Sentiu o gelo da morte, mas mesmo assim ainda no escuro, ajeitou o braço e o corpo de seu Zé sob as cobertas e aí sim abriu a janela e olhou para cama. Seu Zé Carlos estava morto! Olhos fechados, boca meia aberta e um semblante tranquilo. Parecia dormir não fosse a cor de chumbo do rosto que lhe dava uma aparência macabra e doentia. Fechou os olhos e levou a mão sobre a boca e respirou profundamente. Ajoelhou na beira da cama e fez uma prece em favor da alma do pai, o abraçou, beijou sua testa fria como o gelo, agradeceu por tudo que ele fez por ela. Morreu como um passarinho Seu Zé! Sem fazer barulho.
Marta estava acostumada com a morte. Nas calçadas por onde andava nas noites de puta em Copacabana já tinha visto uns defuntos. Alguns até vítimas de morte matada o que tornava a cena bem apavorante. Também enterrou o irmão mais novo morto em um confronto com a polícia em uma favela próxima. Foi ela quem reconheceu o corpo, limpou e vestiu Carlinhos e providenciou o enterro. Tinha doze anos. Só ela, a mãe e Laurinha vieram se despedir dele. Era uma forte Marta!
Saiu devagar para não acordar a irmã, e foi até a igreja. Falou com o padre que telefonou para a polícia que veio e retirou o corpo enquanto Marta contava o acontecido para a irmã que chorou muito e foi consolada. Agora eram só elas duas!
No envelope sobre a mesa Marta encontrou uma soma em dinheiro e papeis que o padre leu e explicou que era a dispensa dada pelo médico pois seu Zé estava muito doente. Cada vez mais descuidado por conta das bebedeiras, manuseava os venenos no trabalho sem nenhuma proteção. Muitos morreram assim! Seu Zé Carlos foi um desses. Morreu envenenado!
Um tempo depois essas mortes foram notícia de jornal. Muitas das famílias dos mortos processaram o Laboratórios Park Davis Ltda.! Foi um grande escândalo! E esse escândalo mudaria a vida das irmãs para sempre!
O padre levou o dinheiro e foi providenciar o enterro. Ele cuidou de tudo. Padre Augusto era um bom homem e conhecia a família. Quantas vezes acompanhou D’Ana e a ajudou a procurar e levar o marido embriagado para casa. Ela era católica praticante e participava de todas as campanhas da igreja. Ele sabia que as meninas estavam sozinhas agora. A kombi da paróquia veio buscá-las para o funeral. Alguns poucos parceiros de copo da favela acompanharam o cortejo. Não teve ninguém do trabalho em seu enterro.
Na volta para casa ele as deixou na entrada do beco, entregou os papéis do enterro para Marta e devolveu o dinheiro do envelope pardo. A paróquia pagou pelo enterro.
- É pouco mas dá para o gás e a comida para o resto do mês. Se precisarem de ajuda me procurem. – Olhou carinhosamente para Marta que carregava Laura chorosa no colo, fez o sinal da cruz em suas testas e abençoou as meninas.
- Que Deus as abençoe! – e foi.
Nos dias que se seguiram Marta tocou a vida como de costume. Cuidava do barraco e da irmã durante o dia e a noitinha colocava Laura na cama, trancava o barraco e saia para ganhar a vida. Voltava de madrugada, duas ou três da manhã. Se preocupava com a irmã que ficava só. Voltava antes do amanhecer.
Naquele ano, 1969, depois do Carnaval, ouve um grande reboliço na favela. E não se falava em outra coisa a não ser sobre a remoção dos favelados dali. Muitos eram a favor pois achavam que iriam receber um lugar melhor como moradia, mas a maioria tinha medo pois o governo da ditadura era conhecido por sua violência principalmente com a população pobre. A polícia andava pela favela distribuindo folhetos e pregando anúncios de despejo na porta dos barracos. Chutando as portas e batendo nos que encontravam pela frente. Tocavam o terror pois assim não encontrariam resistência.
Marta tinha medo de que alguma coisa acontecesse enquanto Laura estivesse trancada e sozinha no barraco e passou a voltar mais cedo.
Naquele dia, dez de maio, em especial, nem saiu!
Viu o rebuliço do povo, alarmado com a certeza da remoção. Ninguém queria sair dali. Não confiavam no governo. Como puta experiente que era, ela sabia que pobre quando arruma confusão acaba em cana ou morto pela polícia. Preferiu esperar, fechada no barraco, a confusão passar.
