— Calma! Deixa ver se eu entendi... Lá na missa da Bahia eles tomavam Cachaça no lugar de vinho, e tapioca no lugar de hóstia?!...
— Pernambuco!!! — Corrigimos eu e Suzy pela milésima vez.
— Lá as comidas são meio limitadas, né? Por isso vocês comem calango...
— Ulisses cara, com todo o respeito, cala boca! — disse Suzy.
As bochechas dele coraram e eu não sabia se sentia pena ou se dava um tapa.
— É uma pergunta sincera. — disse ele, ajustando os óculos no rosto.
— Na verdade, é bem xenofóbico. — disse ela com a testa franzida.
Os olhos escuros de Ulisses se arregalaram e sua boca se abriu formando um "O".
— Nossa, desculpa...
— Ah meu, eu já percebi que não é por mal... Tá mais pra falta de informação, só que... Para que tá feio!
Ele alisou a nuca e olhou para baixo, um gesto que percebi que ele fazia quando ficava sem jeito.
— Desculpe. — disse olhando para mim.
— Vou desculpar, né? De novo! — falei revirando os olhos.
— Mas conta... Fiquei curioso sobre a missa na Paraíba.
— Essa é a última vez que vou falar que sou pernambucana! Repete comigo: 'Lis é Pernambucana'.
— 'A Lis é Pernambucana' — repetiu ele corado — Tô parecendo um idiota.
— Um dia te levo em Pernambuco, na Bahia e na Paraíba. Pra tu ver bem de perto as diferenças e as belezas de cada estado.
— Boa ideia, porque acho que ele não conhece nem o estado dele. — debochou Suzy.
Eu e Suzy rimos de Ulisses que estava completamente sem graça.
— Deixa eu continuar... — retomei a palavra — Em 1817 os pernambucanos estavam todos encaralhados com os portugueses que só faziam aumentar os impostos virados no mói de coentro. Foi quando se desembestou uma revolução que fez Pernambuco virar um país. Com direito à primeira constituição do Brasil que dava pro povo liberdade religiosa e de imprensa. Como os padres tinham muita moral na revolução, ela também ficou conhecida como Revolução dos Padres. Aí, eles se arretaram com os portugueses e como protesto pelas fuleragens que os galegos tavam fazendo, começaram a oferecer nas missas cachaça no lugar do vinho de lá da Europa e hóstia de mandioca no lugar do trigo português. Isso era como se eles dissessem: "Vão simbora daqui com as resenhas de vocês que a gente já tem as da gente. Visse?"
— Eu queria um dicionário pernambuquês agora... — disse Ulisses — Mas meu, que irado! Se fosse aqui em Sampa ia ser café no lugar do vinho e pizza no lugar da hóstia.
— Olha só... Ele conhece a culinária local. — brincou Suzy.
— Eu não sou especialista, não. Mas sei que lá no Instituto Biológico tem uma cacetada de pés de café e sei também que o paulistano é um dos maiores comedores de pizza do mundo.
— Danosse! É tanto café assim, é? — perguntei.
— Sim e é bem perto da Avenida Paulista. Te levo lá um dia.
— O povo gosta de café, né? Eu não vejo graça naquele bregueço amargo. — falei torcendo o nariz.
Dessa vez não só Ulisses estava de olhos arregalados como também Suzy e eu fiquei com vergonha do que disse, pois agora estava trabalhando em uma cafeteria.
— Você não sabe o que tá dizendo. Amanhã vou preparar o melhor café da sua vida! — afirmou ela.
— Eu prefiro cachaça. — falei fazendo sinal para o garçom trazer a conta.
— Tudo bem, eu faço pra você um Irish Coffee. Não é cachaça, mas leva whisky.
O garçom se aproximou me entregando a conta.
— Você já vai? Tá cedo. — disse Suzy olhando para o relógio de pulso.
— Eu preciso ir, tenho uma pirralha que perde o sono se eu não chegar em segurança em casa.
— Uma pena que você já vai. O Paulo, meu noivo, chega daqui a pouco.
— Vai ficar pra próxima. — respondi arrumando a bolsa para sair.
— Eu não vou ficar aqui de vela. — disse Ulisses.
— Da próxima vez você traz a Laura pra te fazer companhia. — Suzy falou rindo.
— Laura? — perguntou ele e então seus olhos se arregalaram — Ela... gosta... de mim?
— Não sei se gosta, mas com certeza é a fim de te comer. — respondeu Suzy.
Me despedi dela com um abraço e acenei para Ulisses, mas ele parecia muito distante olhando para o seu copo de suco, perdido em pensamentos.
