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CAPÍTULO DOIS - 2ª PARTE

Sentiu o gelo da morte, mas mesmo assim ainda no escuro, ajeitou o braço e o corpo de seu Zé sob as cobertas e aí sim abriu a janela e olhou para cama.  Seu Zé Carlos estava morto! Olhos fechados, boca meia aberta e um semblante tranquilo.  Parecia dormir não fosse a cor de chumbo do rosto que lhe dava uma aparência macabra e doentia. Fechou os olhos e levou a mão sobre a boca e respirou profundamente.   Ajoelhou na beira da cama e fez uma prece em favor da alma do pai, o abraçou, beijou sua testa fria como o gelo, agradeceu por tudo que ele fez por ela.   Morreu como um passarinho Seu Zé! Sem fazer barulho.

Marta estava acostumada com a morte. Nas calçadas por onde andava nas noites de puta em Copacabana já tinha visto uns defuntos.  Alguns até vítimas de morte matada o que tornava a cena bem apavorante.  Também enterrou o irmão mais novo morto em um confronto com a polícia em uma favela próxima. Foi ela quem reconheceu o corpo, limpou e vestiu Carlinhos e providenciou o enterro. Tinha doze anos. Só ela, a mãe e Laurinha vieram se despedir dele. Era uma forte Marta! 

   Saiu devagar para não acordar a irmã, e foi até a igreja. Falou com o padre que telefonou para a polícia que veio e retirou o corpo enquanto Marta contava o acontecido para a irmã que chorou muito e foi consolada. Agora eram só elas duas!

  No envelope sobre a mesa Marta encontrou uma soma em dinheiro e papeis que o padre leu e explicou que era a dispensa dada pelo médico pois seu Zé estava muito doente. Cada vez mais descuidado por conta das bebedeiras, manuseava os venenos no trabalho sem nenhuma proteção. Muitos morreram assim! Seu Zé Carlos foi um desses. Morreu envenenado!

Um tempo depois essas mortes foram notícia de jornal. Muitas das famílias dos mortos processaram o Laboratórios Park Davis Ltda.!  Foi um grande escândalo! E esse escândalo mudaria a vida das irmãs para sempre!

O padre levou o dinheiro e foi providenciar o enterro. Ele cuidou de tudo. Padre Augusto era um bom homem e conhecia a família. Quantas vezes acompanhou D’Ana e a ajudou a procurar e levar o marido embriagado para casa. Ela era católica praticante e participava de todas as campanhas da igreja. Ele sabia que as meninas estavam sozinhas agora. A kombi da paróquia veio buscá-las para o funeral. Alguns poucos parceiros de copo da favela acompanharam o cortejo.   Não teve ninguém do trabalho em seu enterro.

Na volta para casa ele as deixou na entrada do beco, entregou os papéis do enterro para Marta e devolveu o dinheiro do envelope pardo.  A paróquia pagou pelo enterro.

- É pouco mas dá para o gás e a comida para o resto do mês. Se precisarem de ajuda me procurem. – Olhou carinhosamente para Marta que carregava Laura chorosa no colo, fez o sinal da cruz em suas testas e abençoou as meninas.

- Que Deus as abençoe! – e foi.

Nos dias que se seguiram Marta tocou a vida como de costume. Cuidava do barraco e da irmã durante o dia e a noitinha colocava Laura na cama, trancava o barraco e saia para ganhar a vida. Voltava de madrugada, duas ou três da manhã. Se preocupava com a irmã que ficava só. Voltava antes do amanhecer.

  Naquele ano, 1969, depois do Carnaval, ouve um grande reboliço na favela. E não se falava em outra coisa a não ser sobre a remoção dos favelados dali. Muitos eram a favor pois achavam que iriam receber um lugar melhor como moradia, mas a maioria tinha medo pois o governo da ditadura era conhecido por sua violência principalmente com a população pobre.  A polícia andava pela favela distribuindo folhetos e pregando anúncios de despejo na porta dos barracos. Chutando as portas e batendo nos que encontravam pela frente.  Tocavam o terror pois assim não encontrariam resistência.

Marta tinha medo de que alguma coisa acontecesse enquanto Laura estivesse trancada e sozinha no barraco e passou a voltar mais cedo.

Naquele dia, dez de maio, em especial, nem saiu!

Viu o rebuliço do povo, alarmado com a certeza da remoção. Ninguém queria sair dali. Não confiavam no governo. Como puta experiente que era, ela sabia que pobre quando arruma confusão acaba em cana ou morto pela polícia. Preferiu esperar, fechada no barraco, a confusão passar.

Os sete mil moradores da Praia do Pinto se aglomeraram em torno da Lagoa Rodrigo de Freitas e recusaram-se a sair. Invadiram as ruas do Leblon em passeata, com faixas e cartazes e disseram não a remoção.  Naquela noite o DOPS invadiu a favela com seus camburões e levou muitos homens e mulheres, acusando-os de liderarem o que eles chamaram de conspiração e baderna. Esses nunca mais apareceram!

