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8. As Gigantes e as Mileniuns

Com minha fúria, consegui explodir longe todo líquido que estava à minha volta como um epicentro de um maremoto. O impulso dessa explosão me atirou alto e eu caí em algum lugar que eu não reconhecia. Uma penumbra me indicava que eu estava em outro lugar, completamente diferente. Ainda não tinha percebido nenhum local com pouca luz naquele planeta. Os dois Sóis mal eram percebidos, pareciam quase alinhados ao horizonte em diferentes direções. Olhando melhor eu pude perceber enormes construções em ruínas. Grandes sombras surgindo, deixando o cenário ainda mais escuro e assustador e um barulho de passos como que de enormes dinossauros não me pareceram animadores. O pensamento do que havia acontecido com Leiva e a Rainha e de como eu estava naquele lugar conseguiam ser mais fortes do que a expectativa a respeito do que vinha em minha direção. Eu continuava com Namos e ele me fazia entender que havíamos morrido.

Fui agarrada por uma mão que logo se revelou de uma gigante, que me ergueu até seu rosto e naquela altura percebi que existiam à sua volta pelo menos mais 6 como ela.

-Você é a prometida? A Salvadora desse mundo? - A voz forte, digna de alguém daquele tamanho, me perguntou.

- Olha, me disseram que sim, mas como não sei mais nem em que mundo estou, aparentemente eu morri, então não tenho certeza! Estamos ainda em Neon? - Perguntei não ligando muito para o fato de estar conversando com alguém que parecia me segurar como uma boneca.

-Sim, você está em Neon. Você se recuperou bem para alguém que morreu aqui. Vimos o que fez no lago e como saltou para fora. Estou há 500 anos aqui e nunca tinha visto alguém fazer isso, nem mesmo a Rainha com o uso das algas. - Me respondeu a gigante me colocando em cima de uma espécie de construção, uma torre de pedras. - Me chamo Creteas, somos, como você deve ter percebido, as Gigantes, nos refugiamos aqui desde a chegada da Rainha à espera da Salvadora Prometida. Não confiamos na Rainha e não queríamos ficar como as Mileniuns.

Namos sabia do que se tratava. As Mileniuns são as mulheres que vivem nesse planeta a mais de mil anos, época em que conseguiram transformar o inferno das águas, repleto de armadilhas, de prisões mentais, labirintos, em um planeta de recuperação, onde se ajudavam e podiam ter uma vida eterna tranquila. Isso tudo mudou quando o que elas consideravam uma Deusa surgiu para elas, trouxe a profecia do caos e da Salvadora. A destruição e traumas que essa Deusa causou, deixaram essas mulheres transtornadas e elas se exilaram ao Norte do Planeta, na parte congelada.

-Nossa vida nunca foi fácil, descobrir as coisas, o funcionamento do planeta por conta própria, foi muito difícil, talvez por isso, por séculos apenas nós gigantes viemos para cá. Talvez fossemos mais bem preparadas. Quando os outros povos de sereias, guardiãs, guerreiras, começaram a chegar, onde mulheres começaram a se unir criando alguma identidade entre si, foi mais fácil para elas, pois estávamos aqui pra explicar alguma coisa. Talvez seja possível que os Gigantes como um todo tenham sido extintos em qualquer planeta, pois nunca mais apareceu nenhuma como nós. Até que a tal da Rainha surgiu e percebemos que ela não parecia ser quem esperávamos. Não confiamos nela, nem quisemos participar de seus jogos.

- Creteas, meu nome é Emma. Você me contando essa história permite que muita coisa faça mais sentido, também aguça as lembranças de Namos, que é meu companheiro, que faz parte de mim, no momento em simbiose - respondi sem saber como explicar.

-Eu sabia! Tinha certeza que você vestia uma couraça. - Ela exclamou demonstrando saber do que se tratava.

-Ela deve ser mesmo a Salvadora, Creteas - argumentou outra Gigante, com uma voz quase sussurrante.

-Sim. Se eu disse que Raquel não era Rainha e Salvadora nenhuma, eu digo que essa menina Emma é quem esperávamos, Timas! - Respondeu animada, me chacoalhando, enquanto todas elas urravam de alegria.

- Creteas, imagino a felicidade que deva ser essa constatação, mesmo eu não estando muito confiante, mas acredito que não podemos perder muito tempo, preciso voltar até o Castelo, não faço ideia como. Também não sei se faz muito tempo que morri. - Cortei um pouco a empolgação delas, que automaticamente se mostraram prontas e determinadas com sua vida para me ajudar.

- Pudemos ouvir o grito da Rainha, não tem nem uma hora. Não estamos tão próximas, mas esse planeta é pequeno e os sons expansivos, principalmente quando você está na Torre mais alta daqui...