Os sete mil moradores da Praia do Pinto se aglomeraram em torno da Lagoa Rodrigo de Freitas e recusaram-se a sair. Invadiram as ruas do Leblon em passeata, com faixas e cartazes e disseram não a remoção. Naquela noite o DOPS invadiu a favela com seus camburões e levou muitos homens e mulheres, acusando-os de liderarem o que eles chamaram de conspiração e baderna. Esses nunca mais apareceram!
Então, naquela madrugada de onze de maio de 1969, dois meses depois da morte do pai, durante a madrugada, um incêndio "acidental" alastrou-se pela favela, e apesar de muitos moradores e vizinhos alarmados terem chamado os bombeiros, estes, evidentemente cumprindo ordens, não apareceram. Pela manhã, quase tudo tinha sido arrasado. Muitas famílias não conseguiram salvar seus parcos haveres. Camburões cercavam a favela e recolhiam os moradores que atordoados nem sabiam o que estava acontecendo. Muitos desapareceram completamente, deixando suas famílias em desespero. Marta acordou com a gritaria dos vizinhos no beco. Abriu a janela do barraco e viu a bola de fogo em que se transformara a favela, viu todos correndo desesperados arrastando crianças, o barulho do fogo era apavorante. Rapidamente entendeu o que estava acontecendo e pegando Laura no colo abriu a porta do barraco, pegou as mochilas sempre prontas dependurados num prego ao lado da porta:
- Puta não pode sair sem bolsa. – Pensou.
Mantinha duas bolsas preparadas para uma saída rápida desde a morte do pai. Preocupava-se por saberem que eram duas meninas sós naquele barraco e com a covardia das pessoas. Nessas mochilas tinha documentos, algum dinheiro e mudas de roupa além de seu precioso caderninho com os telefones e endereços dos clientes mais fiéis. E saiu! Lançou-se com Laura no colo no inferno daquele incêndio assassino e covarde!
A favela da Praia do Pinto ardia em chamas!
A Lagoa Rodrigo de Freitas era um grande conjunto de favelas e a principal delas era a Praia do Pinto, a terceira maior favela plana do Rio de Janeiro. Era uma área considerada nobre e o poder público junto com o mercado imobiliário e a iniciativa privada viviam de olho naquele espaço, movimento que se intensificou com a entrada dos militares no poder em 1964. A maior quantidade de remoção de favelas se deu no período da ditadura.
Na saída do beco já tomado pela fumaça negra Marta sentiu dois braços fortes envolvê-las e num só movimento se viu jogada dentro de um veículo que saiu em disparada em direção contrária à do fogaréu, rumo ao Leblon. Era padre Augusto com a kombi da paróquia da Igreja Santa Margarida Maria e foi lá que se refugiaram. Do alto do campanário da igreja o padre viu as chamas que destruía a favela, lembrou-se delas e foi buscá-las! No caminho foi recolhendo várias crianças, mulheres, velhos e até animais que fugiam do fogo. Um santo padre Augusto!
Mal havia amanhecido e as irmãs olhavam do alto da torre da igreja os escombros e a fumaça que tomou conta do ar e ainda ardia nos olhos. Isso era tudo o que havia sobrado da favela.
Laura viu seu mundo reduzido a cinzas e sabia que não tinha mais nada na vida.
E mesmo tão novinha, uma criança de apenas seis anos entendia muito bem que não tinham mais nada no mundo. Entendia que só tinha Marta e suspirou aliviada e agradecida por todo cuidado. Sabia que ela nunca a abandonaria, como fez D’Ana, sua mãe biológica.
Marta era a mãe que nunca teve!
Olhando os escombros do alto daquela torre entendeu que a vida das duas agora teria outro rumo. Sentiu muito medo nessa hora. Não tinha palavras que viessem a sua mente de menina que pusesse significar alguma coisa naquela hora maldita. Afinal tinha só seis anos!
Tentou chorar. Abrir um berreiro como quando o pai morreu, mas estava muito cansada e com fome e a cabeça embaralhada. Olhou a irmã que não chorava. Nunca a tinha visto chorar! Marta era forte como aquele fogo que queimou sua casa e a favela onde nasceu. Sentiu-se muito desanimada e decidiu que também não choraria. Afinal não era nenhum bebê!
Se aninhou em seu colo e assim pegou no sono esquecendo até da fome. Assim descansou.
