o segundo daquela noite.
– Obrigada pelo jantar... – Fitou-o em verdes escuros. - E a companhia.
– Obrigado por não ter medo de mim – brincou ao tomar a mão dela entre a sua e beijar seu dorso som carinho. – Não foi uma tarefa fácil...
– Você tirou conclusões apressadas... – Ela retirou a mão rapidamente dali, sentindo um arrepio cobrir sua espinha como um veneno. – Não disse que tinha medo de você – decretou num resfôlego.
– Então, estamos empatados. – Foi a vez dele sorrir novamente. – Você também teve uma impressão errada sobre meus interesses.
O rubro preencheu as bochechas dela.
– Monsieur...
– Heilel, chama-me pelo meu primeiro nome.
– Heilel... – Ela mexeu levemente a cabeça, e a franja comprida cobriu-lhe as feições.
Ele tomou a mecha de cabelo entre os dedos, aproximando seus rostos. Os azuis fixos nos verdes e a respiração quente dela na sua.
– Bem melhor, não? – Afastou o cabelo, descendo os dedos até o pescoço dela, acariciando-a levemente.
Verdes alargados nos azuis em segundos infinitos, vendo os lábios dele se partirem e os seus seguirem-lhe o movimento. Um movimento único.
Fechou-os.
– Eu tenho que ir... – Destravou a porta, abrindo-a bruscamente.
– Vamos repetir isso qualquer dia. – Deteve-a por instantes, nos azuis brilhantes.
– Está bem – ela gaguejou e deixou o carro.
Os passos dela que ele seguiu com o olhar até entrar no prédio. A Ferrari que rasgou o asfalto minutos depois.
***
Três e meia, os chocolates que não detectavam movimento algum, somente sombras entendidas nas paredes e no chão. Sombras que a acompanharam até a cama, quando afastou a coberta e deitou nos lençóis de cetim vermelho. O lençol onde ele se deitava todas as noites... O cansaço vencendo-a aos poucos, conforme apertava o travesseiro macio entre os braços pequenos. Macio como ela imaginava a pele dele. Adormeceu.
A escuridão que o envolveu quando ele entrou no quarto, desfazendo o nó da gravata, atirando o paletó sobre a poltrona, que ele sabia estar ali perto. O caminho que ele conhecia tão bem, que desenhou até o closet sem esbarar em nada; sem fazer um único ruído. A camisa branca aberta, puxada displicentemente para fora da calça. Os botões dos punhos desatados. Os cabelos escuros que ele espetou num gesto seu, antes de tocar o interruptor do quarto e acender definitivamente a luz, a fim de trocar de roupa. Os azuis que pararam sobre o corpo entre os lençóis.
Primeiro veio o protesto em sua mente, conforme se aproximava da cama, vendo os gatinhos se mexerem levemente contra a pele dela. Ele fora severamente claro sobre onde ela poderia entrar e onde não. E aquele, era definitivamente o lugar do não. Ela se revirou entre a seda, voltando o rosto sereno para ele. Os pensamentos que sumiram completamente de sua cabeça ao ver os lábios pronunciarem sem som, seu nome.
Os azuis que desviaram de seus lábios. Como demônio sua alma fervia, como homem que era no mundo dos humanos, ele ignorava o calor em suas veias. Impaciente, tomou-a nos braços, relevando a quentura do corpo dela contra o seu. Erguendo-a da cama sem esforço e saindo com ela do seu quarto. O cheiro forte de cerejas que detectou ao entrar no quarto da menina. O perfume que combinava tão bem com ela. Deitou-a nos lençóis de algodão. Branco como devia ser para alguém tão jovem. O movimento dela capturando seu pescoço quando ele ameaçou se afastar. Os olhos fechados, mas o som da voz dela sussurrando em seu ouvido:
– Não me deixa... – Puxou-o para perto até colar a pele de seu pescoço nos lábios. – Onegai, eu não quero que você vá embora como os outros. – Uma pausa e os azuis surpresos, sentindo um arrepio na espinha. As imagens de Hanya em preto e branco na sua mente. – Já amanheceu? – ela indagou baixo, soltando os braços dele.
– Não... – ele respondeu sem saber por quê. Os azuis sobre ela, que se aninhou contra o travesseiro.
– Então, durma comigo... - deixou num último suspiro, sorrindo.
O que foi feito com aquela menina?
Sentou-se ao seu lado e correu o dorso da mão sobre o rosto dela, num carinho. Uma vez mais, as imagens de Hanya passeando em sua mente. Ela agora estava em meio aos jardins de sua casa, em Kioto. Mas que merda era essa?
