Início / Fantasia / Heilel / Capítulo 1
Capítulo 1

Paris, 10 de março de 2006

Os cabelos pretos bem cortados sobre os ombros ondulavam com o vento. As mãos nos bolsos do terno caro, italiano. Um terno cinza escuro que realçavam os azuis de seus olhos, naquele terraço vazio onde gostava de fitar as nuvens. Nuvens que passavam rápidas por sobre sua cabeça, há muito esquecera como era pisá-las... Fechou os olhos em nostalgia, baixando-os.

Monsieur Heilel... – a voz veio como o som da água da fonte ali perto, a sua frente. Veio como ondas. – Faltam menos de dez minutos para a reunião, senhor.

Merci, Nicole – respondeu, os azuis presos ao jardim que mandara construir ali e enfeitar com cerejeiras. As flores que lhe remetia a ela.

Um suspiro, o bico do sapato de verniz voltando-se para dentro do prédio. Era engraçado pensar que a Eden Clinic havia se tornado o centro mundial de estética. Praticamente, todos os médicos mais conceituados na área trabalhavam para a Eden, quer fosse na matriz ou em alguma das sucursais espalhadas pelas grandes metrópoles mundiais. Uma, inclusive, na América do Sul, no polo brasileiro denominado Copacabana's Eden. A melhor vista para seus pacientes relaxarem os nervos.

Uma mente tranquila resulta num rejuvenescimento de pelo menos cinco anos, o restante vem das mãos mágicas dos profissionais da área e, claro, da mente perfeccionista dos clientes que os procuram. Noventa por cento deles, mulheres na faixa dos 35 a 50 anos, cuja estima foi abalada por um casamento monótono ou filhos que já alcançaram a adolescência e as fazem se sentirem “péssimas”. Ouvia sempre essa palavra de suas clientes. Péssimas, estigmatizadas, deprimidas... Um leque perfeito de opções.

Atualmente, entretanto, essa variedade diminuíra. Eram poucas, as pacientes, de quem cuidava pessoalmente. Seu tempo se tornara escasso, principalmente no último mês, quando recebera aquele chamado. Hesitou, por segundos, quando a porta do elevador se abriu, mas invariavelmente, deixou-o para trás na direção de seu escritório particular logo abaixo do jardim... Ainda sentia o cheiro das cerejeiras em flor.

Heilel, meu caro... – Os braços roliços atiraram-se ao redor de seu corpo e entre a massa de cabelos louros, divisou o rosto bonachão conhecido de seu contato com Ali Al Jakai; um dos mais proeminentes donos de poços de petróleo nos Emirados Árabes. Johnatan Hart era tido como o número um na indústria de petróleo e um visionário. Além de que, sabiamente, era um dos investidores da Eden Clinic: – Como estão minhas ações, hein? – Soltou a fumaça do charuto no ar. – Criando casas de milhar, eu já verifiquei. – Novo tapinha em suas costas e o mais alto saiu de seu alcance com facilidade, colocando-se junto a sua poltrona, do lado oposto da sala. – Você é um demônio! – Ouviu às suas costas.

Um meio sorriso crispou os lábios do moreno, antes que ele se sentasse, fazendo-o fitar o homem louro, malicioso.

Por isso mesmo, não se esqueça... – contrapôs em alerta, o que minimizou o sorriso no rosto do louro. – Sem mim, não haveria John Hart. Agora me diga, quem é dessa vez, Johnatan? – deixou no ar, quando se recostou na poltrona de veludo vinho. – Faz dois meses, desde que saiu daqui com a loura turbinada.

Mais ou menos isso... – assentiu o empresário enquanto tomava o lugar à frente de Heilel.

Se me recordo bem, só as unhas dela eram originais quando deixou a clínica... – Havia fechado os azuis e cruzado os dedos sob o queixo, ao apoiar os cotovelos na mesa. – Foram 10 horas de cirurgia, John... Para deixá-la atraente aos seus olhos.

Azuis se abriram repentinamente nos castanhos do louro.

O que tem para mim agora?

Estou apaixonado... - Suspirou.

A morena era sua outra metade... – pausou quase num escárnio. – Disse-me exatamente isso na última reunião.

Estava cego por sua beleza – protestou o louro.

Ambos se fitaram e sorriram juntos.