Saí do bar em direção ao ponto de ônibus, estava tão frio que eu não via a hora de chegar em casa e me aninhar com a Maria Flor embaixo do edredom.
— Ei Lis!
Virei e vi Ulisses correndo para atravessar a rua.
— O que foi? — perguntei quando ele parou ao meu lado.
— Eu te levo pra casa.
— Não quero atrapalhar.
— Não atrapalha... — ele disse dando o seu braço para que eu encaixasse o meu — Você saiu tão rápido que nem vi.
— Tu não viu porque tava todo abestalhado pensando em Laura. — falei rindo.
— Você também acha que... Não, você acabou de chegar.
— Eu vi o jeito que ela te olha.
— Sério? Eu nunca percebi.
— Porque tu só enxerga o teu umbigo.
— Lis, aquelas coisas que falei sobre a sua origem... Quero pedir perdão. De verdade. Eu sou um idiota! Mas, quero que você saiba que não falei com a intenção de te ferir. Eu só... Sei lá... Repeti o que sempre ouço, mas nunca tinha parado pra pensar sobre isso. Agora com o que a Suzy disse, fiquei pensando em quanta merda a gente fala sem saber o impacto que isso pode ter na vida de um ser humano por pura falta de empatia…
— Tá perdoado. — falei com sinceridade — Tu podia aumentar meu salário pra compensar. — brinquei para quebrar um pouco o gelo, ele ainda parecia envergonhado.
— Sou besta mas nem tanto. — disse rindo — Vou compensar... — pensou por um instante — Não sei como, mas vou.
— O pedido de perdão já é suficiente... Prefiro pensar que a gente pode se unir e se ajudar ao invés de brigar. Feito o que a gente tá fazendo aqui. Tu me dá carona e eu te ajudo com Laura...
— Eu não preciso de ajuda. — defendeu-se, porém logo sorriu — Talvez eu precise um pouco... Muito! Faria isso por mim?
— É pra isso que servem os amigos.
Ulisses abriu a porta do carro para mim com um largo sorriso.
— Você se considera minha amiga?
— Apesar de tudo, sim. Ainda mais agora. Se não tiver problema pra tu.
— Eu conheço muitas pessoas mas não posso dizer que tenho muitos amigos. Ninguém que me faça passar vergonha, que me suporte e que me salve de mim mesmo. Também nunca fiz amizade tão rápido assim, muito menos com uma mulher.
— Pois tu acabou de ganhar uma amiga... — espalmei a mão no peito — Eu, Flor de Lis Silva, prometo ser uma amiga chata e presente. Prometo te fazer passar vergonha, aturar tuas leseiras, te salvar de tu mesmo e prometo ouvir tuas tabaquices românticas.
Ele dava muita risada, mas seus olhos brilhavam, talvez de alegria. O que me fez pensar que ter um bom amigo não era uma dádiva acessível a todos.
Ulisses espalmou a mão no peito e pigarreou antes de começar a falar:
— Eu, Carlos Ulisses Ferrari, serei o melhor amigo do mundo. Prometo tentar não falar bosta, lembrar que você é pernambucana, prometo não te oferecer mais calango com farinha e prometo não jogar lama em você.
— E vai ouvir minhas tabaquices românticas. — completei sorrindo.
— Sim! Prometo isso também e socar qualquer babaca que partir seu coração.
Nós gargalhamos muito e quando eu consegui me recompor abri minha mão e lambi.
— Que porra é essa?
— Tô selando nosso pacto. Você prefere cuspe ao invés de lambida?
— Não! Isso aí já tá bom. — ele lambeu a própria mão rindo.
Selamos a nossa promessa com um aperto de mão e muitas risadas estridentes.
Eu estava em uma cidade diferente, cheia de contas para pagar, uma filha para criar, uma mãe para cuidar, um ex para aturar e muito medo do futuro.
Mas acabei trocando saliva com o meu chefe no meu primeiro dia de trabalho. Foi naquela noite que Ulisses — mesmo sem noção como era — se tornou um dos meus melhores amigos.
