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1. Por Água Abaixo

Respirei bem fundo quando li o letreiro diante de mim.

SB Koffee.

Imediatamente dei início ao meu mantra mental: "Eu vou conseguir. Não importa o que aconteça. Eu vou conseguir."

Puxei minha trança por sobre o ombro, passei as mãos pela blusa desfazendo qualquer aspecto amarrotado, deixado pela viagem no ônibus lotado do qual tinha acabado de descer e, antes de dar um passo sequer, o ônibus arrancou do ponto espalhando sobre mim a lama do meio fio.

A fúria me tomou por completo. Virei na direção do ônibus e fechei o punho para o alto gritando com toda a força dos meus pulmões:

— Filho de uma rapariga de cego! Vai molhar a tua mãe, aquela quenga!

— Nossa... Que boquinha suja, eu hein! — disse uma voz grave e sensual vinda por trás de mim.

Me virei na direção daquela voz pronta para brigar com quem quer que fosse mas, ignorando meu cenho franzido, ele continuou a falar:

— Meu!... Acho que essa água fedida é de esgoto. — falou tapando o nariz.

— Droga! — disse eu olhando para minha blusa que um dia foi branca porém agora estava encharcada de um líquido marrom.

O indivíduo, com uma gravatinha borboleta ridícula, começou a rir. Soltei um rugido de ódio e sapateei no lodo da calçada tentando partir para cima daquele cidadão do inferno. Imediatamente abri os braços para me equilibrar na lama que estava sob os meus pés, deixada por aquele filho de uma quenga que dirigia o ônibus. As minhas pernas também se abriram acompanhando o movimento ridículo do escorregar. 

O engomadinho a minha frente gargalhava da minha cara. Não demorou para o riso dele se tornar um acesso de tosse e eu abri o meu próprio sorriso acreditando que aquela era a sua punição.

— Viu? Castigo de Deus pra você, seu peste!

— Moça, você parece o Pato Donald com raiva! Qua-qua-qua!... — ele falava sacudindo as mãos.

Abri a boca furiosa para despejar uma ruma de palavrões sobre ele. Mas, antes que eu proferisse qualquer palavra ele disse:

— Olha lá! Cuidado com o que vai falar, hein? Ou eu jogo mais lama em você!

— Pois tente! Seu… seu… seu infeliz das costas ocas! — disse eu me lembrando que estava diante de um completo estranho, em uma cidade estranha e na frente do estabelecimento onde seria o meu primeiro dia de trabalho. Eu precisava me acalmar e se alguém da cafeteria me visse? Seria uma péssima primeira imagem e, até onde sei, a primeira imagem é a que fica.

— Nossa meu!... Você é uma garota muito bravinha…

— Tu ainda não visse nada, minziguento! Experimenta atentar mais o meu juízo pra tu ver. — falei com as mãos nos quadris.

Eu não queria começar com o pé esquerdo mas ele estava claramente provocando a minha ira e eu nunca fui um exemplo de calmaria. Pelo contrário, eu era uma tempestade.

O sujeito diante de mim olhou-me de cima a baixo e a crise de riso recomeçou.

Eu certamente parecia ridícula para ele. Toquei a minha trança, também encharcada, e a fúria em meu rosto foi substituída pelo desespero.

Eu não sabia o que fazer. Soltei os braços ao lado do corpo. Justo no meu primeiro dia de trabalho, depois de procurar emprego por mais de um mês, eu estava molhada e fedendo a merda. Meus olhos se encheram de lágrimas...

— Calma garota, por favor não chora. Pelo amor de Deus! Não aguento ver ninguém chorando! — ele disse parecendo compadecido, aproximando-se mesmo com o nariz torcido — Por favor, me diga como posso ajudar...

— Eu não vou chorar coisa nenhuma! E não preciso da tua ajuda! — retorqui me afastando.

Engoli o choro, inflei o peito e marchei para a cafeteria. Não seria uma laminha de nada que me impediria de chegar ao meu destino.

O estranho inconveniente seguiu ao meu lado como se fôssemos velhos amigos íntimos caminhando pela avenida Paulista.

— Você sabe que tá cheirando a esgoto, né? — perguntou sorrindo — Eu posso comprar uma blusa pra você. — sugeriu olhando ao redor talvez em busca de uma loja de roupas.

— Não. Obrigada. Não gosto de dever favor a seu Zé Ninguém. Muito menos a um fulaninho metido a merda como tu.

— Entenda como um pedido de desculpas pelo meu… Gracejo. 

Parei o encarando. A raiva estava voltando, se é que foi embora em algum momento.

Observei bem o homem diante de mim. Cabelos crespos, em corte militar; olhos castanhos; pele cor de chocolate; nariz largo e lábios grossos; quase 1.80 m e um sorriso irritantemente preguiçoso.

Bem vestido, apesar da gravata borboleta preta; camisa social azul; calça de linho preta e sapatos tão lustrosos que eu poderia fazer de espelho.

Estiquei todo o meu corpo, aproveitando a minha altura de 1.60 m.

— Lavra daqui, peste dos infernos! — falei retomando minha marcha quase fúnebre.

— Não entendi bulhufas! Você é baiana, é bichinha?

Parei de novo, sentindo como se fogo saísse das minhas narinas. Me virei mais uma vez para o estranho sentindo minha raiva subir além do limite. Em poucos minutos de interação o sujeito me tirou completamente do sério.

— Vá se lascar, vá! — xinguei e continuei a andar. Ele ria, ainda acompanhando meus passos — O que é, hein? Para de me seguir, boy!

— Longe de mim seguir você... Ainda mais fedida como você tá. — apontou um dedo para a cafeteria — Eu tô indo naquela direção ali, ó... Aqui em Sampa a gente não para. Boa sorte aí você e seu fedor...

Olhei para o estabelecimento à minha frente, depois para o estranho bem vestido ao meu lado. 

Ah não! Esse cara é lá de onde eu vou trabalhar.

— Vem cá! Me responde uma coisa... Tu trabalha naquela cafeteria, é? — perguntei apontando para o estabelecimento à nossa frente.

— Sim, por q...— arregalou os olhos e o sorriso preguiçoso ressurgiu como se tivesse tido um insight — Você… — soltou uma risadinha debochada — É a garota nova!

— Merda! Digo... sou. — ergui o queixo — E tu, peste? Tu é o que, hein?

Fosse ele colega de trabalho ou não, eu odiei logo de cara aquele sujeitinho folgado.

— Me chamo Ulisses. Sou seu gerente. — disse ele ajeitando os óculos de aros quadrados e estendendo a mão em cumprimento com um sorriso faceiro no canto da boca.

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