Sabe quantas mulheres lindas realmente existem nesse mundo, John? – indagou os azuis serpenteando pelo rosto claro do amigo.

O homem deu de ombros.

Beleza é um ponto de vista – rebateu firme.

Tenho que lhe dar os parabéns por ter chegado a esta conclusão – ponderou o moreno. – No entanto, noventa e cinco por cento das mulheres do mundo conseguem ver algum tipo de imperfeição em seus corpos e rostos, mas nunca em seu caráter. É aí, meu bom John, que elas pecam!

Não está tentando me demover com alguma daquelas teorias excêntricas de: o que vale é o interior... – Ergueu as sobrancelhas. – Está?

Sendo você, eu jamais ousaria... – retrucou Heilel sob um sorriso discreto. A maioria dos homens, ele pensava, gosta de ser enganados por essas mulheres. – Diga-me o nome da moça.

Marie...

Marie? – surpreendeu-se, o moreno. Era a segunda vez, em menos de duas semanas, que ouvia aquele nome. Seu cenho se tornou impassível sem o louro se dar conta.

Isso, Marie. Marie Dupont... – Ele sorriu, os dentes extremamente brancos apesar do tabaco comprimido entre os dedos. – Marie, a aeromoça mais bela que já vi em minha vida!

Uma aeromoça? – Os azuis sorriram. – John, meu bom amigo, John... – Ele havia se erguido e dera a volta na mesa, parando atrás do louro. Suas mãos em seus ombros atarracados. Sua voz em seu ouvido: – Ela disse que lhe ama?

O louro assentiu o mais depressa que pôde.

Antes ou depois de presenteá-la com um brilhante? – perguntou resignado, o moreno.

Depois, claro – enfatizou sem desespero, o empresário.

Devia parar de comprá-las...

Você não é um bom conselheiro sentimental, Heilel – retrucou John. – Não consegue arrumar uma namorada... E nos conhecemos há quanto tempo? Dez? Quinze anos?

O moreno bufou, vencido. Os azuis voltados para as janelas às suas costas. A única mulher por quem se apaixonara estava em sua cabeça há muito mais tempo que qualquer um poderia supor.

Você está absolutamente certo, John – concordou com o amigo, indo até ao bar e servindo a ambos, Whisky. – Traga-a em duas semanas.

Tudo isso? – sobressaltou-se o louro. – Achei que a teria perfeita em menos de cinco dias.

Eu tenho uma viagem inadiável depois de amanhã... – Não deu muita atenção aos protestos do amigo. Seus olhos fixaram um ponto na multidão, que se acotovelava para atravessar a rua. Aquela distância muitos nem identificariam seus corpos, mas ele sabia ser uma mulher no auge dos seus vinte e quatro anos. Os cabelos levemente avermelhados, preso em um coque. As unhas de um tom café e o tailleur de um azul escuro que ostentava um pequeno broche onde se lia: Dupont, Marie. Heilel sorriu, levando o copo de cowboy aos lábios. – Nos vemos na segunda, John.

Você não tinha acabado de dizer duas semanas?

Sua paixão pela moça me contagiou. Estou inclinado a atender seu pedido o mais rápido possível, antes que algum mal o acometa. – Dirigiu-se à porta, e antes de atravessá-la, concluiu: – Não se atrase.

Enquanto o louro ainda assimilava sua mudança de decisão, a secretária anotava mentalmente suas novas ordens:

Desmarque tudo que tenho para hoje, Nicole...

Sim, senhor.

E caso algo seja de extrema importância, use o celular que lhe dei. – Piscou-lhe o olho antes de deixar um leve beijo em sua bochecha e tomar o elevador.

Ele não viu o rubor na face dela, como sempre. Ela não se importou que seus sentimentos fossem desconhecidos por ele, bastava-lhe os quinze anos a seu serviço; os presentes de aniversário e Natal; as rosas do dia da secretária. Ela já tinha quarenta e cinco anos, ele ainda aparentava seus trinta.

***

A Ferrari F430 conversível disparou na estrada, cortando em riscos vermelhos o asfalto. Ele baixou a capota quando o cheiro de maresia atingiu-lhe os sentidos, dando-lhe a certeza que chegara ao seu destino: Le Havre, Normandia.

