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02. Sonhos e Discussões

Chegamos a casa de Neandro quase que desmaiando. Estávamos todos muito, mas muito cansados. Neandro e Levinda tiveram que carregar Thalisa até o sofá. Eu e Alexis estávamos bem próximos de chegar aquele extremo de não se aguentar em pé.

– Mas o que houve com vocês? – Levinda perguntou preocupada.

– Tudo que não poderia acontecer! – Alexis respondeu ofegante.

– Vocês andaram do porto até aqui a pé? – Neandro perguntou assustado.

– Sim! – respondi também ofegante – Não havia cavalos. Os que estavam com nosso grupo acabaram sendo levados para o castelo. Eles não chegaram?

– Não.  – Neandro respondeu confuso.

– Eu vou pegar uma jarra de água. Não, duas. Vocês estão horríveis! – Levinda estava desnorteada. Deveríamos estar muito horríveis mesmo.

– Conte o que aconteceu? – Neandro perguntou.

– Poderia nos dar um tempo para recuperarmos nossas forças? – Alexis já estava fechando os olhos – Iremos contar tudo, prometo.

– Não, quer dizer, claro. – Neandro também estava desnorteado – Vou ajudá-los a chegar até os quartos.

Desde que foi declarado oficialmente guerra, Neandro resolveu ampliar a sua casa. Construiu mais quartos e banheiros, além de aumentar a cozinha. Neandro e Alexis usaram um pouco de magia para agilizar a obra. Eu e Thalisa continuamos dormindo no mesmo quarto, mas agora cada uma tinha seu espaço. Os meninos também haviam ganhado um espaço para cada um deles. Cosmo ganhou um espaço, mas acabou não utilizando. O Rei Célio achou mais útil deixar Cosmo no castelo ajudando a projetar algumas armas novas.

Thalisa foi novamente carregada até a cama. Eu entrei no quarto e me joguei na minha cama como se minha vida dependesse disso. E de certa forma ela dependia. Não cheguei sequer a reparar que Levinda já havia posto uma jarra d’água e um copo ao lado de minha cama, na escrivaninha. Bebi a jarra inteira em meio minuto.

Meus olhos fecharam de imediato quando deitei novamente na cama. A janela do quarto estava aberta e a única coisa que senti foi o vento fresco que entrava por ela. Uma esperança crescia dentro de mim nesses momentos. Era como se a natureza estivesse dando um aviso de que ainda existe beleza neste mundo e que nem tudo está perdido. Pelo menos não completamente perdido.

Comecei a lembrar da primeira vez em que estive aqui. Parece que faz séculos que eu acordei naquela floresta e encontrei o príncipe encantado mais metido e arrogante do mundo. É tão engraçado ver como eu mudei. Eu era tão infantil e insegura. Naquela época eu nunca imaginaria que um dia ficaria de tocaia, apenas esperando a hora de atacar. Nunca imaginaria que um dia eu me tornaria uma guerreira mágica e que um mundo inteiro dependeria de mim para sobreviver. São tantas coisas que mudaram. Esses quase dois anos parecem uma vida inteira se for olha tudo o que já aconteceu comigo.

Cai no sono poucos minutos depois. Poucos minutos mesmo. Como já estava virando uma regra, meus momentos de descanso, assim como minhas noites de sono, eram sempre invadidas por pesadelos horríveis. E mais horrível ainda era acordar e não ter o consolo de que aquilo era apenas um sonho ruim, aquilo era um presságio.

Eu estava deitada, exatamente como eu estava fora do sonho. Eu abria os olhos e via um reflexo do sol bater muito forte no local onde estava deitada. Vi o castelo da Capital em chamas. Era terrível. Tentei correr para ajudar, mas não conseguia. Estava presa.

“O castelo está sendo destruído!” ouvi a voz de Alexis.

“Os homens de Leone estão invadindo o reino!” uma voz que não conhecia era quem falava desta vez.

“Onde está a Beatriz?” era a voz de Nicardo.

– Eu estou aqui! – tentei chamar atenção deles – Aqui!

“Beatriz, onde está você?” a voz do Rei Célio “Onde está você Beatriz?”

– Alguém?! – bati na parede invisível que me prendia – Alguém me tire daqui!

“Beatriz?” uma voz poderosa vinha de dentro da minha prisão “Você precisa voltar!”

– Eu sei, mas como eu saio daqui? – perguntei assustada.

“Use seu coração!” a voz se distanciava “Apenas seu coração pode te levar de volta a Ofir!”

