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2. Pesadelo Sem Fim

Será que não morri? Uma dor pequena na cabeça começou a me incomodar e logo meu corpo inteiro parecia formigar, com uma sensação semelhante a de cortes com faca na pele. A dor se tornou muito grande, eu comecei a sentir uma leve e fina garoa em meu rosto e alguns pingos densos caindo, aos poucos, em meus olhos, até que consegui abri-los.

O desespero começou a tomar conta de mim, nunca havia sentido tanto medo em minha vida. Sombras vagavam à minha volta e eu me vi numa espécie de santuário macabro, uma escuridão dominante com luzes vermelhas que faziam com que toda a água que jorrava de diversas fontes, parecessem sangue. Olhei para o céu e essas luzes que iluminavam tudo ao meu redor vinham de dois lados diferentes, de duas estrelas que pareciam com o Sol.

As sombras eram como nuvens negras pequenas e baixas que se locomoviam rapidamente para todos os lados e algumas carregadas de chuva, inesperadamente se abriam e encharcavam por onde passavam. Uma dessas nuvens bem próxima de mim parecia me vigiar e jogava água na minha direção. Além da dor e do medo, um frio começou a me fazer tremer inteira.

Então, um forte grito agudo que parecia de uma mulher chegou aos meus ouvidos, um berro de angústia e de sofrimento.

Eu finalmente comecei a conseguir me mexer, quando um outro barulho estranho se aproximou. Como se uma imensa represa tivesse sido aberta e a água tivesse se aproximando de mim, rapidamente. Eu comecei a gastar o que estava conseguindo ter de forças para levantar, me arrastar rapidamente, escalar um pequeno monte rochoso que havia a frente, mas não adiantou de nada. Uma onda altíssima, que parecia trazer uma enchente, me atingiu e me carregou, o impacto foi tão forte que apaguei novamente.

Não sei quanto tempo se passou até eu começar a sentir golpes no rosto. Eu estava levando fortes tapas na cara.

- Acorda! Tá pensando que isso aqui é colônia de férias? Não é conto de fadas não. Num é principezinho que vai te acordar com beijo!

Eu abri os olhos e vi uma mulher. Ela estava em cima de mim, me esbofeteando. A dor queimava! Eu levantei os braços e comecei a me proteger, me virei com força, tentei me desvencilhar, até cair no chão. Eu estava em cima de uma espécie de cama, parecida com um colchão de água.

Pulei pra cima daquela mulher que parecia uma bruxa velha e acabada, com uma força que nem eu sabia que tinha. Logo vieram outras mulheres, me seguraram e me tiraram dali.

Uma moça tentava me acalmar, me sentou num banco, me pedindo pra respirar, me deu copo de água para beber e tudo ficou bem de repente. Não havia mais problema nenhum que me atormentasse, na verdade fiquei até um pouco feliz, com um sorriso bobo.

- Ei, moça! Fique aqui! Preste atenção! Não apague, ok? O primeiro gole de água é sempre o mais difícil, mas se você deixar sua mente se fechar dentro dela mesma, vai ser difícil sair. E algo que você com certeza não vai querer é ficar presa dentro de si mesma...

Eu já não estava entendendo mais nada, não sabia onde eu estava, o que estava acontecendo. Aquela mulher ali na minha frente, falando algo que eu não fazia ideia o que era. Nossa, ela era realmente linda. Eu estava furiosa e de repente com um gole de água, tudo mudou. O que será que tudo aquilo queria dizer? Eu não sabia, mas tinha alguém me chamando pro mundo dos sonhos.

- B**e nela, sua lesada! - Dizia a bruxa carcomida!

- Não, você sabe que tem dois jeitos de trazer alguém de volta, Krata, e que o jeito da agressão não faz meu estilo. - Respondeu a moça que segurava minha cabeça com as duas mãos e me olhava firmemente nos olhos.

- Lá vem você, Leiva, com os discursos moralistas. B**e que resolve logo! - Insistiu a velha.