Parou à frente da pequena fachada branca no coração residencial de Saint-Andressa. Comparado aos outros hotéis da cidade, aquele era pequeno, mas suas dependências eram invariavelmente tão requintadas como a de qualquer outro hotel cinco estrelas. O gerente, em pessoa, veio até ele. O moreno retirou os óculos escuros, os cabelos pretos fustigavam em seu rosto sob o sol poente e sua voz se antecipou a do homem:

Bon soir, Pierre... – Fechou a porta da Ferrari e lançou as chaves ao manobrista. – Parece que perdi um lindo dia de sol.

Monsieur, o esperávamos amanhã... – Fitou o homem ao seu lado, que trajava uma bermuda branca com blusa polo azul listrada, e debruçava-se sobre o pequeno porta-malas, retirando dele uma bolsa de mão branca.

Isso quer dizer que ele ainda não chegou. – Sorriu-lhe enquanto o gerente o seguia de perto ao subir as escadas do hotel.

Não senhor.

Minha suíte, Pierre – solicitou ao parar no balcão e jogar a mala por cima do ombro esquerdo enquanto espetava os cabelos com a mão livre.

Ainda está sendo arrumada... – pigarreou baixo. – Pardon...

Arrume-me qualquer quarto onde eu possa tomar um banho.

Mas senhor...

Ergueu a sobrancelha em advertência.

Tente me convencer de que estamos lotados... – redarguiu ao apoiar os braços no tampo de granito róseo. – Se assim o for, tomarei banho nas suas acomodações.

O gerente grunhiu baixo, digitando algo no computador.

Quarto 205 – anunciou depois de breves momentos.

Serve... – ordenou-lhe, em dedos, que lhe desse o cartão magnético. – Avise-me quando a suíte ficar pronta. Au revoir...

Sim, senhor... – escapuliu, num alívio, dos lábios do gerente.

***

A hidromassagem foi ligada e o corpo submergido na espuma. Os azuis fechados incondicionalmente. Jacques só chegaria amanhã, até lá, estaria relaxado. Bastava-lhe algumas horas imerso naquelas notas de alfazema, que tudo estaria perfeito. Repassou, mentalmente os acontecimentos das duas últimas semanas enquanto era abraçado pela quentura da água.

Uma ida ao inferno por um dia não era o que ele podia chamar de divertimento, principalmente, quando há meses ele não o chamava com tanta urgência.

E Heilel se lembrou da última vez que estivera a sua frente.

Heilel... – Não era uma mulher de sorrisos, sua voz ecoava por cada uma daquelas paredes enegrecidas e quentes... Rochedos, esfriando-os. – Como vão os negócios?

Prósperos – respondeu simplesmente. – Não me chamou aqui para isso, não é?

Não... – Espreguiçou-se na chaise castanha, deixando que o roupão preto revelasse parte de suas pernas. – Estava com saudades. – Bebeu do cálice em sua mão direita e deixou os pretos passearem pelo moreno. – Você prefere os mortais a mim...

Era um escárnio e o moreno riu.

Você me ensinou a ser assim. E, como sei que será difícil abonar sua vaidade, asseguro que está satisfeita com minha dedicação – deixou no ar enquanto se sentava na poltrona à frente do Mestre. – Entretanto, eu sempre retorno aqui, para servi-la. – Cruzou as pernas em azuis fixos no Diabo.

Isso soa cruel, até mesmo para você – rebateu falsamente irritada. – Devia me agradecer. – E se ergueu languidamente da chaise, desafazendo o nó da faixa que atava o roupão a si. Deixando-o escorregar ao chão vagarosamente enquanto uma jacuzzi surgia perto dali com água borbulhante, escura e quente, que faria qualquer corpo ser consumido em segundos como se imerso em lava, mas não o dela, Nunca o dela. Sorriu para o os azuis, nu. – Eu o deixei fazer o que deseja... – Afundou na escuridão da água. – Eventualmente, deveria prestar contas de como as coisas andam lá em cima. – Assoprou as bolhas, que se formavam na superfície da água, no ar. – Já que eu não posso ir ao mundo humano, como gostaria – amuou-se.

O dedo do moreno serpenteou pelos lábios antes de devolver-lhe o gracejo:

Como se isso a impedisse de ir e vir quando bem entender – continuou, observando-a da poltrona. – Por que me chamou?

Tem assuntos lá em cima para resolver?

Muitos e inadiáveis.

Não sei por que o aturo? – Suspirou.