- O planeta inteiro escutou! - Uma mulher surgia por entre as pernas das gigantes, seguida por outras, todas com seus cabelos brancos, a primeira tinha cabelos curtos, diferente das outras. Pareciam idosas, mas cheias de vitalidade, diferente de Krata, que parecia uma bruxa quando me acordou nesse mundo pela primeira vez.

Creteas parecia que tinha visto um fantasma.

-Da... Darca, é você? A mais antiga das Mileniuns ainda viva? Vocês saíram do exílio? - Era incrível uma gigante como Creteas, imponente, praticamente reverenciando aquela senhora.

- Sim, Creteas, sou eu! Já era hora não é mesmo? Vamos, o que estão esperando? Todas devem chegar ao Castelo, vamos levar a Salvadora para o seu devido lugar, destruir de uma vez por todas aquela impostora e trazer a paz definitiva para esse inferno.

Todas gritaram juntas, como se fosse uma tropa indo para uma guerra.

Eu não tinha ainda me dado conta de que era responsável por todo um planeta. Apesar de sentir uma responsabilidade pelas guerreiras, perceber agora que mulheres que viveram ali séculos, milênios, me esperaram por anos para libertá-las era completamente diferente.

E, na medida que seguimos caminho, mais e mais mulheres se juntavam ao grupo. Eu, nos ombros de uma gigante, com a mulher mais antiga do planeta aos pés dela, a frente de todo aquele povo.

Em pouco tempo, pareciam milhares de pessoas seguindo a marcha.

Comecei a ficar temerosa, me lembrando que as outras guerreiras ainda estavam em sofrimento com a Rainha. De fato, eu também não tinha um plano, apesar de absoluta confiança. E se as guerreiras de alguma forma fossem feitas de refém. Já tive a constatação de que existiam formas extremamente cruéis de se manter uma pessoa viva naquele planeta, tão criativas quanto sádicas. Se Raquel tivesse dominado as guerreiras e estivesse esperando pelo seu retorno?

Podia ter acontecido o inverso, também. Leiva poderia ter, no seu ataque, conseguido imobilizar Raquel de alguma forma, talvez até matá-la e na chegada, em seu retorno, tudo já estaria resolvido.

Não valia a pena eu ser tão otimista. Provavelmente, todo pensamento positivo que passava por minha cabeça vinha de Namos. Incrível como ele não apenas causava a sensação de poder, mas possuía essa enorme confiança. O fato de um exército de mulheres, as mais diferentes possíveis, com a mesma motivação, estarem se reunindo atrás de mim, também podia fazer essa confiança crescer. Não só confiança, mas até um ar de arrogância. Definitivamente não era meu.

Quando chegamos na entrada do castelo, qualquer um que visse de alguma torre aquela situação, ficaria amedrontado. As gigantes na frente, seguidas por guerreiras com aparência de feiticeiras poderosas (não que fossem, mas pareciam) e uma imensidão de clãs. Mas aquele castelo não possuía um exército. Não havia ninguém nas torres de água que pudesse assistir aquela cena incrível.

Dessa vez não precisei de esforço algum para abrir uma entrada. Quando Creteas me colocou no chão, eu apenas fiz um movimento com a cabeça e rapidamente pensei na ordem de abrir, para que a passagem se fizesse.

Evidentemente, houve um espanto geral, ecoando com uma expectativa. Murmúrios apontando o fato de eu controlar as algas pipocavam. Algumas delas diziam que nem viram as algas, ou sequer perceberam eu me mover.

Aparentemente, as gigantes não poderiam andar pelo castelo, as paredes eram muito estreitas. Sem palavras, eu comecei a andar e as Mileniuns foram as únicas que me seguiram. Aquela confiança toda em ter um exército já diminuía, tendo em vista que, no final das contas, o povo era mais alguém a ser protegido, do que jogado em um sofrimento de uma guerra, sofrimento que poderia ser ainda maior do que já tinham. E eu tinha consciência disso desde o início.

Andando pelo castelo, o silêncio era aterrador. Diferente do que na primeira vez, a água na parede não mais se movia, parecia congelada. Quando chegamos aos aposentos da Rainha, o local de nossa batalha, para nossa surpresa, tudo estava exatamente da mesma forma como ficou quando morri, mas não havia mais ninguém lá. Estava vazio.

Um forte barulho de movimento de águas, como de uma represa se abrindo, surgiu e o grito das mulheres lá fora nos fez correr imediatamente. Eu fui para o lado contrário das Mileniuns e percebi que não deveria retornar para a entrada, mas subir para a torre central, que era o caminho que elas tomaram.

Ao redor da torre havia uma sacada, para onde nós saímos.

De cima do topo da torre fluía uma enorme queda d'água que se dirigia até o povo de Neon. Parecia uma gigantesca cachoeira. Ali se reunia, ao que tudo indica, toda a população do planeta. A intenção da Rainha, dessa forma, parecia ser a de atingir todas de uma só vez.

- Esse era o plano dela, então? E nós caímos? - Questionou uma das milenares para sua líder.