– Meu coração? – perguntei – O que você quer dizer com coração?

Acordei com um salto que me levou da cama ao chão. Meu bumbum ficou completamente dolorido com o tombo, mas esse era o mais mínimo dos detalhes. Pensei no que aquele sonho poderia significar. Eu? Presa? Já estava assustada demais achando que poderia não dar conta do que estava pra acontecer estando com as duas mãos livres. Se estiver presa...

– Beatriz? – Alexis estava do meu lado – Você está bem?

– Eu... eu... – quase coloquei mais uma preocupação na cabeça de Alexis – Não foi nada. Apenas tive um sonho com o dia de hoje. Com a batalha. Tudo novamente passando em minha cabeça. Acho que fiquei impressionada, mas estou bem.

– De verdade? – ele perguntou com um olhar de zelo irresistível.

– E eu já menti pra você? – tentei usar do humor para fazê-lo parar de insistir.

– Você quer que eu seja sincero? – ele sorriu.

– Não há necessidade. – retribui o sorriso da melhor forma que pude.

– Apesar de estar um caco você continua linda. – Alexis me abraçou.

– Mentiroso. – sorri. Desta vez de verdade.

– Mas é verdade! – ele deu um cheiro no meu pescoço – O que eu posso fazer se eu amo você. Amor a gente não escolhe. Paixão até que conseguimos, mas o amor... Ou você acha que se eu escolheria uma garota rabugenta, abusada e encrenqueira para ser minha futura esposa.

– Esposa? – fiquei surpresa – Está falando sério?

– Quando tudo isso acabar eu quero me casar com você Beatriz!

– Mas assim, agora? – continuava surpresa – Nós ainda nem completamos 20 anos. E mesmo assim ainda acho cedo.

– Pra quem tem a vida todo pode até ser mesmo, mas nós não precisamos casar agora. – Alexis me apertou um pouco mais – Podemos esperar até eu ser coroado. E se depender de mim isso ainda vai demorar muito. Quero que meu pai ainda tenha muitos anos de vida pela frente.

– Mas...

– Veja bem – Alexis me soltou. Coisa que não gostei – nos oficializamos o nosso relacionamento. Assim todos saberão que eu pertenço a você. Depois nós esperamos alguns anos e fazemos a cerimônia.

– É realmente necessário ficarmos noivos? – perguntei.

– É obrigatório. – Alexis ficou sério – Para um príncipe não existe a palavra “namoro”. Aqui em Ofir os príncipes costumam ser prometidos a grandes futuras damas da realeza ou princesas de outros reinos antes mesmo de nascerem.

– Não estou gostando disso. – fiquei nervosa – Você já foi prometido para alguém por acaso?

– Não. – ele achou graça – Apenas os primogênitos são prometidos. Afinal, eles que assumirão o reino. No meu caso, como meu irmão optou por ser deserdado eu acabei sendo o primeira opção para sucessão da coroa. Mas o meu casamento não foi planejado. Acho que eu já estava prometido a você.

– Você quer dizer que eu irei me tornar rainha? – achei estranho em como isso soava em meus ouvidos.

– Se aceitar meu pedido...

– Você ficaria muito chateado se eu não respondesse nada agora? – tentei não parecer grossa – Se fosse outros tempos eu responderia a você que sim, mas eu não tenho cabeça para nada disso.

– Claro. – Alexis sorriu – Eu entendo perfeitamente. Não veja isso como uma cobrança, mas uma sugestão de um plano para o futuro.

– Obrigada. – sorri meio sem jeito – Você sabe que tudo o que eu quero e ficar ao seu lado sempre.

– Eu sei. – ele voltou a me abraçar – Eu também quero ficar com você para o resto da minha vida. Nem que seja uma breve vida.

– Não fale isso nem brincando! – me apertei mais a ele – Eu não consigo nem pensar em não poder te ver nunca mais. Agora você é tudo o que eu tenho.

– Acho que não preciso dizer que sinto o mesmo por você!

– Não acredito! – uma voz ecoava pelas paredes. Parecia vir da sala e parecia ser de Neandro.

– Vamos ver o que está acontecendo? – perguntei.

– Acho que sei o que é. – Alexis olhou aflito – Veja.

Olhei pela janela do quarto e vi dois soldados de Tales na porta. Nenhum deles estava com cara de boas notícias. Pelo contrario, estavam com cara de quem trazia mais problemas para as nossas mãos.

–... E foi isso que aconteceu. – era a voz de Tales.

– Mas por quê? – Neandro perguntava no exato momento em que entravamos na sala.