Porque sou indispensável aos seus caprichos, e sou seu servo predileto – retrucou, pondo-se de pé. – Mantenho sempre as chamas da vaidade, gula, luxúria, cobiça acesas entre os humanos. De uma forma que eu qualificaria como plenamente legal perante seu acordo com meu pai.

Seu pai… O acordo é dele, não meu. E você é péssimo se fazendo de advogado do Diabo. – Riu-se a demônio. – Mas gosto do jeito como sua mente trabalha... Sordidamente. Muito parecida com a minha.

Se só queria me elogiar... – Deu-lhe às costas. – Poderia ter mandado Ezequiel com uma nota.

Traga-me o roupão – exigiu séria, pela primeira vez naquela sala, interrompendo os passos do moreno.

Um gesto único, em que Heilel se abaixou para pegar o roupão felpudo e negro ao lado de seus pés. Os passos que ele teve que retornar até a jacuzzi.

Abra-o – nova ordem obedecida pelo moreno. – Você é sempre tão distante – protestou enquanto se encolhia entre os braços dele e vestia o roupão colado ao corpo do demônio.

Os azuis que estavam presos ao espaço escuro à volta deles, sem fitar-lhe. A boca de Lilith que crispou contrafeita.

Está bem, vamos aos negócios. – Puxou o roupão dos dedos do demônio enquanto saía da jacuzzi e voltava à chaise.

Como queira... – Sorriu ao segui-la. Poderia se valer de sua supremacia com outros, jamais com ela. Não era tão idiota para ser manipulado contra sua vontade.

Há um mês visitei o mundo humano. – Os pretos nos azuis, fechando o roupão displicentemente. Tinha perdido aquele jogo.

E não foi me ver? – desdenhou, vendo-o se ajeitar sobre a chaise.

Não brinque comigo... – alertou-o severamente. Lilith apenas manteve uma linha fina nos lábios enquanto ele completava: – Eu gerei uma criança, Heilel.

O semblante impassível do moreno sobre ele, sem lhe adivinhar os pensamentos.

Não vai me recriminar?

Pediu-me que não brincasse – retrucou prontamente.

Sabe quanto me custou fazer isso? – Pretos cintilaram sobre os azuis.

Alguns segundos?

Azuis inalterados com o queixo apoiado sobre os dedos longos, em cotovelos contra os braços da poltrona, analisando-o. Os dois se mediram friamente, até que a gargalhada de ambos se chocassem na escuridão.

Demorei mais dessa vez – ponderou, voltando a beber o líquido da taça que deixara inacabada.

Então, sua presa deveria ser bela...

Era perfeita – contrapôs seca. – A mulher certa para o tipo de acordo que propus....

Enganou-a.

Comprei-a, seria mais certo dizer.

Com o quê?

Uma vida de conforto. – Sorriu na direção de Heilel. – Mortais são tão fáceis de enganar... Eu lhe darei um excelente marido.

Qual o nome dela? – cortou-o.

Marie...

Deve haver poucas Maries na França – ironizou o demônio.

Ruiva e que irá encontrá-lo em um mês na igreja de La Madeleine, sim... Você me subestima, meu caro.

Não tanto quanto gostaria, devo corrigi-la.

Vou deixá-lo preso aqui, aos meus pés... – Fixou os pretos maliciosos no moreno, passeando a língua sobre a borda da taça, sedutoramente.

Sem desviar os azuis, ele se aproximou dela, mergulhando o indicador no resto do líquido da taça e provando-o. Os pretos ainda sobre si, aguardando em lábios entreabertos alguma oferta. O que seria uma grata surpresa, Lilith admitia para si mesmo.

Iria se cansar de mim tão rápido quanto do sangue nessa taça, se me tivesse aos seus pés... Majestade. – Estalou a língua. – Mande-o trocar... Já está azedo – segredou entre os rostos de ambos, próximos.

Faria o mesmo a você... – sentenciou a demônio quando ele já se distanciava definitivamente da chaise.

O moreno sorriu alto.

Se pudesse – Lilith completou. – Fique de olho nela para mim, e prometo que da próxima vez que for à superfície, visitarei seu apartamento.

Perdê-la-ei de vista...

Isso é um rompimento de contrato. – Apontou o dedo para imensidão acima de suas cabeças. – E ele irá lhe punir novamente e m****r aquela almazinha suicida para longe de você...