A moça continuava com o rosto dela muito próximo do meu e nem respondeu. Ela fechou os olhos e simplesmente me beijou. Um beijo intenso, que levou vários segundos, talvez minutos. Eu não tive reação, não sei se não fiz nada ou se retribui. Minha mente foi saindo de mim e depois voltando. E quando ela parou eu me senti muito mais consciente que antes.

- Onde estou, afinal? - Foi minha primeira pergunta - E o que foi isso? - A segunda.

- Aqui é Neon, o mundo obscuro das águas. Você foi enviada para cá após morrer e já deve ter entendido que a morte é uma passagem, não é? A maneira como você vive, assim como a maneira como você morre, determinam para onde deverá seguir.

- Mas por que me beijou? - Interrompi. Ainda estava muito confusa e parecendo nem me importar com o fato de ter sido avisada sobre uma nova vida.

- A água destilada aqui é a essência desse mundo. Água pura! Ela é um estimulante para a mente, nos mantém lúcidas quando o desespero toma conta. Mas ela também pode ser letal, um veneno que nos prende para sempre em nossa própria mente, se você se perde, não consegue mais voltar a não ser que alguém a traga de volta, com fortes tapas na cabeça ou com um beijo intenso.

- Foi uma sensação muito estranha... Acho que preciso dizer... Obrigado.

- Bom, talvez seja cedo pra agradecer alguém, isso aqui é um inferno, não posso te garantir que não fizeram nada com você desacordada, nem que eu possa te ajudar no futuro, ou que eu queira.

Eu não pude entender se sua fala foi irônica, se queria me assustar ou se realmente ela disse aquilo sério.

De todo modo, ela apresentou cada uma do grupo. Ela, Leiva, era a líder. A velha, que eu já tinha ouvido o nome, Krata. Anna era a mais magra e a única de olhos castanhos. Shanera a loira mais alta, Fanare a loira mais baixa, Benita, a mais forte, musculosa e Kinerta a ruiva, de olhos vermelhos.

Antes que eu tivesse tempo de me apresentar de volta, um som de ondas se quebrando vinha se aproximando. Já me arrepiava toda só de imaginar a chegada das águas novamente.

- Todas preparadas! - Leiva gritou e imediatamente todas as mulheres que estavam ali levantaram-se, formando um círculo. Pelos trajes e lanças que carregavam eu as descreveria como guerreiras, algo como amazonas da antiguidade. Eu não sabia o que fazer e fiquei no meio delas.

Naquele momento, todo ar a nossa volta se transformou em água instantaneamente. As guerreiras continuaram paradas do mesmo jeito, eu sentia como se me afogasse novamente, mas dessa vez a angústia e o medo eram muito maiores. Todas as mulheres começaram a mexer os braços com movimentos circulares. Era como se estivessem tirando a água da frente e trazendo o ar de volta. Até que, enfim, toda a água se dissipou e o ar retornou, permitindo que pudéssemos voltar a respirar. Cai no chão, com a pressão do ar voltando aos meus pulmões.

Uma mulher surgiu diante de nós, saindo daquela tormenta.

- Ora, ora, ora, vocês estão melhorando, guerreiras da água.

A essa altura, todas já estavam de joelhos e não olhavam para a recém-chegada. Eu continuei no chão onde estava, cada vez mais perplexa com tudo que acontecia.

- Hoje eu acordei de bom humor e resolvi vir visitá-las. - Ela vestia uma roupa imponente, uma mistura entre um traje de gala e um uniforme de proteção, num tom de azul noite que se confundia com as nuvens negras, mas em alguns momentos refletia a luz e brilhava. Ela carregava um cetro com uma pedra verde em sua ponta e antes que alguém dissesse alguma coisa ficava claro pra mim que ela deveria ser alguém muito importante - Na verdade, Leiva, eu vim propor uma troca.

Esse, portanto, era o nome daquela que claramente era a líder daquele grupo. Ela apenas olhou para a rainha.

- Pode se levantar...

A guerreira fez como lhe foi ordenado.

- Minha rainha, sabe que nunca me oponho a qualquer coisa que me peça.

- Então, deve saber também que apesar de muitos me acharem maligna eu sou muito justa e nunca peço nada sem oferecer algo em troca - disse a Rainha com um falso sorriso no rosto.