– Beatriz? – Tales parecia ter encontrado em mim seu ponto de salvação – Contaram-me que estava quase desacordada.

– Eu já estou melhor. – fiz uma cara de quem estava vendendo saúde – A Thalisa que ainda está dormindo. Ela é uma garota forte, mas acho que desta vez acabou sendo demais para ela. Vocês estavam discutindo ou era impressão minha.

– Não exatamente. – Neandro fitou Tales repreensivo.

– Vocês estão me escondendo algo! – já estava entendendo as trocas de olhares – Exijo que me contem!

– Alexis! – Neandro achou graça – Pare de ensinar coisas erradas a Beatriz!

– Eu não estou ensinando nada! – Alexis levantou as mãos – Sou inocente!

– Vocês querem parar com isso? – falei alto – Eu sei que está acontecendo algo que vocês não querem me contar. E melhor me contar logo ou terei que descobrir por mim mesma!

– Não há nada...

– Não! – Tales interrompeu Neandro – Ela está certa. Ela tem o direito de saber.

– Obrigada Tales. – dei um sorriso debochado. Realmente, eu estava pegando as manias do Alexis.

– O que está havendo aqui? – Thalisa se levantou – Estão fazendo uma reunião? Eu dormi por quanto tempo?

– Já é de manhã. – Neandro respondeu.

– E não me acordaram por quê? – Thalisa perguntou esfregando os olhos.

– No estado em que você chegou ontem à noite, achei melhor não te incomodar. Achei até que você dormiria até amanhã. – Neandro ajudou Thalisa a se sentar. Ela ainda parecia cansada.

– Mas o que está acontecendo aqui? – Thalisa quem perguntou dessa vez.

– Era exatamente o que eu estava perguntando a eles faz poucos minutos. – respondi em um tom debochado.

– E eu estava prestes a responder. – Tales voltou a olhar torto para Neandro.

– Então diga logo de uma vez! – Thalisa respondeu em um visível mau humor. Algo nada típico da parte dela que sempre foi tão calma.

– Alguns dos meus homens acabaram com ferimentos mais graves do que pareciam. – Tales começou a explicar – As armas que os falsos soldados usaram parecia estar envenenada. Todos que foram atingidos por ela, mesmo que de raspão, acabaram sendo envenenados. O veneno parece agir da seguinte forma: A primeiro momento causa uma ferida imperceptível, mas com o passar do tempo essa ferida vai se abrindo até corroer todo o local atingido deixando o restante imóvel. Muitos dos meus homens perderam completamente os movimentos dos braços e alguns das pernas.

– Espere! – gritei – Alexis você foi atingido!

– Eu fui? – Alexis balançou a cabeça – Nossa! Tinha me esquecido!

Retiramos imediatamente o curativo improvisado que eu havia feito na mão de Alexis e o que vimos não foi muito bonito. A ferida, que a principio parecia pequena na parte superior, perto do dedo mínimo, agora havia tomado os dois últimos dedos de Alexis e um pedaço da parte inferior da mão, na palma.

– Que horror! – disse alto – Precisamos fazer algo urgente.

– Era exatamente isso que estava falando para Neandro. – Tales tentou ficar calmo – Eu preciso ir com urgência ao castelo. O Rei Célio deve conhecer algo que posso eliminar esse veneno antes que atinja os órgãos vitais das pessoas. Mas precisamos agir rápido, não sabemos quanto tempo o veneno demora a infectar outras partes do corpo.

– E por que vocês estavam discutindo sobre algo tão sério? – perguntei nervosa – Vamos imediatamente ao castelo!

– Mas ele não contou que quer cuidar de sabe lá quantos homens sozinho. – Neandro falou em tom de deboche provando que era da família.

– Tales? Aquela história? – perguntei.

– Beatriz, você prometeu esperar!

– Eu sei o que prometi! – respondi.

– Você já sabia dessa história? – Neandro perguntou confuso.

– Sabia. – respondi sem expressão.

– Gente, acho que agora não é lugar para decidir isso. – Thalisa começava a acordar de verdade.

– Será que podemos ir logo? – Alexis parecia desesperado.

– O que foi? – perguntei.

– Eu acho que o veneno está se espalhando.

Olhamos todos para a mão de Alexis. Realmente não parecia nada bem. Estávamos vendo exatamente o caminho se formando. A ferida estava começando a descer, seguindo para o braço de Alexis. Nós tínhamos mesmo algo mais importante para pensar naquele momento do que se Tales iria ou não ajudar seus homens sozinho.

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