Os azuis suspensos na lembrança que tomou sua mente por segundos.

Está vendo como o conheço? Ainda pensa nela...

Eu moro numa mansão – disse baixo, já se tornando uma sombra. As lembranças afastadas dali.

O que disse? – a demônio interpelou-o, interrompendo o fluxo de seus próprios pensamentos.

Que moro numa mansão... – era só a voz do moreno que a cercava. – Não num apartamento. Você, sim, me subestima.

O demônio encostou seus cabelos pretos, lisos e compridos contra as almofadas de cetim vermelho, sibilando enquanto sorvia o sangue de doze condenados. Eram sempre doze condenados por vez, pelos doze mandamentos da boa bebida.

Sei que ainda irá me trair, Heilel... – Sorriu. – Mas não sei quando, e no momento, ainda é o mais fiel de meus servos, e o mais indispensável. Será um desperdício, quando sua hora chegar e seu sangue for derramado dentro desta taça. – Despejou o último fio vermelho sobre sua garganta; sentindo-o, deliciado, escorrer por sua pele morena e opaca. – Deve ser doce, encorpado… Delicioso. – Escorregou os dedos pela fenda do roupão, na altura do seu quadril. – Ah, maldição... – praguejou em bom tom, logo depois, retirando-os dali. – Preciso de Ezequiel.

***

Uma porta foi aberta ao longe, sem que ele percebesse, e minutos depois um par de olhos chocolates estavam sobre si. A boca comprimida sob os dedos, impedindo-lhe de gritar quando entrou na peça de banho e o encontrou.

Monsieur, eu... – Ela desviou o olhar dos azuis dele, que haviam se aberto e a fitavam atentamente de dentro da hidromassagem. – Não sabia que o quarto estava ocupado, pardon moi.

A moça de cabelos caramelos e curtos deslizou de volta para a porta do banheiro enquanto prosseguia com cuidado:

Eu deveria arrumá-lo para o próximo hóspede... Então... – gaguejava.

Passe-me a toalha, por favor... – pediu em sua voz doce.

O quê? – indagou, impedindo o fluxo de suas palavras.

A toalha – ele solicitou uma vez mais.

De costa para a hidromassagem, ela fitou a toalha ao seu lado. Felpuda e branca com o emblema do hotel. Um A e R sobrepostos em linha dourada. Hesitava ainda presa ao receio do homem nu no mesmo recinto que ela.

Estou congelando, caso não se importe, senhorita... – Desenhou a silhueta dela, sob o uniforme salmão, com seus azuis curiosos. Busto 90, cintura 82, quadril 98... Anotou mentalmente, era instintivo para olhos treinados como o dele. Mas, aqueles cabelos... A cor deles. Perdeu-se em recordações.

Carine – ela completou enquanto fechava os dedos sobre a toalha e caminhava, de costas, até a hidro. – Sou a camareira, Monsieur.

Ele voltava a si, nas palavras dela.

Não sabia que empregava mulheres tão bonitas – murmurou ao encontro de seu pescoço. Ela arrepiou.

Como disse? – contrapôs, trêmula, pelo sopro quente e o cheiro de alfazema que exalava dele.

Disse que você é bonita – repetiu paciente, deixando a banheira e parando atrás dela.

Antes... – Ela se virou, encarando-o. Não sabia que estavam tão perto.

Os verdes alargados e ele sorriu.

Que sou seu patrão, é isso? – sugeriu ao passar a mão nos cabelos úmidos, fazendo escorrer gotas d'água sobre seu peito definido. Ela notou sem fala, acompanhando os filetes na pele clara até borda da toalha, enrolada em sua cintura. – Senhorita? – chamou-a, retirando-a do transe momentâneo.

Precisa de mais alguma coisa? – falou com certo esforço, obrigando-se a se recompor e fitar o lado oposto ao que ele ocupava.

Minha suíte – soprou contra sua bochecha, vendo-a ser preenchida por um leve rubor.

Certamente, Monsieur. – Ela se apressou em se afastar.

Você não é daqui, não é? – Deteve-a pelo pulso. Aproximando-os de novo.

Não, minha mãe é francesa, mas nasci em Kioto. – Os azuis nos verdes dela, e os dedos dele que escorregaram até sua mão, aquecendo-a estranhamente. Kioto, era esse o lugar onde se viram a primeira vez. Num carinho sobre sua pele, fê-la prosseguir: – Meu pai morreu há dois anos e nós resolvemos voltar para sua cidade natal.