- Sim, minha rainha - respondeu Leiva com uma cara de poucos amigos.

- Eu vim trazer a boa nova da morte para uma de vocês. - Todas sorriram e vibraram, se mantendo paradas no mesmo lugar, tentando se conter, mas claramente ficaram felizes com a notícia. Como alguém poderia vibrar com o aviso de morte?

- Oh, Senhora das Águas que nos abençoa, o que preciso fazer para compensar tal generosidade? - Realmente a cena parecia bem diferente aos meus olhos.

- Dessa vez, Leiva, é algo muito simples. Eu quero a eternidade daquela mulher - disse a Rainha apontando para mim. Fiquei aterrorizada, mais ainda do que já estava depois de tudo aquilo.

Leiva pareceu olhar muito surpresa, seu semblante era de alguém que tinha recebido a missão de matar o Leão da Neméia apenas com as mãos.

- Minha Rainha, se eu puder pedir algo, gostaria de conversar com as guerreiras para decidirmos quem será contemplada. - As guerreiras olharam espantadas e a Rainha deu de ombros.

- Muito bem, sei que essa decisão poderia ser exclusivamente sua, ou mesmo minha... Mas farei como prefere, como eu disse, acordei de muito bom humor. - A Rainha riu de um jeito um tanto maquiavélico, mas um pouco estranho, quase engasgada. - Vou recuperar algumas algas mágicas que escaparam e retornarei para o Castelo, me levem a garota até lá.. Sabe, às vezes gostaria de não ser a única que pode pegá-las. Pensando bem, não gostaria não... - E a Rainha saiu mergulhando novamente numa onda que se ergueu no ar para tragá-la.

- O que você está fazendo, Leiva? E se essa mulher muda de ideia? - Anna questionou.

- Anna, já se esqueceu que as "trocas" que a rainha proporciona sempre significam duas vantagens apenas para ela mesma? - Respondeu Leiva, fazendo outra questão de volta.

- Bom, saber negociar com a rainha foi o que lhe permitiu ser nossa líder. O que tem em mente? - Benita perguntou.

- Alguma vez a Rainha pediu uma de nós? Não! E já pensaram que isso significará o Inferno eterno para aquela menina, vivendo aqui ao lado da Rainha, para sempre? - Eu já não estava gostando nada daquela conversa.

- Espere, como assim viver pra sempre? - Era tudo muito difícil de acompanhar.

- Veja, a morte é como um teletransporte da alma, nós só nascemos uma vez e depois disso toda vez que morremos, seguimos algum caminho para algum outro planeta. Nosso corpo é reconstruído a cada morte no auge de nossa vitalidade. Porém esse planeta que estamos é como um inferno, uma espécie de prisão. Não importa como morremos, reaparecemos aqui da mesma forma que estávamos antes de morrer. Somos imortais nessa mesma realidade e não podemos fugir dela. A única forma de sairmos daqui é sendo morta pela Rainha. Por algum motivo ela controla as algas mágicas que podem, mais do que controlar a água, transformar qualquer matéria em líquido, incluindo o ar. E a única morte que não reconstrói nosso corpo nesse planeta é quando ela nos explode, transformando em água. - Leiva explicava e minha boca aberta parecia que ia atingir o chão. Por que não ensinavam isso na escola?

- Mas o que garante a vocês que explodindo seus corpos vocês vão para outro planeta? - Questionei super segura de ter entendido tudo.

- A maioria de nós já morreu mais de uma vez e veio de mais lugares. Aprendemos que a alma não pode ser destruída. Se um corpo é destruído a alma refaz seu corpo em algum lugar. E pelas experiências que já trocamos, sofrer em uma vida e ser brutalmente assassinada é um passaporte certo para um lugar muito bom - Leiva terminou de explicar.

- Ok, entendi... Eiiiii, então o que está em jogo aqui é eu permanecer pra sempre mesmo nesse lugar? Não é modo de dizer? - Agora caiu minha ficha da enrascada que eu estava.

- Exatamente - respondeu Leiva com um semblante de quem sabia que não tinha escolha.

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