— Mainha? É tu que tá aí?— Sou eu filha.— Mainha, tenha vergonha. Isso é hora de tu chegar em casa?— E isso é hora de tu tá acordada, Maria Flor? — perguntei eu segurando o riso.— Mainha... Que frio da merda! — disse ela ignorando minha pergunta.— Maria Flor Silva de Lima! Que boca suja é essa?— Oxe, tu fala merda o tempo todo.— Eu posso, v
— Essa espuma branca é o que, hein? — perguntei fazendo careta.— É leite, garota! — respondeu Suzy enfeitando o pires com um biscoitinho em formato de coração.— Posso tomar só a espuma? — perguntei com gracejo.— Nada disso! Eu fiz com o maior carinho. Na verdade eu pensei bastante em qual café fazer e cheguei a conclusão que um mocha seria simples e gostoso pra começar. — ela apontou para a xícara — Agora anda, prova...Segurei a xícara pela alça e sujei meu buço de leite fingindo que estava
Eu estava na frente de Ulisses, sem conseguir encará-lo.De cabeça baixa, eu olhava para meus sapatos altos. Inspirei fundo e falei tudo o que passava pela minha mente.— Chefe, pode me demitir. Mas saiba que eu nunca, nunquinha na minha vida, fui tão irresponsável. Tirando na adolescência... Nessa fase sim, eu fui muito doida. Mas, depois de adulta, em todos os meus trabalhos anteriores fui elogiada por chegar cedo e sair tarde. O que aconteceu aqui ontem foi… Excepcional. — fechei os olhos com força esperando minha demissão.— Então na adolescência você se metia em altas aventura? — falou Ulisses, com deboche.Levante
Pierre nos deixou em casa depois que liguei para os pais da Jéssica. Percebi pelo tom de voz da mãe que ela não parecia nem um pouco satisfeita pela surra que a filha levou. “Minha filha tá com olho roxo, nisso que dá deixar gente civilizada junto com todo tipo de gente” ela disse, e eu senti vontade de entrar no telefone e quebrar a cara daquela mulher, mas como Flor bateu na outra criança me segurei e, com muita educação, sugeri que seria importante as meninas conversarem e se desculparem uma com a outra. Ela afirmou que concordava, porém o seu tom de voz não passava o mesmo. Flor estava mais calma depois de ganhar de Pierre algumas folhas em branco e várias canetinhas coloridas, isso a distraiu durante todo o caminho de volta para casa — Graças a Deus as crianças esquecem rápido. Diferente dos adultos, eu por exemplo, não cons
— É claro que eu entendo... Você tem uma filha. — disse Ulisses alisando a nuca — Mas eu preciso que você pelo menos deixe um recado da próxima vez. — Eu tava tão avexada que nem pensei nisso. — respondi completamente envergonhada. — Imagino que sim, mas tente dar um jeito de avisar da próxima vez. Eu mesmo cubro você se for preciso. Mas se você não avisar e o proprietário aparecer por aqui, não vou ter como te proteger. Entende? — Claro e desculpa de novo. — Magina… Você me paga uma ice e estamos quites. — disse voltando ao seu humor habitual. — Opa! Eu ouvi cerveja? — perguntou Suzy entrando na sala dos funcionários. <
— Tia eu não queria te dar mais trabalho. — disse eu com sinceridade. Apesar de estar muito ansiosa pelo jantar com Pierre, eu estava com a consciência pesada, pois minha tia havia trocado a folga dela no hospital para que eu pudesse sair. — Não se preocupe querida, essas garotas vão dormir daqui a pouco. — ela disse rindo. — Tu vai deixar eu em casa. — reclamou Flor com os braços cruzados sobre o peito. — Flor, já te falei que tu vai achar chato. É passeio de adulto. — Tu devia era me acompanhar na igreja como prometeu. — disse minha mãe. — Mainha, eu já pedi desculpas. — respondi sem
— Como assim você quer roubar o título de São Paulo de Nova Iorque brasileira? — perguntou Ulisses com o dedo para o alto. — Eu quero lá roubar nada de ninguém! Tô te contando uma história que tu pelo visto não conhece. — respondi irritada — Vem cá, tu faltou as aulas de história, foi? — Eu… — passou a mão na nuca — Na verdade eu era um bom aluno. Só não lembrava de ter ouvido histórias sobre a Paraíba… Desculpa, desculpa! Pernambuco. — Histórias do teu país, peste! — disse eu com as sobrancelhas franzidas. — Você tá certa… Desculpa de novo, eu sou um idiota sem a intenção de ser idiota. — ele estava corado. — Tudo bem, Zé Ruela! Vou ser tua
Eram mais ou menos dez da noite e Ulisses me dava carona para casa depois do barzinho. Eu tinha duas horas para chegar e a tia Margarida poder sair para o trabalho. — Então… Você e a Laura, hein? — Você tava me espiando? — ele perguntou franzindo as sobrancelhas. — Peste, tu é o gerente daquela bexiga de cafeteria. Foi tu que me dissesse que o último a sair avisa pra tu poder fechar. — falei já com raiva — Por que diabo eu ia querer ver tu engolindo Laura? Logo Laura! — Não sei porque vocês perseguem tanto a Laura. Na verdade ela é bem legal. — ele disse. — Tu é um jumento mesmo! Só tu não enxerga que ela é o diabo louro. — respondi — Mas me conta