Marta ficou li com Laurinha no colo e olhando aquele fogaréu. Apertou com carinho a irmãzinha e fechou os olhos num suspiro comprido de amor, agradecida por estarem vivas.
- Graças a Nossa Senhora que estamos vivas minha pequena! Obrigada minha Nossa Senhora! – e apertava contra o peito a irmã que dormia tranquila em seu colo.
Assim o dia amanheceu com cheiro de fumaça no ar. Marta não dormiu. Também não chorou. E olhando o movimento dos bombeiros destruindo o pouco que sobrou da favela prometeu a si mesma que venceria na vida e cuidaria de Laura e daria a ela uma vida de princesa.
O padre levou-as até o convento, nos fundos da igreja e lá tomaram banho e descansaram.
Marta precisava voltar ao trabalho. Precisava dar um rumo melhor a sua vida e a amparar sua irmãzinha. Tinha vaga garantida numa casa de tolerância em uma parte nobre de Copacabana. Telefonou e acertou tudo. Conversou com o padre e se confessou. Ele não a julgou e entendeu que ela era uma vítima das circunstâncias, mas o que ele fez foi aconselhar. E juntos decidiram o que era melhor para ambas.
Laura foi recolhida pelo orfanato sustentado pela Paróquia Santa Margaria Maria e viveu por lá dois anos até a irmã atingir a maioridade e ir buscá-la.
A hora da despedida foi muito difícil. Laura fez um berreiro daqueles e demorou a entender que era uma internação provisória. Tinham muitas crianças na mesma condição na paróquia. E que ela não estaria sozinha. Mesmo assim seu coração só sossegou no domingo com a visita da irmã.
Marta nunca deixou de visitá-la, de levar dinheiro para ajudar no sustento da irmã e das outras crianças. Numa dessas visitas, dois anos depois, saíram pelo portão da frente. Laura feliz, pois a vida naquele lugar não era fácil e Marta orgulhosa com sua conquista! Agora com dezoito anos mantinha-se firme na missão de cuidar da irmã que tinha como filha.
Marta foi morar em uma vaga no puteiro de Madame de Copacabana. Mudou-se definitivamente para essa vaga abandonando as noites das ruas de Copacabana como puta de calçada. Tinha dezesseis anos e já era bem conhecida nas ruas. Era prostituta desde os treze anos de idade e se virava no Calçadão. Foi indicada por um cliente muito rico e influente, frequentador das noites em Copacabana e que se encantou com a beleza da moça ao conhece-la em uma festa. Só assim para conseguir uma vaga na casa de Madame de Copacabana: indicação de freguês vip, esse era o Advogado!O Advogado conhecia Marta desde seus quatorze anos e era um apaixonado. Se apaixonou pela beleza nordestina de Marta desde a primeira vez que a viu e nunca mais deixou de procurar por ela. Ficaram amigos. Ele era moço solteiro, vindo do sul para trabalhar num grande escritório de advocacia. Esse escritório
Era a queridinha do patrão! E seus clientes sempre voltavam. Não importava em que calçada estivesse. Eles sempre voltavam!Avenida Prado Junior esquina com a Rua Ministro Viveiro de Castro era onde ficava seu ponto. O ponto das meninas do Ernesto. E o rebuliço era geral! Todos e todas comentando sobre o que passou o tal cafetão. Ele e seus homens foram perseguidos, capturados e amarrados. Tomaram uma surra de pau de parar o calçadão! Foi o tal Ringo de Copacabana que procurou o canalha até achar. Esse era um policial muito famoso na época, era durão e defensor das putas e dos travestis. Uma espécie de anti-herói. E diziam que era do tal Esquadrão da Morte.Chegou com alguns homens que pareciam policiais e arrancou Ernesto e seus cupinchas do Beco da Fome debaixo de porrada! Apanhou muito o cabra! Foram colocados na caçapa de
Conjunto Habitacional Marquês de São Vicente era o nome do novo lar das irmãs.Laura com quase doze anos e cheia de esperança em viver coisas felizes. Marta com vinte e um e cheia de planos na cabeça. Agora, elas eram proprietárias!O prédio era enorme. Sua estrutura sinuosa impressionava!Em forma de serpente! Era assim a estrutura do Minhocão que serpenteava aos pés do Morro Dois Irmãos. Com 500 metros de altura, 250 metros de comprimento e elevado sobre Pilotis, corredores longos, seis andares, mais de trezentos apartamentos, doze apartamentos por andar e cerca de dois mil moradores. Era um mundo aquele lugar e aos poucos, as meninas foram percebendo que fora a estrutura de cimento armado e as esquadrias de alumínio tudo remetia a uma grande favela. Um túnel que passava por baixo do prédio fazia um barulho constan