  Então, naquela madrugada de onze de maio de 1969, dois meses depois da morte do pai, durante a madrugada, um incêndio "acidental" alastrou-se pela favela, e apesar de muitos moradores e vizinhos alarmados terem chamado os bombeiros, estes, evidentemente cumprindo ordens, não apareceram. Pela manhã, quase tudo tinha sido arrasado. Muitas famílias não conseguiram salvar seus parcos haveres. Camburões cercavam a favela e recolhiam os moradores que atordoados nem sabiam o que estava acontecendo. Muitos desapareceram completamente, deixando suas famílias em desespero.  Marta acordou com a gritaria dos vizinhos no beco. Abriu a janela do barraco e viu a bola de fogo em que se transformara a favela, viu todos correndo desesperados arrastando crianças, o barulho do fogo era apavorante.  Rapidamente entendeu o que estava acontecendo e pegando Laura no colo abriu a porta do barraco, pegou as mochilas sempre prontas dependurados num prego ao lado da porta:

- Puta não pode sair sem bolsa. – Pensou.

Mantinha duas bolsas preparadas para uma saída rápida desde a morte do pai. Preocupava-se por saberem que eram duas meninas sós naquele barraco e com a covardia das pessoas. Nessas mochilas tinha documentos, algum dinheiro e mudas de roupa além de seu precioso caderninho com os telefones e endereços dos clientes mais fiéis.  E saiu!  Lançou-se com Laura no colo no inferno daquele incêndio assassino e covarde!   

A favela da Praia do Pinto ardia em chamas!

 A Lagoa Rodrigo de Freitas era um grande conjunto de favelas e a principal delas era a Praia do Pinto, a terceira maior favela plana do Rio de Janeiro.   Era uma área considerada nobre e o poder público junto com o mercado imobiliário e a iniciativa privada viviam de olho naquele espaço, movimento que se intensificou com a entrada dos militares no poder em 1964.  A maior quantidade de remoção de favelas se deu no período da ditadura.

 Na saída do beco já tomado pela fumaça negra Marta sentiu dois braços fortes envolvê-las e num só movimento se viu jogada dentro de um veículo que saiu em disparada em direção contrária à do fogaréu, rumo ao Leblon. Era padre Augusto com a kombi da paróquia da Igreja Santa Margarida Maria e foi lá que se refugiaram. Do alto do campanário da igreja o padre viu as chamas que destruía a favela, lembrou-se delas e foi buscá-las!  No caminho foi recolhendo várias crianças, mulheres, velhos e até animais que fugiam do fogo.  Um santo padre Augusto!

Mal havia amanhecido e as irmãs olhavam do alto da torre da igreja os escombros e a fumaça que tomou conta do ar e ainda ardia nos olhos.  Isso era tudo o que havia sobrado da favela. 

  Laura viu seu mundo reduzido a cinzas e sabia que não tinha mais nada na vida.

E mesmo tão novinha, uma criança de apenas seis anos entendia muito bem que não tinham mais nada no mundo. Entendia que só tinha Marta e suspirou aliviada e agradecida por todo cuidado.  Sabia que ela nunca a abandonaria, como fez D’Ana, sua mãe biológica.

Marta era a mãe que nunca teve!

Olhando os escombros do alto daquela torre entendeu que a vida das duas agora teria outro rumo.  Sentiu muito medo nessa hora. Não tinha palavras que viessem a sua mente de menina que pusesse significar alguma coisa naquela hora maldita. Afinal tinha só seis anos! 

  Tentou chorar. Abrir um berreiro como quando o pai morreu, mas estava muito cansada e com fome e a cabeça embaralhada.   Olhou a irmã que não chorava.  Nunca a tinha visto chorar!  Marta era forte como aquele fogo que queimou sua casa e a favela onde nasceu. Sentiu-se muito desanimada e decidiu que também não choraria.  Afinal não era nenhum bebê!

 Se aninhou em seu colo e assim pegou no sono esquecendo até da fome.  Assim descansou.

Marta ficou li com Laurinha no colo e olhando aquele fogaréu.  Apertou com carinho a irmãzinha e fechou os olhos num suspiro comprido de amor, agradecida por estarem vivas.

- Graças a Nossa Senhora que estamos vivas minha pequena! Obrigada minha Nossa Senhora! – e apertava contra o peito a irmã que dormia tranquila em seu colo.

 Assim o dia amanheceu com cheiro de fumaça no ar. Marta não dormiu.  Também não chorou.  E olhando o movimento dos bombeiros destruindo o pouco que sobrou da favela prometeu a si mesma que venceria na vida e cuidaria de Laura e daria a ela uma vida de princesa.

O padre levou-as até o convento, nos fundos da igreja e lá tomaram banho e descansaram.

  Marta precisava voltar ao trabalho.  Precisava dar um rumo melhor a sua vida e a amparar sua irmãzinha.   Tinha vaga garantida numa casa de tolerância em uma parte nobre de Copacabana. Telefonou e acertou tudo.  Conversou com o padre e se confessou.  Ele não a julgou e entendeu que ela era uma vítima das circunstâncias, mas o que ele fez foi aconselhar.   E juntos decidiram o que era melhor para ambas.

Laura foi recolhida pelo orfanato sustentado pela Paróquia Santa Margaria Maria e viveu por lá dois anos até a irmã atingir a maioridade e ir buscá-la.

A hora da despedida foi muito difícil.  Laura fez um berreiro daqueles e demorou a entender que era uma internação provisória.  Tinham muitas crianças na mesma condição na paróquia.  E que ela não estaria sozinha.  Mesmo assim seu coração só sossegou no domingo com a visita da irmã.

 Marta nunca deixou de visitá-la, de levar dinheiro para ajudar no sustento da irmã e das outras crianças.  Numa dessas visitas, dois anos depois, saíram pelo portão da frente. Laura feliz, pois a vida naquele lugar não era fácil e Marta orgulhosa com sua conquista!  Agora com dezoito anos mantinha-se firme na missão de cuidar da irmã que tinha como filha.

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