- Acho que sim, era o plano... Se nós caímos? Eu não sei... Caímos, salvadora? - Darca virava-se para mim com um olhar de esperança serena, quase que plena, de que eu faria alguma coisa.

Eu corri por entre elas e saltei no meio das águas. As algas controladas pela Rainha estavam lá e começaram a me atacar novamente, como da outra vez, me queimavam. Até que tudo começou a parecer ficar em câmera lenta. A minha chegada fez as algas tomarem outro caminho e a água praticamente parou no ar, prestes a atingir todo o povo ali reunido.

Minha mente ficou leve. Acho que o fato de ter morrido e voltado me deixou mais calma, acreditando que mesmo sofrendo uma dor intensa, eu seria capaz de me recuperar. Eu comecei a pensar o quanto mais eu não sabia daquele planeta, o quanto mais eu não sabia do que eu era capaz. Comecei a sentir a água, além das queimaduras das algas que me atacavam, além do que tocava meu corpo. Senti toda a água espalhada por aquele planeta e cada alga viva, talvez milhões. Eu as senti e as chamei, com meu pensamento.

Em pouco tempo, enormes turbilhões de água, vindos do mar, se formavam, subindo ao mais alto do céu e caindo na minha direção. Dentro deles uma quantidade semfim de algas que vinham em minha defesa destruíram as controladas pela Rainha, algumas até mudaram de atitude, saindo do controle dela.

Foi então que um grito de fúria se fez mais alto do que qualquer um podia imaginar.

Não parecia que tinha se propagado com ondas sonoras, parecia que estava em minha cabeça. Na cabeça de todas, eu podia ver, mesmo dali a reação delas. As algas também mudaram sua atitude, eu sentia que elas lutavam para continuar o que faziam, mas tinham outras ordens agora. Elas tentavam me dizer, eu sentia suas dores.

O movimento da água voltou a se direcionar para as mulheres e eu comecei uma luta dentro de minha mente para tentar ser mais forte, como uma queda de braço de energia. Eu comecei a subir por dentro da união dos turbilhões de água. Fui mais alto e mais alto, controlava algumas algas, mas o poder contrário era muito forte. E de cima, conseguia enxergar mais o semblante de tristeza de cada uma ali, de desesperança. Até que avistei, na outra ponta do castelo, Raquel e as guerreiras. Estavam todas ali, amarradas e Leiva presa numa lança, que estava praticamente fincada em seu pescoço. Não sei se sobreviveu à explosão ou se morreu e renasceu ali mesmo. Mas a Rainha parecia vencida, de joelhos. Não era ela quem disputava comigo. Aquele grito, era uma voz masculina. Não havia nenhum homem naquele planeta. Esse poder não vinha de perto. Como poderia alguém tão poderoso existir, a ponto de fazer isso?

As algas, então, passaram a se direcionar também para as Mileniuns e para as guerreiras voltando para o Castelo. Naquele momento eu percebi que Leiva olhava diretamente para mim. Ela tentava me dizer uma coisa. Queria que eu entendesse algo, mas eu não conseguia. Tentei pensar e a memória da promessa que fiz a ela me veio como resposta. A vitória não estava em viver. A vitória não estava em prender a Rainha. A salvação ali não era permanecer em Neon. Meu semblante de assustada fez ela perceber que eu tinha entendido e ela acenou positivamente com a cabeça, o suficiente para o sangue que já saia do pequeno orifício causado pela lança presa nela, jorrar mais forte.

Quem quer que estivesse por trás disso provavelmente não imaginava que eu iria descobrir que um blefe. Quando ordenei que as algas atacassem todas as mulheres ali, que esse era o certo, a mudança de ordem da outra ponta não chegou a tempo.

Todo aquele vale do Castelo se tornou um oceano e cada mulher ali foi tocada por uma alga, uma por uma. Logo, elas foram entendendo. Não havia dor. Aquele era o momento da libertação. As gigantes se ajoelharam, grandes e pesadas demais para flutuarem e as Mileniuns se atiraram nos vórtices criados pelo movimento das algas. Todas iam desaparecendo.... Inclusive as guerreiras e por fim a própria Raquel. A água foi escoando, de volta para seu fluxo natural, refazendo rios em direção ao seu ponto inicial de onde vieram e eu me via ali, sozinha.

Fui cercada, ainda um pouco submersa, por algumas algas, que reconheci como as que me transformaram de uma garota assustada em uma salvadora.

- Não podemos matá-la, salvadora! - Dizia a voz que vinha delas, em minha mente. - Você cumpriu seu destino. Agora não sabemos o que será do seu futuro.

- Cumprir um destino e ainda ter futuro, parece ser algo bastante recompensador. - respondi, apesar de satisfeita por tudo ter acabado, pela constatação de que provavelmente libertei o povo de um planeta, mas claro que com a sensação de ser o náufrago preso sozinho numa ilha que era um planeta inteiro, para todo sempre.

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