Enquanto isso Marta se firmava na profissão. O câncer levou a vida da Madame de Copacabana que não tendo parentes deixou todo seu patrimônio para ela. Um patrimônio considerável! Títulos, ouro, alguns imóveis no centro da cidade e uma bela quantia no Banco do Brasil. Fora as joias, os vestidos, casacos de pele, a cobertura de Copacabana e dez linhas de telefone que Marta vendeu por uma quantia significativa. Na época linhas telefônicas eram patrimônio. Valiam uma boa grana!A puta ficou rica! Madame de Copacabana também amparou Chica, sua companheira de tantos anos e até o fim. Deixou-a muito bem de vida! Com dinheiro, o automóvel e a bela casa de Petrópolis.Ficou bem a Chica!Marta fechou o prostíbulo e resolveu montar um novo negócio. O seu negócio! E ser
A festa de quinze anos de Laura foi linda!Sua irmã fez questão de tudo do bom e do melhor. Festa de princesa! Promessa que até agora fora cumprida ao pé da letra. O tema era Cinderela.Músicos tocando ao vivo, mesa de doces, salgados, mesa de bolo, painel, balões, luzes de neon. Toda a cobertura decorada no tema, com mesas espalhadas até no corredor. Um cenário de sonho! Laura sabia que ia ser assim. Sabia que a irmã faria uma festa maravilhosa. Sonhou com essa festa. Nunca tivera festa de aniversário, e aquela era do tamanho dos seus sonhos.A escola, os vizinhos, os Minhocas, os amigos da escola e do Baixo Gávea vieram em peso. O bordel virou salão de dança. Até os seguranças folgaram nessa noite. Churrasco e cerveja de graça para geral no sexto andar. Tudo lindo. Todas as rapar
Não passaria por isso novamente. Nunca mais! Preferia a antipatia! Era vista como antipática pela galera do trabalho. Os solteiros que zoavam juntos nas noites de fim de semana não eram carinhosos com ela. Eles não confiavam em quem não enchia a cara num sábado à noite. Uns babacas! Laura além de professora de duas turmas, fazia as vezes de secretária da direção. O fato é que os colegas de trabalho não iam com a cara dela. Isso era o que ela achava. Talvez tivesse só se boicotando e desenvolveu essa teoria para manter-se afastada dos colegas de trabalho. Assim, distante, não precisaria desenvolver nenhum tipo de relacionamento com ninguém ali. Tinha muitos segredos e essa distância lhe era conveniente. Chegara aquela escola como estagiária, dois anos atrás. Trabalhava meio per&ia
- Chega! Não aguento mais isso! - gritava Laura para Alberto. Pés firmes no chão! Preparada para aguentar a porrada que certamente viria a seguir, pois o marido não admitia que ela tivesse qualquer reação contrária as suas loucuras.-Chega de covardia! Chega! Você tá maluco seu filho da puta! Amanhã vou embora desse inferno e você que não ouse ficar no meu caminho, seu desgraçado! – Continuava ela histérica.Ele avançou. Deu-lhe um chute na boca do estômago tirando-a do caminho. Entrou e se jogou na cama bêbado e sujo! Três dias sumido.Laura sentiu o ar faltar. Não conseguia respirar e foi arriando até o chão do corredor. Mas o medo de apagar e deixar seu bebê por conta daquele louco bêbado a fez puxar o ar com todas as forças de sua alma. Levantou-se e foi at&e
Já dizia Sinhô: “Mais que a flor purpurina é o vício arrogante de tomar Cocaína.” (Sinhô, 1923) Só que em 1980 a moda era cheirar Cocaína! E se em 1923 Cocaína era motivo para sambar em 1980 era motivo para fazer quase tudo! Namorar, beber, criar, curtir, fuder! Mas amar era impossível! Impossível amar anestesiado com Cocaína, o pó da morte!Com os anos 80 a Cocaína se massificou. Essa droga que até então era uso exclusivo da elite, das festas do High Society, de quem tinha muita grana, chegou as favelas na virada da década de 70 para 80 e se massificou. Popularizou-se! Invadiu as favelas, as bocas de fumo, o asfalto, as festas, as noitadas, os points, as galeras e tribos, a casas e as famílias. Vinda da Bolívia. E o Brasil entrou definitivamente na rota da droga, como ponto