Levantou aturdido e deixou o quarto de Aine. Estava ficando louco. Estava passando tempo demais preso às emoções humanas.
Os primeiros raios de sol que entraram pela janela, fazendo-a sobressaltar e gritar ainda no sonho:
– Você mentiu para mim!
A respiração rápida que escapou de seus lábios, o suor em seu corpo e os chocolates contra as paredes do seu quarto.
O que havia acontecido? Quem era aquela menina em seu sonho? E aquele homem?
Ela dissera seu nome, mas Aine não conseguia lembrá-lo. Lembrava-se apenas da dor no peito da moça... Tão menina quanto ela.
Por que sentia como se tivesse sido apunhalada por mil facas? Por que suas pernas tremiam tanto?
Abraçou o próprio corpo. Aquela dor tinha que passar... Tinha que passar. Sentia-se sufocada por sentimentos que não eram seus... Mas por quê? Os olhos manchados de vermelho transbordaram.
-------------------------------------------------
1 Merda!
20 de março de 2006– Sobre ontem à noite... – ela finalmente balbuciou, depois de um longo tempo de silêncio entre eles. Ele permaneceu atento à comida. – Queria pedir desculpas por ter invadido seu quarto.Ele parecia alheio as suas palavras, sorvendo o suco em seu copo, como de costume. Ela desviou os olhos para o lado oposto ao dele, crispando os dedos contra a saia. Amarrotando o tecido sob eles.– Não irá se repetir – completou baixo.– 22 de Março de 2006– Aine... – chamou-a. Os chocolates que encontraram os azuis dele por segundos, depois de um dia inteiro distante. Parados sob a janela da limousine. – Aiko virá buscá-la, se eu não puder.Ela assentiu sem protestar, ao contrário do que faria comumente, e isso o incomodou.– Não aceite carona de estranhos – advertiu-a antes que a 01 de Abril de 2006 Os azuis a fitaram andar de um lado para o outro da piscina do hotel por trás das lentes escuras dos óculos, recolhendo os copos sobre as mesinhas. Lançou um olhar furtivo para os lados, assegurando-se que estavam quase sozinhos, a não ser por um casal de jovens dentro d'água, que se dedicavam a coisas mais promissoras que uma fofoca. Sorriu de canto, sorvendo o resto do martini e se ergueu, jogando a toalha branca sobre o ombro esquerdo. Tinha planos.Ela continuou dando a volta na piscina, alcançando a entrada da cozinhCapítulo 6
Capítulo 7
03 de abril de 2006O celular tocou insistente, o azul vagou pela tela de cristal líquido onde um número privado piscava incontido. Não decidira se abria ou não o flip. – Heilel – disse ao atender.– Monsieur Heilel – a voz soou sibilante no outro lado da linha.– Tecnicamente, se você discou para este n&uacu
11 de abril de 2006– Quero que conheça um lugar... – ele disse sem fitá-la, à mesa do café. – Eu? – sugeriu surpresa.– Sim, Le Havre. – Ele não precisou olhá-la para saber que sua expressão mudara. Esperava por isso. – Já ouviu falar?– Um pouco – respondeu baixo. Onde ele queria chegar com isso? Era o lugar que estivera com Miguel, mas er
20 de abril de 2006 – Por que me chamou aqui?Seus olhos relampejaram nos pretos.– Explique-me... – O moreno insistiu calmamente, sem desviar o olhar. – Tem algo a me dizer?Ele se sentou pacientemente na frente de Lilith, que trajava um terno preto casual, camisa branca dobrada nos punhos e lhe sorria com um copo de líquido vermelho na mão.– O que quer
29 de abril de 2006– Hisako-sama! – o moreno saudou-o, prestando-lhe uma curta reverência. – É uma honra conhecê-lo. – O prazer é meu – devolveu num sorriso mal disfarçado, o homem de cabelos levemente platinados. – Talvez deseje algo para beber... – Manteve um sorriso contornando-lhe os lábios. – Chá, vinho, whisky... Quem sabe um martini? Pretos brilh
13 de maio de 2006– Isso está estranho. – Ela tentou inutilmente fechar os botões do vestido salmão às suas costas, e descasou-os. Bufou e lançou uma careta para seu reflexo no espelho. – O que faria agora? – Suspirou desanimada. Havia espantado as duas mulheres que a ajudavam, porque elas simplesmente reclamavam que era impossível fazer um penteado decente naquele cabelo curto. Quem pediu ajuda para elas? Sentou-se na beira da cama emburrada. Tinha que fechar aquilo de alguma forma, mas faltavam menos de quinze minutos para o h