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2. Calango com Farinha

—  Além de boca suja, é mal educada. — disse meu gerente — Não te ensinaram bons modos lá na Bahia? — completou sacudindo a mão para que eu apertasse.

Obedientemente eu apertei a mão estendida diante de mim e forcei um sorriso, tentando de algum modo anular a minha primeira impressão.

— Me chamo Flor de Lis. Desculpe e é um desprazer! — rosnei entredentes. Eu não conseguia me controlar, era mais forte que eu.

O sorriso preguiçoso se abriu para mim e foi a primeira vez que percebi como ele era bonito, apesar de babaca.

— Fica sussa! — tomou-me pela mão me puxando para a cafeteria — Vem, você precisa de um banho, urgente.

O inicialmente desconhecido que na verdade era meu gerente, se chamava Ulisses. Não achei que o nome combinava com ele, talvez combinasse com suas roupas impecáveis ou óculos quadrado, mas não com o sorriso debochado sempre presente em seu rosto.

— Olha só, não dá pra tomar um super banho, mas acho que tem o básico pra tirar esse fedor de você. — disse ele abrindo a porta do banheiro para mim e me entregando uma blusa com o nome da cafeteria.

— Tenho tudo que preciso aqui comigo. — falei dando batidinhas na minha bolsa.

Ulisses baixou a cabeça para olhar minha bolsa e sorriu.

— Por que cê tá de mala? Veio direto da Bahia?

— Olha só, eu não sou baiana não, visse?

— Paraíba?

— Também não. — respondi franzindo o cenho.

— E de onde mais você seria? — perguntou apoiando a mão no queixo.

— Da casa da tua mãe! — respondi irritada.

Ele me encarou estreitando os olhos e em duas passadas largas se afastou do banheiro falando por cima do ombro:

— Quero você pronta pro atendimento em cinco minutos!

Eu nunca lavei os cabelos tão rápido em toda a minha vida.

Quatro minutos e trinta segundos depois eu estava limpa, vestida com o uniforme da cafeteria e com os cabelos presos em coque.

— Uau! Agora sim você parece gente e olha só... — olhou para o relógio de pulso — Você foi rápida. Tomou banho mesmo?

— Eu mal tive tempo de pentear o cabelo, daqui a pouco vou virar um leão.

— Você mereceu. — ele disse olhando os cachos soltos sobre a minha testa, tratei de prendê-los dentro da touca — O que mais cê carrega aí nessa mala de viagem?

— Um pouco de tudo. Remédios, roupa extra, lanches, maquiagem, livros, dois carregadores de celular, um mini ventilador, lençol...

— Nossa!... Cê é paranóica, né? Não sei se fico mais impressionado com os dois carregadores, o mini ventilador ou o lençol.

— Sempre fui muito prevenida. Minha mãe diz que minha bolsa me manteria a salvo durante uma semana depois de uma guerra. — falei com mais calma.

— Agora me acompanha.

Fui guiada por Ulisses até sua sala.

— Pode sentar. Flor de Lis, vinte e seis anos, certo? — falou, verificando um papel perto do computador.

— Certo.

— Eu sei que você já fez entrevista e já foi selecionada, mas a gente só vai conversar um pouquinho pra eu conhecer você melhor, certo?

— Tudo bem.

— Então, Flor de Lis: Como você chegou até aqui?

— Olhe nem te conto! Passei quase duas horas no ônibus lotado e eu pensava que tavam era me fazendo de besta, o negócio parecia que tava andando em círculo…

— Eu me referia a circunstância que trouxe você até aqui. O que fez você sair da Bahia e vir até a cidade grande.

— Eu já te disse que não vim da Bahia. Eu vim do Recife que, a propósito, é uma metrópole, visse?

— Sim-sim… E o que é que fez você sair da sua metrópole e vir até aqui?

— Eu já trabalhava como atendente lá, mas tive que parar por causa do glaucoma da minha mãe que avançou muito, e minha tia que mora aqui há muito tempo já vinha chamando a gente pra se mudar pra cá, aí eu aceitei porque eu precisava de ajuda pra cuidar da minha mãe e da minha filha.

— Então você é mãe?

— Sou mãe dessa pretinha aqui, ó! — disse eu mostrando uma foto no celular — O nome dela é Maria Flor, linda, esperta, safada e só tem seis anos, tu acredita?

— Nossa!... Mas é a cara da mãe. — falou esboçando um sorriso discreto.

— Pois é meu filho, todo mundo diz isso.