Por que não está com ela, em casa? – perguntou preocupado. Não conseguia disfarçar sua surpresa ao tocá-la.

Preciso do emprego para os remédios – ela balbuciou, sem notar as lágrimas em seus olhos. Sem saber por que chorava na frente de um estranho como ele.

Vá para casa – retrucou seco, retirando sua mão da dela. Há muitos anos não sentia aquele calor, aquela quentura de pele.

Está me despedindo? – tremeu involuntariamente. – Não pode fazer isso, nunca deixei minha vida pessoal interferir no meu trabalho!

Escute... – Tomou os ombros dela entre os dedos. – Vá para casa e só volte quando a pneumonia dela melhorar.

Os verdes incrédulos nos azuis dele. Ele não devia ter dito nada, era errado.

Como sabe sobre isso?

Eu sei tudo sobre quem trabalha para mim – ponderou, tentando esquecer a influência dela sobre seus sentidos. Seria possível?

Disse-me antes, que não sabia que empregava belas mulheres...

Menti. – Sorriu-lhe sem vontade. – Queria testá-la.

Entendo – ela desanimou.

Não vou despedi-la, fique tranquila – sentenciou, por fim, fitando seus traços uma vez mais. – Agora vá, Carine. Sua mãe precisa de você.

Merci, Monsieur... – ela não sabia como agradecer e saiu do banheiro. Ele deixou os azuis acompanhá-la até a porta, e depois apoiou os braços contra a borda da pia, encarando a si mesmo no espelho sobre ela.

A porta que se fechou distante, anunciando que ela partira. Por que tinha a impressão de que a conhecia? Aqueles cabelos caramelos... Só o havia visto uma vez em toda sua existência.

Seria esse, o sinal que esperara por séculos?

Hanya...

Seu hálito quente contra o espelho, esfumaçando-o.

***

Parcial de 15/30... – declarou ao erguer a sobrancelha e encará-lo maliciosa. – E se Jacques fizer esse ponto, você está perdido.

A mão dele que se fechou ao redor da bola de tênis, quicando-a.

Cale a boca Meline! – exigiu num sorriso mal disfarçado.

Meu marido é incapaz de perder uma partida, Heilel. – Esperou a bola do moreno ser lançada, enviesada, pela quadra. O homem de cabelos castanhos bem aparados, porte atlético e bronzeado, metido num uniforme impecavelmente branco, esticou-se todo para apenas ensaiar uma rebatida que não ocorreu. A bola passou a sua esquerda, rasgando o ar e aterrissando 5 milímetros dentro da faixa branca. – Ui... – Ela fez uma careta.

Anote, benzinho, match point para o papai aqui. – Piscou-lhe o olho.

Ei, Heilel... – Jacques pôs as mãos sobre os olhos, interceptando o sol e alertando-o: – Não flerte com minha esposa.

É, benzinho... – disse a loura às suas costas. – Para você, é Mademoiselle Meline Renée. Casada e dona de uma barriga de sete meses bem redonda.

Ela se ergueu da cadeira ao canto da quadra, mostrando-lhe o futuro herdeiro dos Renée.

Se disser mais uma gracinha... – Passeou os dedos pelos cabelos escuros. – Mando retirá-la a força daqui.

Não ousaria. – Estreitou seus verdes sobre ele.

Experimente – alfinetou-a.

Hei... – chamou-os, Jacques, do outro lado da quadra, impaciente. – Detesto interromper a reunião de família, mas tenho um negócio para fechar daqui há duas horas, em Londres.

15/45 – ela determinou contrafeita, emburrada na cadeira.

Boa menina – ironizou o moreno. – Jacques, péssimas notícias... Ela vai querer caramelos e chocolates em vez de proteína de soja.

Mande essa bola e acabe com isso – protestou o amigo, colocando-se em posição de defesa a sua frente.

Não entregue os pontos, meu anjo – ela gritou para o marido, acenando-lhe um beijo.

Ele é meu maior acionista, se eu perder talvez consiga comprar mais caramelos...

Os três sorriram e a disputa recomeçou, ao menos até que Heilel ganhasse.

Boa partida – disse-lhe o amigo enquanto tomavam água. – Há tempos não o via jogar tão bem, Heilel.