— E como tá sendo a adaptação dela?

— Ela até que tá se adaptando melhor do que a gente imaginou. Eu e minha mãe é que estamos sentindo mais, a gente ama a nossa terrinha. A gente morava em um município chamado Paulista, a praia era quase no quintal de casa. Lá tem muita mata aberta, rios, mangues, fortes, igrejas coloniais e uma monte de coqueirais.

— Realmente deve ter sido um choque muito grande sair de um lugar com praia e mata aberta e vir pra essa selva de pedra, né? Eu também vim do litoral, nasci em Santos... O seu marido também tá trabalhando por aqui?

— Deus me livre e guarde que eu não sou mais casada com aquele satanás sem asa.

— Ok… Não tá mais aqui quem perguntou. — disse ele rindo — A propósito… Você se considera boa em trabalho em equipe?

— Ótima, contanto que não pise nos meus calos.

— Você se consideraria uma pessoa colérica?

— Depende do que tu quer dizer com colérica. 

— Como é que cê normalmente lida com conflitos?

— Eu tento conversar, viu? Mas sendo bem sincera, se não der jeito o pau come. 

— De antemão eu devo admitir que você é a colaboradora mais sincera que eu já recebi. Vamos aproveitar então pra dizer um defeito e uma qualidade sua. 

— Vou começar logo pelo defeito: Eu não levo desaforo pra casa; a qualidade: Quando eu quero alguma coisa eu vou até o fim.

— Curioso você não ter dito que sua sinceridade era um defeito.

— Mas é claro! E desde quando sinceridade é defeito? Olhe… Se tem uma coisa que eu odeio nessa vida é a tal da mentira. Me diga uma verdade ruim que eu vou lhe agradecer. Mas se vier com mentira pro meu lado, aí você me perde. 

— Já que com você é pra falar a verdade, o que eu mais gostei foi você não ter dito que seu maior defeito era ser perfeccionista. Nesse caso… 

— Sim?

— Seja bem-vinda a SB Koffee, Flor de Lis! — disse ele se levantando e apertando a minha mão. 

Além de muito bonito, ele aparentava ter boas relações com a equipe, não parecia o tipo de chefe que metia medo, estava mais para alguém que passava a mão na cabeça dos funcionários ou debochava deles.

Fui apresentada à equipe de limpeza: Marta, Maria e Tomé. Quase perguntei se eles viram mesmo o túmulo vazio de Cristo. Conheci os três baristas, mas só gravei o nome da Suzy, uma moça que chamou minha atenção por seus olhos puxados e cabelos escuros em corte chanel.

Fui apresentada aos demais atendentes, um total de quatro pessoas, cinco comigo. Todos receptivos e prontos a me ajudar em meu período de adaptação, menos a Laura.

No momento em que nossos olhos se encontraram eu soube que não nos daríamos bem, mas só depois de algumas semanas descobri que nossa relação seria bem pior do que imaginei.

Laura encarou a mim e a Ulisses que não pareceu notar aqueles olhos azuis possessivos.

Vixe, vai timbora carniça!

— Bem vinda. Espero que se adapte na medida do possível.

— Tenho certeza que vocês duas se darão muito bem. A Laura é muito gente fina e você também, Flor de Lis.

— Tu pode me chamar de Lis. — falei para Ulisses.

— No que precisar de mim, é só chamar. — disse Laura com um sorriso forçado para mim.

Ulisses pegou um avental e me entregou.

— Pronta?

— Não. Nem um pouquinho.

— Ah, deixa de drama! Você já tem experiência com atendimento e prometo dar um jeito de assar uns calangos pra você comer com farinha.

Fiz a minha pior cara feia, em resposta ele apontou para uma das mesas que ainda não haviam sido atendidas e lá estava o homem mais lindo que já vi em toda a minha vida.

Nota da autora: Apesar da comicidade presente na obra, os assuntos aqui tratados devem ser levados a sério. Tais como transtornos psicológicos, transexualidade, racismo e xenofobia. O que é mostrado nesta obra faz parte da realidade de muitos brasileiros que vivem às margens da sociedade e o intuito das cenas retratadas é de denunciar e conscientizar aos leitores sobre problemas reais que muitas vezes acontecem ao nosso redor e, por alguma razão, não damos a devida importância.

Como psicóloga sugiro que busque informações sobre estes e outros temas a partir de fontes confiáveis.

O "mimimi" de alguém é uma dor que você não está sentindo.

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