Aposto que estão falando mal de mim – ponderou, assim que colocou a barriga proeminente entre os dois homens.

Totalmente. – Envolveu-lhe o pescoço com a toalha molhada de suor.

Tire isso de cima de mim... – retrucou, desviando do abraço do moreno e refugiando-se nos braços do marido. – Fede! – Entortou o nariz.

Quando éramos namorados, não se importava... – alfinetou-a, levando a toalha aos cabelos.

Não, eu era cega – retrucou num sorriso, entrelaçando os dedos aos de Jacques.

Creio, Meline, que Heilel está de amor novo – foi a vez do amigo ironizar ao pé do ouvido da esposa.

Mesmo? – Os olhos dela brilharam nos do moreno.

Isso é coisa da cabeça de seu marido – protestou, desviando os azuis deles e dando-lhes às costas. – Pura especulação.

Estava achando que tinha me livrado de ser a ex-namorada comprometida como desafeto – desanimou-se.

Sem chances. – Voltou-lhes o rosto, sorrindo. – Sou amante de uma causa perdida.

Mas estou grávida de outro – redarguiu cínica.

E serão gêmeos – completou o marido enquanto seguiam Heilel a certa distância.

Ela ergueu a sobrancelha preocupada, e sussurrou a Jacques:

Gêmeos?

O marido abraçou-a mais forte e se beijaram de leve.

Uma pena que se recusou saber o sexo do bebê...

Será uma menina – cortou-os o moreno, ao longe, e o celular tocou.

Ele parou e atendeu:

Pronto. – O azul se perdeu escuro no horizonte. – Tem certeza? – Uma pausa breve e o casal que se entreolhou atônito. – Quero meu jato pronto em uma hora... É tudo.

O aparelho foi fechado e devolvido á sacola de couro branca.

Problemas?

Algo numa das minas de diamante na África do Sul... – Sorriu-lhes. – Nada que eu não consiga resolver.

Ainda não tira férias, não é? – A loura sorriu-lhe.

Não – ele consentiu.

Foi por isso que não demos certo.

Estalou um beijo em sua bochecha e abraçou o amigo.

É por isso que sou o padrinho de sua filha. – Piscou-lhe o olho. – Cuidem de tudo na minha ausência.

Ele não muda – sugeriu Jacques, assentindo com a cabeça na direção do moreno, que se afastou rapidamente. – Mas ainda acho que tem mulher envolvida no fato dele ganhar essa partida.

Você também não.

Mas tiro férias. – Depositou um beijo apaixonado nos lábios dela.

***

Nicole? – ele indagou ao entrar na pista do aeroporto, num pequeno carro que o levaria até o jato. A secretária respondeu algo do outro lado da linha e Heilel completou: – Descubra o endereço de uma moça que trabalha para mim... Ela é camareira do Akahana Resort's, em Le Havre, e seu primeiro nome é Carine.

Uma pausa e ele sorriu. O terno creme contrastando com a pele queimada pelo sol daquela manhã na quadra de tênis.

Continue anotando. – Novo sorriso e o carro parou em frente ao tapete vermelho, estendido até as escadas do Dassault Falcon azul. – Cabelos curtos caramelos, olhos verdes, pele clara... Estatura mediana.

Bem-vindo, Monsieur Heilel – a comissária o recebeu com um sorriso elegante. – Está tudo pronto para partimos.

Ele assentiu e prosseguiu a ligação:

Quero uma braçada de flores do campo para o endereço que você conseguir, e no nome da mãe dela. – Ele fechou os azuis enquanto tomava um dos assentos de couro castanho e um martini lhe era servido. – Mande em meu nome, com estimas de boa convalescença.

O jato continuava parado, aguardando a ordem para decolar.

O que seria de mim sem você, Nicole? – Ele sorriu ao ouvir a resposta e finalizar a ligação: – Au revoir.

O celular foi largado sobre o tampo de carvalho a sua frente, e os olhos azuis da moça, no uniforme cinza escuro, fitou-o em espera.

Pode decolar.

Ela sumiu por entre as cortinas vermelhas e a voz do comandante foi ouvida:

A viagem será agradável, senhor. Não há motivos para preocupações.

Ele recostou na poltrona e mentalmente sugeriu: Eu sei, mas ainda assim, prefiro meus pés no chão.

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >

Capítulos relacionados

Último capítulo